Editorial – Uma chispa pode incendiar a pradaria

Editorial – Uma chispa pode incendiar a pradaria

Editorial da edição nº 229 do jornal A Nova Democracia 228 (dezembro de 2019 e janeiro de 2020), que estará disponível na internet e nas bancas de todo o Brasil na próxima semana.


É preciso entender muito bem a questão central da crise política no país. São duas situações em desenvolvimento. Uma é a do “governo aparente” de Bolsonaro e o “de fato” do governo militar secreto dos generais. Após a grave crise palaciana que durou de abril a setembro, e tendo ambos os grupos contendentes (a extrema-direita de Bolsonaro e a direita militar do Alto Comando das Forças Armadas – ACFA) se desgastado, por uma questão de “salvação do barco” chegaram a um acordo para abrandar a crise e fazer recuperar a economia. Acordo este frágil e temporário, que não pode se manter por muito tempo, e quando menos possa se esperar, voltarão os bate-bocas e disputas ferozes.

A outra situação da crise é a da, ora latente, e por isso inevitável, rebelião popular que todo dia e em todo país, no campo e cidade, lança suas chispas no ar. É a resistência camponesa pela conquista da terra, a luta indígena pela demarcação de seus territórios roubados pelo latifúndio; é a luta dos estudantes e professores em defesa da educação pública e gratuita, a luta dos trabalhadores em defesa de seus direitos pisoteados e por moradias; a luta da juventude pobre por liberdade, trabalho e contra a sanha da repressão policial. É a acumulação crescente de material inflamável feita de indignação, ressentimentos e ira represados.

Todo esse material acumula-se dia após dia, frente aos brutais golpes desferidos impiedosamente pelo governo contra os direitos do povo, direitos tão duramente conquistados em décadas de luta; pelo incremento a rédeas soltas da matança de pobres, dentre outras situações odiosas. Ações criminosas instigadas pela orgia ideológica fascista que a eleição de Bolsonaro criou, e que é alimentada diuturnamente por seus discursos eivados de preconceitos rancorosos e pelos das falanges retrógradas que povoam as chamadas “redes sociais”, ademais dos elogios e saudações às ações genocidas das forças policiais por parlamentares, membros da justiça e programas policialescos sensacionalistas da TV e do rádio.

A tumultuada tramitação e aprovação pelo Congresso do carrasco projeto de “reforma da Previdência”, que decreta o fim da aposentadoria pública universal, levantou massivos protestos populares e desgastou o prestígio político de um governo eleito por uma minoria do eleitorado apto. Por outro lado, as tropas militares, apoiadoras de Bolsonaro, viram-se traídas por ele, não tendo sido atendidas suas históricas reivindicações em benefício dos privilégios do alto oficialato. Reivindicações estas que durante quase 30 anos foram bandeira e esperança do eleitorado garantidor da carreira parlamentar do capitão. A manutenção dos privilégios da alta oficialidade, particularmente do generalato, aprofundou não só a indignação, mas também as fissuras, no seio das reacionárias Forças Armadas e de repressão.

Em 2013, a Juventude Combatente marcou forte presença nos levantes populares que estremeceram o Brasil. Foto: Ruy Barros

O demorado acordo para lograr essa aprovação pelo Congresso foi precedido também de desastroso falatório dos fanáticos olavistas contra os generais, fato que embora levasse à queda do general Santos Cruz do alto posto palaciano, deu lugar a um articulador político mais hábil imposto pelo mesmo ACFA. Também o episódio “Queiroz”, que colocara na defensiva o clã Bolsonaro, foi manejado a propósito pelos generais com o arquivamento, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), das investigações sobre Flávio Bolsonaro, deixando a “espada de Dâmocles”* sobre a cabeça do grupo fascista.

E foi nesta correlação de forças que Bolsonaro teve que engolir, como chumbo trocado, o restabelecimento pelo STF do instituto constitucional de que ninguém poderá ser preso, fora as exceções de flagrante delito e ameaça iminente à segurança da sociedade, após o transitado em julgado, ou seja, mantida a condenação do réu findo todos os recursos na última instância da justiça. Com isto, inúmeros presos, dentre os quais os da Operação “Lava Jato”, ainda detidos, tal como Luiz Inácio, foram soltos.

Contudo, a insustentável situação de instabilidade política que tem posto em xeque a credibilidade das instituições, especialmente do STF (mil vezes achincalhado pelos fascistas de dentro e de fora do governo e tendo seus ministros sido objeto de graves ameaças, sob pena da mais completa desmoralização desta que é a corte suprema do país) levou a uma reviravolta interna. As mais de 900 investigações arquivadas voltaram às barras da justiça, dentre as quais a do filho do presidente. Com Bolsonaro mais uma vez encurralado, o acordo palaciano só encontra sobrevida no ranço anticomunista e antipovo do pronunciamento ameaçador de todo o governo frente às rebeliões que ocorrem no Equador, Haiti, Chile, Bolívia, Colômbia, como prevenção ao pesadelo da explosão no país de um novo “junho de 2013”, maior e mais violento.

Antes, ao modo arrivista que o caracteriza, o fascista Bolsonaro, empurrado pelos generais, também serviu-se do episódio das queimadas na Amazônia para, de forma dissimulada sob o apanágio de decreto de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), atacar o movimento camponês naquela região. O obstinado fascista refere-se às famílias camponesas, que sustentam a Nação junto aos operários e demais trabalhadores, com termos como “bandidos” e “terroristas”. Ele acusa a esmo o movimento camponês organizado, que busca destruir o atraso da Nação e a miséria do povo no campo e na cidade, como se os camponeses fossem uma ameaça ao país. Não! As massas camponesas organizadas, juntamente com o proletariado e a pequena burguesia urbana, são uma ameaça aos parasitas da Nação, latifundiários, grandes burgueses e às potências imperialistas que saqueiam o país, principalmente o USA, que a mantém como país semicolonial e semifeudal.

Bolsonaro fala de reprimir os camponeses ao invés de investigar os latifundiários que usurpam terras públicas, pilham suas riquezas e devastam a natureza, tudo sob a proteção do velho Estado. Um exemplo recente pôde ser visto na Bahia, onde uma empresa fantasma que detinha a posse de mais de 800 mil hectares (!), era acobertada por liminares vendidas pelo Tribunal de Justiça daquele estado, numa ação tão desavergonhada que o próprio judiciário não teve mais como esconder.

A “GLO do campo” e a “excludente de ilicitude” são parte da terceira tarefa da reação, precisamente de impor um endurecimento das leis penais e se livrar de qualquer inconveniente legal que constranja as forças repressivas de exercerem toda a bestialidade contra as massas rebeladas e, principalmente, contra a insurgência revolucionária. Nesse sentido, nela convergem tanto a extrema-direita bolsonarista quanto a direita do ACFA. Na repressão desenfreada às massas rebeladas se manterão unidos.

Mas o capitalismo burocrático, em crise geral de decomposição, necessita espoliar ainda mais não só o proletariado e o campesinato, terá obrigatoriamente que garrotear os pequenos e médios proprietários com o alto custo do dinheiro e impostos escorchantes, em benefício dos monopólios financeiros, bem como afetará duramente a educação e a produção cultural do país. É só questão de tempo, como decorrência direta das “reformas” econômicas odiosas que já estão sendo aplicadas. Tais medidas para sair da crise econômica, que é base da profunda crise do velho Estado e agonia de seu desmoralizado sistema político, conduz necessariamente os reacionários a centralizar o Poder político de modo absoluto no Executivo. Seja através do molde corporativo e fascista propugnado por Bolsonaro, seja no molde da reforma constitucional predicado pela direita do ACFA. Isso aprofunda a instabilidade: além de atiçar a rebelião das massas, agravará ainda a divisão no seio das classes dominantes, da pugna entre a fração compradora e a burocrática e entre os seus vários grupos de poder.

Dentro dessa situação, a falsa esquerda oportunista eleitoreira e conciliadora de classes (com seu ensebado discurso de “Estado democrático de direito”) e a centro-direita eleitoreira são pesos mortos no jogo político. Não têm condição, hoje, de retornar à cena política a não ser como coadjuvantes, submetidas às forças da direita militar e civil ou da extrema-direita ou mera oposição contida. A soltura de Luiz Inácio, que implicou um golpe na “Lava Jato” (embora não tenha sido a morte mesma da Operação), só somará mais ingredientes à crise política, assanhando a extrema-direita e criando controvérsias no seio da direita militar.

Bolsonaro, embora ainda tenha algum peso nas massas entorpecidas, perde apoio e, tentando recuperá-lo, necessita de retomar a ofensiva colocando mais abertamente seu projeto fascista. Lança mão do partido “Aliança pelo Brasil”, que, pelas tendências gerais, será mais um aborto fascista que mistura a ideologia feudal de seitas neopentecostais com o pseudo nacionalismo, na realidade, anticomunista belicoso, para mobilizar e encabrestar massas iludidas.

As massas serão empurradas e vão à luta com a experiência histórica acumulada e as lições de 2013/2014. As massas não só serão empurradas, como elas se politizam e estão clamando por uma direção revolucionária, estão sedentas por organizar-se em formas mais elevadas, por lutar belicosamente por seus interesses. As instituições oficiais não lhes inspiram confiança, tampouco respeito, sendo estas as forças que cada vez mais lhes atacarão em todas as frentes. A própria reação reconhece tal estado de coisas. As massas saberão revidar. Uma só chispa pode incendiar toda a pradaria.


Nota:

* Anedota em que Dâmocles é posto em uma situação rodeado de tentações, porém tem sobre sua cabeça uma espada pesada e afiada, segurada apenas por um único fio de rabo de cavalo. Nessa situação, ele fica paralisado e tende a renunciar aos seus objetivos, pois qualquer movimento pode provocar a queda da espada sobre seu crânio, ocasionando sua desgraça.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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