O presente artigo, antes de tratar como um tratado sintético sobre o tema, apenas pincela algumas questões relativas ao “fenômeno Bukele” em El Salvador e seus efeitos no mundo, em particular na América Latina, onde o problema da violência urbana adquiriu contornos apocalípticos, e assim inflam a popularidade do chefe de estado salvadorenho em suas fronteiras como fora.
Introdução
Existe um pequeno país na América Central, cujas proporções reduzidas de sua área contrasta com sua influência entre jovens idealistas da América Latina que, desiludidos com os jogos políticos de suas criollas projetam suas utopias naquela pequena ilha. Seu líder, para alguns um revolucionário, para outros um ditador sanguinário, é indiscutivelmente um dos líderes mais populares de seu continente e suas medidas radicais e heterodoxas pretendem anunciar uma nova era ao continente. Esses jovens que idolatram o jovem líder de barba visitam seu pequeno país, buscam lições e inundam a opinião pública propondo fazer em seu país uma cópia carbono daquilo que assistiram.
Estou falando de que país?
Nossos pais diriam Cuba, mas nossos filhos/sobrinhos/alunos provavelmente teriam outro diminuto país em mente. El Salvador nos últimos anos saiu da irrelevância de mais um país miserável dominado pelos narcos para se tornar a Meca da Segurança Pública, onde políticos de direita, policiais-influencers, podcasters e jornalistas hematófogos se prostram em adoração.
Mais do que o profetismo das promessas de mais um semita de barba, Nayib Bukele traz consigo os números de um milagre. De repente, o país mais violento da América em números relativos, superior a muitos países em guerra declarada, se tornou um dos mais seguros do planeta através de sua “terapia de choque”: exército nas ruas, prisões em massa (El Salvador hoje possui a maior taxa relativa de encarceramento) e construção de superpresídios administrados sem os devidos processos legais.
Mesmo assim, sua popularidade, ainda que possamos questionar as metodologias da pesquisa, atinge 90% da população, superando a antiga falsa polarização típica latino-americana (social-democrata pseudo-terceiro-mundista católica de intelectuais afrancesados e guerrilheiros arrependidos vs direita neoliberal nos marcos do Consenso Washington, pseudo-tecnocrática com discurso voltado à “classe média” de eficiência e contra corrupção e o inchaço da máquina pública). Demonstrando que são bem palpáveis suas transformações, gerando um certo mal estar no campo progressista ou mesmo nos liberais que vêem com assombro a centralização do poder em suas mãos.
Problema da violência na América Latina
Infelizmente, o assombro mencionado parece ainda mais restrito à intelectualidade progressista, talvez membros de minorias como aqueles que tem em seu convívio pessoas no sistema prisional ou egressos deste. Ainda assim, essas em grande parte não apresentam soluções para o problema da violência urbana latino-americana, senão receios que para a massa sofredora na mão da criminalidade parece aceitável por hora. A centralização do poder político pelo presidente, o uso da energia produzida pela única termoelétrica do país para minerar bitcoin, a relativização das poucas garantias constitucionais para população e ingerência do judiciário em nada parecem assustar um povo que há pouco vivera sob o jugo das maras.
Talvez um ponto fundamental para entender isso, para além das fórmulas elitistas de nossos pseudo-progressistas, “pobre de direita” ou “povo burro”, é a particularidades do crime na América Latina nas últimas décadas. Se até há pouco o crime afetava apenas uma parcela da população, era uma iniciativa quase individual ou de pequenos grupos de desfavorecidos que recorriam à delinquência para obter sustento e cujos efeitos eram localizados e sentidos apenas por outros delinquentes e endinheirados vítimas de seus golpes e roubos ao seu patrimônio, hoje a percepção da criminalidade é absoluta na sociedade.
As causas, inúmeras. Fiquemos com três apenas:
Primeiro, é o resultado de meio século de êxodo rural incomparavelmente caótico (talvez futuramente a África e Sul da Ásia nos superem) aliado a falta de desenvolvimento econômico para dar dignidade aos ex-camponeses e tornar o crime menos tentador para seus filhos. Não que a pobreza justifique a delinquência, pois a maioria esmagadora das pessoas pobres vive do seu trabalho e, ainda dentre aqueles que não conseguem nenhum trabalho (mesmo informal), há os que recorrem a bolsas assistenciais e da caridade alheia. Mas é inegável que a miséria é um forte condicionante, principalmente quando aliada a uma cultura de consumo em massa e ostentação. Se alia a falta de estrutura geral dos bairros, a falta de oportunidades de estudo, trabalho, instrução técnica e superior, lazer e cultura para a juventude das favelas que reconhecidamente têm papel na redução da criminalidade.
Segundo, a instrumentalização e fomento ao narcotráfico como ferramenta contrainsurgente pela CIA entre as décadas de 1960 e 1980, que difundiu não apenas o uso de drogas nas sociedades latinoamericanas como fortaleceu os bandos narcotraficantes com cadeias logísticas, armamento de guerra e acesso ao sistema financeiro. do qual ele nunca mais iria retornar à condição anterior de crime de relativamente baixo potencial ofensivo. Logo, não apenas as ruas das grandes cidades latinoamericanas – e também estadunidenses – estavam lotadas de viciados capazes das maiores barbaridades para saciar o vício; como nos bairros pobres e favelas onde a presença do Estado era pouco efetiva, as facções narcotraficantes passaram (muitas vezes com a negligência ou colaboração dos agentes públicos) a exercer controle territorial: cobrando impostos, estabelecendo monopólios, elaborando normas, julgando e executando sentenças.
Hoje, a maior parte das grandes facções criminosas lucram não somente com a venda de drogas, mas também com a extorsão de comerciantes e moradores, envolvimento na política eleitoral, jogo, prostituição, imigração ilegal, contrabando e também negócios legítimos onde se lava o dinheiro (nisso se evidencia a cooperação com o setor financeiro).
Terceiro, que um dos crimes que mais contribuem para percepção de insegurança, o roubo, não vítima apenas aos ricos e a diminuta “classe média”. Hoje, graças ao progresso tecnológico e ao acesso ao crédito, mesmo os latinoamericanos mais pobres possuem aparelhos eletrônicos, eletrodomésticos em casa e automóveis, ao menos motocicletas, que atraem a atenção dos criminosos por terem alto valor por unidade e serem de fácil revenda. Inclusive neste sentido, os tipos bens consumidos pelas camadas populares são até mais visados para roubo, pois existe maior demanda por eles no mercado negro – por exemplo, existe maior demanda por celulares da Samsung que de Apple, e o mesmo acontece em relação à demanda de peças de Uno Mille e Palio Fire em relação às de Range Rover Evoque ou Toyota Corolla Cross.
Urgência da violência e o ‘fascista fascinante’
Dos fatores descritos para o aumento da violência urbana na América Latina nos últimos séculos, decerto o primeiro é aquele que representa a raiz do problema. Numa sociedade já extremamente desigual e com ojeriza aristocrática aos ofícios mecânicos agravada pela tradição de trabalhos coercitivos e degradantes, expulsar camponeses às centenas de milhões em poucas décadas para uma meia dúzia de centros urbanos já mal planejados para habitarem aglomerados insalubres, sem infraestrutura e uma economia capaz de absorver essa potencial mão de obra, não poderia resultar em algo muito bom. Se na Inglaterra, que levou 400 anos do início dos Cercamentos, passando por duas revoluções industriais até a urbanização da metade da população, a condição dos bairros pobres já era miserável, segundo nos reportam os registros da época, o que podemos esperar da América Latina com a situação acima.
Soma-se a essa realidade ainda a segunda e a terceira causa que tornam ainda grave a situação – acrescentaria um doutor intelectual explicando criticamente o crime da América Latina. Mas e aí?
Recentemente, um influenciador difusor do marxismo na internet gerou polêmica ao participar de um debate sobre o crime, no qual ele argumentou que, dado à realidade de nossa sociedade, nos caberia “aguardar uma transformação radical para pôr termo à insegurança decorrente do crime.”
Errado ele não está. Mesmo as sociedades capitalistas mais desenvolvidas e sofisticadas sofrem com o crime, ainda que não espalhem isso aos ventos, que nem a criminalidade latinoamericana que vira livro, filme, documentário, série na Netflix e, principalmente, manchete de jornal. Mas isso é assunto para outro (quiçá futuro) texto.
O fato é que o crime é inerente às sociedades de classe, mas apenas explicar a relação do crime com as estruturas de nossa sociedade e dizer que ele será superado plenamente numa nova sociedade é como a situação narrada na anedota abaixo:
“Me ajude, bombeiro, minha casa está pegando fogo”
“Tudo bem, estamos a caminho, mas me responda: como surgiu o fogo?
“Provavelmente há 500 mil anos no Pleistoceno, através da fricção de pedras… não sei ao certo, mas por favor venha rápido.”
Também seria o mesmo que um sindicalista marxista dizer que melhorar as condições de vida e trabalho de sua categoria antes da vitória da Revolução Proletária é impossível.
Quem tem seu pertence roubado, sofre agressão ou tem seu familiar agredido ou assassinado, seja pela truculência policial, miliciano, jagunço, traficante ou simplesmente por um viciado por conta de uma nota de R$ 10 reais, sente urgência em resolver seu problema. É aí que o carniceiro de extrema-direita mais ignorante tem uma invariável vantagem ao douto sociólogo da universidade federal: a solução simples com tons de vingança que aparentemente quebraria o sistema criminoso. O delinquente estaria fora de circulação e supostamente a sua prisão ou morte desestimularia os demais a cometer atos de delinquência.
Infelizmente, para a sociedade, isso não é verdade. Se isso fosse verdade, a grande letalidade policial aliada ao encarceramento em massa em nosso próprio país teria resolvido já a criminalidade. Mesmo os policiais já reconhecem que a operação em favela para prender ou eliminar delinquentes é “enxugar gelo”, pois em breve o delinquente fora de circulação será substituído por outro. A prisão, por sua vez, ainda pode cumprir o papel de tornar ainda mais antissocial o elemento devido às condições desumanas, como pelo convívio com delinquentes de mais alto calibre organizados em facções.
Poder territorial do narcotráfico
Também relacionado à criminalidade na América Latina, está o poder – o problema do poder territorial do narcotráfico. Como mencionado acima, na América Latina, os vácuos de poder estatal favoreceram não apenas no campo, como nas periferias das cidades, o surgimento de potentados locais que exercem uma ditadura terrorista sobre a massa. É assim no interior, onde o latifúndio e seus bandos armados não apenas agem nas lacunas contingencialmente e, também, intencionalmente deixadas pelo estado latino-americano; e igualmente nas periferias para onde os camponeses foram expulsos de suas terras. Não estando baseadas em qualquer legalidade (tripartição de poderes, pesos e contrapesos, estado de direito), nem mesmo burguesa com suas fraquezas tropicais, o direito da força prevalece a força do direito. Não há representação, senão audiências ao estilo beija-mão medieval, no qual a plebe se curva aos poderosos pedindo vantagens pessoais.
Aliás, ainda nesse sentido, chamar as facções e milícias de narcotráfico, ainda que seja uma de suas fontes de renda, não é suficiente. Desde quando elas assumem a condição de poder territorial sobre as periferias, suas fontes de renda se expandiram para extorsão, monopólios econômicos (gás, água, TV a Cabo, etc.), segurança privada, tráfico de armas, assalto a caminhões, cigarros paraguaios, além, claro, da lavagem de dinheiro em inúmeros setores: postos de combustíveis, lojas de bebidas e até licitações.
O povo, sob seu jugo, fica à mercê das oscilações dessas organizações. De repente, por meio de guerra, o controle de seu bairro passa de uma facção para outra, às vezes pode sofrer com uma ocupação policial/militar que é tão prejudicial ao povo como a própria perpetuação do regime das facções, quiçá em curto prazo mais prejudicial devido à truculência de sua ação sobre o povo. Afora que derrubar um potentado criminoso, quase sempre resultou na ascensão de outro potentado criminoso.
Historicamente, se destacaram nesses potentados criminosos, figuras com algum carisma, como os traficantes e contraventores que realizaram algumas “políticas” de “bem-estar” assistencialista e de mecenato com artistas populares, mas não são padrão, senão idiossincrasias dos eventuais líderes. Na prática, era a dupla taxação sobre os comerciantes, que tinham que pagar impostos ao Estado e à facção, monopólios impostos que encarecem o preço de bens como gás de cozinha nas favelas do RJ, excessos praticados pelos criminosos contra o povo e barricadas de concreto que impedem a logística necessária ao transporte público e as entregas de bens. Nesse sentido, não há lugar para o romantismo nem com o Estado e nem com as facções com as quais ele mantém relações dúbias.
El Salvador, um breve histórico
De volta ao nosso diminuto país centro-americano a despertar amores e ódio, falemos de sua história. El Salvador é uma pequena república (do tamanho de Sergipe) localizada na costa pacífica da América Central. Foi colonizada pela Espanha até 1821, para depois fazer parte, temporariamente, do México até 1823 e das Províncias Unidas da América Central até 1839, quando a força centrífuga exercida pelas oligarquias latifundiárias locais implorou o projeto federalista liderado a partir da Guatemala. Como os demais países da América Latina, o seu período pós-independência não avançou muito além da independência formal e o país permaneceu subdesenvolvido, agrário exportador e submetido à dominação econômica estrangeira. No caso, não mais da Espanha.
El Salvador, entre o fim do século XIX e o XX, constituiu-se politicamente como uma famosa república da Banana: uma república oligárquica governada pelos latifundiários locais ou gerentes nativos dos grandes latifúndios fruticultores pertencentes às empresas dos EUA. Em qualquer dos casos frequentemente sujeitos à intervenções federais estadunidenses ou mesmo de mercenários a soldo das empresas.
Foi neste contexto que surgiu o herói nacional Farabundo Martí, que afrontou o imperialismo e ameaçou sua ordem de dominação. Membro fundador do Partido Comunista Salvadorenho, Farabundo Martí, que também havia combatido a ocupação estadunidense na Nicarágua junto a Augusto Sandino na década de 1920, participou do Levantamento Camponês de 1932. Neste levante, os camponeses pobres de origem indígena nahua enfrentaram e, temporariamente, venceram forças paramilitares dos latifundiários, dividindo terras entre os camponeses, e do exército salvadorenho, tomando quartéis e alastrando a revolta por metade do país, mas, por uma série de razões que não trataremos no presente artigo, foram derrotados. A contrarrevolução que se sucedeu à derrota do Levante, chamada de La Matanza, não apenas fuzilou líderes e guerrilheiros como assassinou indiscriminadamente qualquer pessoa de traços e cultura indígenas, matando cerca de 30 mil pessoas, e praticamente exterminando o povo nahua de El Salvador.
Nas décadas seguintes, o país seria governado por inúmeras juntas militares e o próximo episódio de levantamento popular massivo seria na década de 1980, como parte da onda revolucionária que corria na América Central. Paralelo à mais robusta e conhecida Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN, surgiu em El Salvador a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FFMLN), que, de forma similar à frente nicaraguense, era composta de inúmeros grupos intitulados marxistas-leninistas, guevaristas, trotskistas, nacionalistas e católicos de esquerda, e enfrentou, com apoio soviético, cubano e dos vizinhos sandinistas, uma junta militar corrupta, apoiada pelos EUA, latifundiários locais, setores conservadores do clero católico e narcotraficantes. A guerra seguiu até 1992, quando os acordos de paz mediados pelos EUA desarmaram as guerrilhas e instituíram regimes democrático-liberais com a participação dos grupos de esquerda desarmados. A partir de então, a FFMLN se tornou o típico partido-frente de esquerda eleitoral da década de 1990 e 2000 na América Latina.
O narcotráfico hipertrofiado pelos aportes da CIA, agora com mercado consolidado, acesso ao sistema financeiro e armamento de guerra, seguiu se desenvolvendo em toda a bacia do Caribe. Nas décadas seguintes, a alternância entre direita e “esquerda” (FFMLN) no governo salvadorenho não deu respostas suficientes para conter a escalada de violência do país. Foi aí que Bukele, ainda nas fileiras do FFMLN, passou a se destacar e começar a alçar maior popularidade.
Medidas de Bukele
Quando Bukele ascendeu ao poder (2019), ele não era exatamente um outsider. Ele já havia militado no FFMLN, inclusive se dizendo de “esquerda radical”, e sido eleito na pequena cidade de Nueva Cuscatlan, e na capital nacional San Salvador. Apenas depois de ter sido negado a possibilidade de concorrer à presidência que ele funda o seu partido Nuevas Ideas com uma retórica antissistema, antiviolência e anticorrupção e disputa as eleições presidenciais vencendo os dois maiores partidos salvadorenhos (FFMLN e ARENA) e conquistando a presidência.
Nos parágrafos seguintes, enfocaremos quase exclusivamente a política de segurança pública em relação às gangues que motivaram este texto. Em 2019, ele anunciou um Plano de Controle Territorial que buscou quebrar o controle territorial das maras por meio do enfrentamento armado utilizando a polícia e mesmo o exército. Até aí, nada que os governos latino-americanos não tenham feito. A diferença é que, em seu combate às maras, ele realizou o aprisionamento massivo, indiscriminado e sem quaisquer garantias constitucionais aos suspeitos que foram colocados em isolamento nos presídios sem mesmo ter acesso aos advogados e familiares. Para isso, lançou mão de decretar estado de emergência e de sítio, centralizando ainda mais os poderes em suas mãos.
Em paralelo, ordenou a construção de gigantescos presídios para abrigar aquela que se tornaria a maior população carcerária relativa do mundo. Nisso aí ele não apenas satisfaz a sanha de vingança das massas mais brutalizadas pelas maras, como também movimenta um importante setor da economia de um país subdesenvolvido: a construção civil. Em três anos de governo, El Salvador elevou sua população carcerária de 39 mil para 100 mil presos, o que representa cerca de 1,6% da população total ou 6% da população masculina em idade de trabalho. Arrisco dizer que não houve uma política habitacional que atendesse o mesmo volume humano em tão pouco tempo.
Seu último grande feito neste sentido tem sido a construção do Centro de Confinamento do Terrorismo – maior prisão do Hemisfério Ocidental.
Para custear sua política prisional, Bukele recorreu ao crédito internacional via Fundo Monetário Internacional – FMI; Banco Centro-Americano de Integração Econômica – BCIE; credores privados e também a manipulação especulativa de criptomoedas. Internamente em seus presídios, El Salvador vem utilizando da mão de obra gratuita de seus detentos para geração de bens e serviços para o poder público – inclusive dentre suas alternativas é a mais sustentável, apesar dos problemas que irei desenvolver a seguir. Insuficiente ambas, Bukele “inova” ainda alugando vagas em seus super presídios para “inquilinos” latinos do sistema carcerário estadunidenses. Inclusive, enquanto este texto vem sendo escrito, os EUA já enviou sua primeira remessa de presos venezuelanos para o país.
No aspecto econômico, a destruição do poder territorial das maras, para além da redução das taxas de violência, resultou nos seguintes benefícios imediatos para a população: estímulo ao setor da construção (para El Salvador, a construção dos megapresídios é quase um New Deal distópico), redução da carga tributária de facto, visto que o povo e as empresas locais viviam sob dupla tributação (pelo governo e pelo crime), redução da insegurança e, por conseguinte, estímulo ao turismo (fonte de renda importante para toda América Central). Assim, os primeiros anos de governo Bukele têm sido caracterizados também por crescimento econômico e redução do desemprego.
A sustentabilidade das medidas de El Salvador
Embora os homicídios tenham caído drasticamente, o alto custo social, econômico e político das medidas de El Salvador levanta dúvidas sobre sua sustentabilidade. Em outras palavras, isso quer dizer que, para a manutenção da redução das taxas de violência, que é o interesse popular que vem respaldando o governo Bukele, a despeito de medidas que realizadas em outro contexto levariam à sua profunda impopularidade e, senão, sua derrota esmagadora nas eleições, mesmo conduziria a uma insurreição popular.
Primeiro, podemos pensar no próprio valor de construção e manutenção dos presídios aliado à subsistência da população carcerária, que, por pior que seja tratada, ainda é mais cara que um estudante ou mesmo um paciente médio no sistema público de saúde (o Brasil é prova disso). Uma hora a conta chega e o país tem que pagar, e no caso o pagamento é em dólar e não em bitcoin. Segundo, se a solução é transformar os presos, em larga escala, em mão de obra barata ou gratuita para o poder público ou para o setor privado em parceria com o primeiro, a longo prazo cai no problema de tornar o aprisionamento, antes uma necessidade temporária, uma necessidade do mercado – não apenas do setor imobiliário como dos setores que exploram mão de obra do preso – que é mais vantajosa que a mão de obra livre. Terceiro, que, conforme expresso acima, a construção dos presídios se tornou um negócio tão bom, que, antes de reduzi-los diante de uma possível melhora nos números do aprisionamento (consequência natural da melhora econômica e da redução da violência), se recorre a presos de outras nacionalidades para custear o sistema.
Também a um prazo ainda mais longo, terá El Salvador economia suficiente (que não seja construir mais presídios) para integrar todos os seus presos numa eventual liberdade? Enfim, apesar da urgência da violência, no final as questões socioeconômicas se mostram basilares para a do problema a longo prazo.
Conclusão e outros referenciais
Falando em Cuba, inclusive, ali mesmo na América Central temos outros exemplos de países também subdesenvolvidos que possuem índices de violência com números invejáveis. Um deles é a própria Cuba, que, em que pese os impactos do embargo criminoso dos EUA e da política econômica castrista que priorizou a agroexportação ao desenvolvimento industrial e à autossuficiência econômica, devido ao progresso da educação, na igualdade social e no fortalecimento de instâncias comunitárias de segurança pública, tem números próximos aos de El Salvador. A cada 100 mil habitantes, apenas 8 homicídios, melhor que a maior parte da Europa. Outro exemplo é a Nicarágua, com uma economia possivelmente menos desenvolvida que Cuba – ao menos, nem tão sabotada pelos EUA –, cujo índice de violência beira os 7 homicídios por 100 mil habitantes, considerando uma população três vezes maior que El Salvador e uma área cinco vezes maior, ainda com uma população carcerária bem menor em números absolutos e relativos.
Até hoje não assistimos a nenhum comentarista do MBL realizando viagens a esses países para aprender com suas soluções para o problema da violência – o que talvez corresponda aos próprios limites metodológicos e éticos de sua criminologia. Primeiro que, se muitas vezes personalidades e movimentos progressistas ou de esquerda falham em apenas apontar soluções estruturais (logo de longo prazo) para o problema da violência, não concebem soluções mais imediatas; por outro, os políticos de direita, policiais-influencers, podcasters e jornalistas hematófogos são limitados em qualquer solução que não passe apenas pelo punitivismo vingativo. Se exige máxima punição ao ladrão de celular, média ao receptador e pouco se diz das fabricantes de celular que simplesmente poderiam inutilizar os aparelhos roubados à distância, desestimulando seu roubo/furto, levando à redução da compra de novos aparelhos e serviços de seguro. Para o tráfico, da mesma forma, exigem operações de guerra nas favelas do Rio de Janeiro controladas pelas facções, alguma repressão às controladas pelas milícias, mas esquecem as fronteiras nacionais por onde entram as drogas e armas e, encobrem o sistema financeiro que atua na lavagem de dinheiro bilionária desses setores.
É em cima desses crimes, inclusive, que os pensadores progressistas e de esquerda deveriam antes se acabrunhar, como costumam, aproveitar para propagandear não apenas uma nova ordem social mais justa, que coíba de fato o crime, como também bandeiras mais palpáveis envolvendo a responsabilização do sistema financeiro pela lavagem de dinheiro das facções, as relações do lumpesinato delinquente com a extrema-direita bolsonarista que diz combatê-lo (quase uma reedição de “O Médico e Monstro”) e também a autodefesa popular contra a criminalidade, que não apenas ocorreu em todas as experiências emancipatórias do último século (URSS, China, Vietnã e Cuba) como é a solução empregada pelas populações rurais do México que resistem em armas aos exércitos do narcotráfico que contam com a conveniência do estado mexicanos e armamento dos EUA. O ódio popular ao crime é justo, cabe conduzi-lo – senão, como já vem sendo feito, outros o farão.
Luiz Messeder é professor de Geografia da rede pública, publicou a tradução de “Alma Matinal” em português e habitante das serras. Escreve sobre temas ligados à política internacional e demografia.
Esse texto expressa a opinião do autor