Vimos, nesta semana, como previsto em nosso último editorial, Bolsonaro acenar uma trégua frente aos demais “poderes”. Trata-se, na verdade, de um duplo movimento: de um lado, refém que se tornou (novamente) do Alto Comando das Forças Armadas (ACFA), ele é obrigado a entregar peças, tão caras à extrema-direita, como o Ministério da Educação, no balcão de negócios para barrar o impeachment; de outro lado, enxerga nesse recuo passageiro a única oportunidade de ganhar fôlego, adiar o desenlace das investigações de que é alvo, à espera de melhores condições para o seu golpe militar.
Ocorre que, no Brasil de 2020, qualquer trégua duradoura é uma impossibilidade. O armistício instável nas cúpulas deste velho Estado reacionário não pode nem mesmo maquiar uma crise de dimensões bíblicas nas esferas sanitária, política e econômica. O Banco Mundial, insuspeito de esquerdismo, prevê recuo de quase dois dígitos no Produto Interno Bruto brasileiro deste ano, e a taxa escandalosa de 25 milhões de desempregados (sem contar os subocupados etc.) até dezembro. Quem ande pelas cidades brasileiras, agora que começa a flexibilização do isolamento social (que é tão atabalhoada e caótica como foi a sua imposição), percebe que vários comércios seguem de portas fechadas. Nenhum decreto oficial os impede de abrir as portas: simplesmente descobriram estar falidos, subjugados ao decreto inexorável da economia do imperialismo, que suprime os proprietários mais frágeis a cada nova crise, sempre em favor das corporações monopolistas. Como são estes pequenos e médios os que mais empregam – e os que mais pagam impostos – há de se medir o impacto devastador desta chacina econômica.
Ao mesmo tempo, ocorreu nesta semana um encontro de várias lideranças, que abrangem todo o espectro político oficial, denominado “Direitos Já”. É espantoso ver figuras como FHC, entreguista e agente notório do capital financeiro, balançar agora esta bandeira “progressista”, sendo louvado por todos os humanistas de ocasião. O que dizer de Luciano Huck, um torpe enganador de pobres, que, aliás, não tem lastro político nenhum, a não ser a unção um tanto reticente da Rede Globo e de uma dúzia de empresários milionários? Este campo representa a velha democracia, mutilada, senhorial, que deu em Bolsonaro. A “democracia” do monopólio da terra, da privataria dos serviços públicos, do genocídio da juventude pobre e negra bem como dos camponeses, quilombolas e povos indígenas, da impunidade para os torturadores de ontem e de hoje. Marchar com esta corja é, ao fim e ao cabo, favorecer Bolsonaro, deixando-o figurar sozinho, mais uma vez, como contraponto “a tudo o que está aí”. E, como sempre, Haddad, Flávio Dino e outros oportunistas lá estão, para dar uma coloração social a este liberalismo fedorento e putrefato, ainda mais sendo o arremedo semicolonial e semifeudal que é. Esta frente já nasce morta e é, se muito, uma espécie de vanguarda do atraso. Os democratas consequentes nada têm a fazer lá.
Da parte do movimento popular classista e combativo, só há uma tática aceitável: o vínculo mais estreito com as massas profundas de nosso povo, a defesa de seus interesses imediatos, o fortalecimento das suas organizações de base e, sobre este trabalho, a elevação da sua consciência de classe. Neste ou naquele lugar, em torno de questões concretas, pode-se trabalhar em conjunto com outras forças, desde que não se comprometa jamais a independência política do proletariado e sua hegemonia sobre as demais classes populares. Lembremo-nos sempre da advertência de Lenin, acerca da burguesia liberal: hoje (isto é, quando quer atrair o povo), radicais, republicanos; amanhã (quando quer descartar a aliança popular), traição, fuzilamentos.
O acerto de contas se aproxima e seu cerne não será o embate entre a velha democracia burguesa e o fascismo (o que não significa que a extrema-direita não possa lograr protagonismo temporário aqui ou ali, o que só faria acelerar o processo irreversível de reacionarização dos regimes demoliberais, com hipertrofia crescente do Executivo), mas entre a velha ditadura burguesa-latifundiária (em sua forma fascista ou com máscara demoliberal reacionária) e a nova democracia da aliança operário-camponesa, que é, pelo seu conteúdo, a única democracia autêntica e a cada dia que passa a única possível, porque será governo da imensa maioria. É em torno destes dois polos – ou destas duas vias – que se agruparão as demais forças da sociedade, porque são estas as classes cujos interesses são irreconciliáveis no século XXI. Como a história contemporânea provou à exaustão, não há caminho intermediário.
Marcos Corrêa/PR