A situação brasileira, aos solavancos, sofre abalos e sensíveis modificações, como já se estimava para qualquer instante, e por ora tais alterações se deram no primeiro escalão do governo. Encurralado, Bolsonaro vê seus condestáveis de extrema-direita serem descartados um a um na disputa com o Congresso, o STF e os monopólios de imprensa, sem que possa sair em seu socorro. Após Pazuello – o carniceiro, é Ernesto Araújo – o obtuso, quem cai do cavalo, enquanto outros são removidos de postos ou alocados em novas posições. Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente, também haviam subido o tom, após manifesto de banqueiros. Enquanto isso, a população passa fome e o Brasil se converteu, nas mãos do governo militar de fato, no epicentro mundial da pandemia com a horripilante marca de mais de 320 mil mortos. Não está descartada a tentativa do impeachment (mormente se atingirmos a escandalosa cifra das 5 mil mortes diárias por Covid-19 em abril) como alternativa para esvaziar por antecipação a eclosão dos protestos e resolver a crise política à moda da casa grande, isto é, por mero rearranjo palaciano que obste a intervenção independente das massas, medida já prescrita pela ofensiva contrarrevolucionária preventiva que corre há mais de cinco anos.
O que faria, neste caso, a extrema-direita?
Neste sentido, é ilustrativo ler comentário do Coronel reformado do Exército Gelio Fregapani ao portal Defesanet, intitulado “Teremos uma guerra civil?”. Quem lesse apenas os “argumentos” concluiria se tratar de apenas mais um tresloucado desses que pululam no pântano bolsonarista. Ocorre que este senhor, hoje um prosélito de pijamas, foi comandante do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) do Exército e é considerado um dos formuladores deste tipo de combate pelos seus pares. Não é um analfabeto qualquer, portanto: é analfabeto graduado, cujas palavras instilam outros a agir. Seu comentário, misto de cinismo e profissão de fé fascista, confessa o que todos já sabem, qual seja, que esta gente se prepara para a guerra civil declarada.
É típico de impostores substituir a análise pela lógica. Assim, tudo o que não podem explicar, é embrulhado em sombras e explicado como conspiração, que sempre confirma o que suas mentes “brilhantes” anteveem. São torturadores epistemológicos: não investigam a realidade – o que exige esforço e estudo, e disposição para interpretar dados que contradizem as premissas – apenas exigem que esta confesse o que querem ouvir. A linguagem destes picaretas também obedece a este intuito: é corriqueiro em quem não sabe o que dizer escolher a palavra difícil, para impressionar o público. O espectro começa assim seu textinho: “A moderna ciência dos conflitos, a Polemologia, nos ensina que quando há divergências irreconciliáveis e forças equivalentes e reativas estão prontas todas as condições para o conflito, ao qual conforme o vulto chamamos de guerra”. A guerra deriva de divergências irreconciliáveis entre forças. Profundo, senhor! Faltou apenas inserir a palavra “psicossocial” para que o manual de picaretagem fascista ficasse completo.
O grande “estrategista” prossegue, segundo o conhecido esquema da extrema-direita, apresentando o governo de Bolsonaro – o capitão do mato, como interrupção de um longo ciclo de administrações “esquerdistas” e vítima de conspirações sucessivas. Diz que após a vitória “acachapante de Bolsonaro”, “isto nos deu alguma sensação de tranquilidade pois que, por maior que fosse o fanatismo dos seguimentos esquerdistas as reações violentas que tivessem seriam derrotadas da mesma forma, que foram em Xambioá”. Tudo aí é uma mentira. Em primeiro lugar, a vitória de Bolsonaro não foi acachapante, pois este venceu apenas no segundo turno e num pleito recordista em votos brancos, nulos e abstenções. Ledo engano supor que ele tem este respaldo popular todo, hoje, menos ainda que há dois anos. Em segundo lugar, a “glória” que este pária canta sobre a gloriosa Guerrilha do Araguaia cobrou três expedições militares, dezenas de milhares de soldados e oficiais mobilizados, o terrorismo contra a população local e o uso generalizado da tortura e do assassinato de prisioneiros de guerra para ser alcançada, contra algumas dezenas de – estes sim – valentes guerrilheiros. Vitória de Pirro, seu nazistinha tupiniquim miserável!
Diz o prosélito que a sua vitória “desarticulou as forças reativas da esquerda, momentaneamente abandonada por sua enorme manada de corruptos, que se beneficiava das propinas e mesmo de roubos descarados”. Claro, a cúpula das Forças Armadas não é tisnada de escândalos de corrupção, que vão desde desvios durante a Guerra do Paraguai – guerra cuja corrupção original e maior é a própria causa que a motivou, a serviço dos interesses espúrios do imperialismo inglês – até a produção superfaturada de cloroquina nos dias que correm, sem falar das toneladas de picanha e cerveja enquanto as massas passam fome. Que tal uma palavrinha, ilustre cavalheiro, sobre o crime de tráfico de drogas internacional pego em flagrante no avião presidencial, que não mereceu nem sequer a expulsão do militar pego com a boca na botija? Ou sobre a malversação de recursos públicos dos Bolsonaro, já sobejamente comprovada e confessada pelo seu cupincha Fabricio Queiroz? Como se vê, “acuse o adversário do que tu fazes”, parece ser toda a ética desta canalha que habita os porões.
Sobre a pandemia, o gênio da raça pontifica: “Para piorar ainda veio a epidemia do Corona Vírus em auxílio dos opositores, que a aproveitaram, não se importando com as mortes, que causavam nem com a quebra da economia. Nisto foram muito bem-sucedidos, instilando medo na população e atribuindo a culpa das mortes ao Executivo, de mãos atadas pelo TSF”. Como se vê, não se diz, mas se insinua, que a Covid-19 não passa de conspiração mundial para derrubar Bolsonaro. Mais: diante da peste, presume-se, a população deveria ter sido “destemida”, leia-se, aglomerar-se à vontade, ir para as ruas sem máscaras, celebrar a política genocida do governo federal. O covardão cochicha metade do seu raciocínio, mas não tem coragem de dizê-lo por completo. Diga: dane-se a pandemia! Vamos celebrar Eros e Thanatos, Persephone e Hades! Façamos do Brasil um experimento mundial de mortandade! Aliás, seja coerente, senhor Gélio: não tome a vacina dos “globalistas”. Que tal?
A parte mais curiosa vem a seguir: “amparada pelo STF, a esquerda ideológica foi avançando na preparação da luta armada; vai formando tropas de combate inclusive com estrangeiros com formação militar”. Desconhecemos que o STF – aliás, vergonhosamente curvado aos generais, como ficou claro no episódio do tuíte de Villas-Bôas – prepare a luta armada, enquanto que quem já a executa de forma não declarada são as próprias Forças Armadas e auxiliares, em vis operações clandestinas contra massas camponesas na Amazônia e favelas cariocas. Quanto a estrangeiros no Brasil, é Bolsonaro quem entregará a Base de Alcântara para as Forças Armadas ianques, ignomínia não cometida jamais nem mesmo pelos piores entreguistas que já passaram pela Presidência. Nesta toada, segue o agitador: “Fachin, Ministro do STF, liberta milhares de bandidos (juntamente com Lula), e proíbe a polícia de entrar nas favelas. Escondem armas em lugares estratégicos, nas favelas do Rio e SP”. Mais à frente: “Na verdade, já estamos no início da guerra. Os 35 mil presos foram libertados com alguma intenção, ou como reforçar o efetivo de combate da guerrilha, e forçar o Exército a agir em antipáticas missões policiais”. Sobre os sucessivos decretos de Bolsonaro legalizando a compra de armas e munições para armar suas pandilhas de fascistas em todo o país, nenhuma palavra. Nenhuma, também, sobre a explosão das ações de grupos paramilitares (“milícias”), que já são as maiores facções criminosas do País. Silêncio ou estratégia? Inépcia ou aposta deliberada no caos?
Pulemos os outros devaneios e solecismos. Vamos à conclusão: “Somos milhões dispostos a lutar até a morte pelo nosso País, enquanto os que querem apenas tomar os bens dos outros podem até matar, mas dificilmente estarão dispostos a se sacrificarem por isto”. Naturalmente, como se viu no caso do sacrificado deputado Daniel Silveira, que chorava dia sim, outro também, no Batalhão Especial Prisional da PM do Rio, ou da Sara Winter (ainda se lembram dela?) que diante de algumas semanas de prisão domiciliar abandonou a nobre causa que defendia. “Claro que não queremos uma guerra civil, mas se houver, lutaremos. Não será em nome de ideologias, mas em nome de Deus e da Pátria”. É possível vislumbrar um ex-PM de algum lugar do Brasil, expulso da corporação e hoje matador a soldo de bicheiros ou “milicianos”, indo às lágrimas com palavras tão bonitas.
Esta gente reacionária em alto nível não irá para casa nem desaparecerá da cena. Se o rearranjo das classes dominantes conseguir contornar a crise mantendo as massas alijadas do processo, aqueles seguirão chafurdando nos porões, desprezados como monstros fedorentos pelo liberal perfumado. Agora, se as massas se insurgirem contra a podre ordem de exploração e opressão, serão estes os cães de fila mobilizados para enfrentá-las. Numa coisa, e apenas numa, concordamos com o genocida teórico: nas entranhas da sociedade brasileira, mergulhada na maior crise de sua história recente, e no agravamento dos antagonismos de classe, gesta-se uma guerra civil. Só não vê quem não quer.