Galíndez é um grande tipo, é gentil, cordato, generoso no que não poupa elogios aos comparsas; se necessário, Galíndez ultrapassa protocolos e desenterra esquecidos hábitos comezinhos de província, Galíndez se mostra prosaico, se forja prestativo, ele pergunta pela família de Beto, de Pepe, pelos filhos e netos de Dona Sara; Galíndez lhes arranca sorrisos subservientes, lhes faz corar a face tomada de susto, lhes faz arremeter as dúvidas de ainda há pouco, Galíndez lhes estanca incômodos, lhes desconcerta humores mal escalonados1, basta que indague se todos estão tranquilos, se a prole está bem cuidada, se o resfriado da criança arrefeceu, se os impasses com a vizinhança foram superados, se se tem exagerado no consumo de álcool e nicotina por vício ou ansiedade2; Galíndez parece registrar a tosse insistente de algum, o pigarro que vai e volta de outro, a contorção nervosa no rosto de um terceiro, o ir e vir agitado na dança das pernas inquietas de um seu comandado, tudo lhe acende as precauções, tudo lhe inquieta, lhe desata suspeições, Galíndez sabe ler sintomas indícios álibis subtextos decaídos, Galíndez avança turnos, se esbalda na calada das noites que não terminam, se coloca onde nada e ninguém ousara o resguardo, sabe como/quando/e onde se antecipar, oportuno, ao rumor das horas saturadas; ele se adianta, embaralha o mapa dos dias feriados, confunde efeitos e causalidades, é dadivoso, prestativo, Galíndez estende uma colcha de cuidados, ele se ocupa, ele não se isenta, ele está presente/ausente no que não se revela, no quanto não se mostra, no quando se subtrai e evola.
Galíndez é atento ao que passa no entorno dos afilhados3, nada lhe toca à indiferença ou o descuido, nada lhe incensa a empáfia, nada lhe foge ao controle; ele tem os palpos afiados, as unhas como lâminas, os dedos de ancinho, ele revolve a terra antes que esta empedre e se faça estéril às lavouras da preguiça, Galíndez separa sementes mal nascidas como se principiasse uma varredura prévia para que a praga não se faça destinação inevitável aos homens de boa vontade, aos humanos direitos; com a palma da mão e o equilíbrio na partitura de gestos, Galíndez descostura máculas e nódoas em profusão, ele desbasta o que for viscoso e esparramado, ele debela acometimentos vascularizados4.
Galíndez é hábil em profilaxias, se imiscui em córrego e vazante lá onde repousa o que lhe afronta; ele não dorme em trincheira, se mantém em prontidão, o tronco o quadril as pernas em firme base marcial, Galíndez ousa saltos em precipícios, ele cai e levanta, Galíndez faz uso de pregos afiados, soco inglês, tonel largo para mergulho submarino forçado, Galíndez conhece as regras elementares de física-química-biologia, ele leu com atenção desmedida os modos e trejeitos de curto-circuitar as gentes, ele sabe os distintos sentidos do termo eletrólito, ele despista, ele faz que não sabe, ele desliza faceiro como a um jogo de esconde, ele limpa as pegadas no solo fofo e úmido, Galíndez é sóbrio, viril, ubíquo, onipresente, ele se enxameia em distintos quadrantes, se infiltra vaporoso, uma farpa no encalço das unhas, ele se insurge em meio aos gritos sussurros diatribes, ele encerra casos, encharca de detergente o chão de cela, o chão de fábrica, o chão da célula o escondido o clandestino, ele usa do chapisco de muros onde alguém se arranha, se machuca, se esfalfa à revelia.
Galíndez escreve livros nos que formula hipóteses, no que dispõe estatísticas, nos que assevera resultados práticos, no que ajeita argumentos, no que sugere as regulagens do como-fazer o de que se há de ser feito, Galíndez não tergiversa, não gasta pestana com o que não tem valia ou préstimo ou obséquio ; nalgumas vezes, ele tem a voz aveludada – ainda que seja direto, sem rodeios, frontal e prescritivo, noutras vezes, a voz de tão áspera promove sulcos e deformações espectrais; digam o que disserem, afirmem o que for de ser notificado – nunca será dia de consenso for o caso a evocação a sua pessoa -, mas é fato que muitos são os que pensam que Galíndez é um cavalheiro, el señor Galíndez, que ele é um respeitável homem de bem, um pai de família como outro qualquer, outros asseveram que Galíndez é o taumaturgo das estações nas que o sol ilumina e acalenta, àquele que é capaz de fazer desatar o verbo frouxo das delações, àquele que convence a que tudo que se aquietava emerja de forma loquaz, Galíndez ele opera por intermédio de uma maiêutica cheia de ferros e aparatos de alta voltagem, ele tange o presente ele o estreita ele o afunila, Galíndez lustra o torrão do tempo no que faz girar a máquina sobre a vida nua dos oprimidos5.
2
Através da rubrica inicial de El Senõr Galíndez, Eduardo Pavlovsky nos apresenta uma falsa pista que compõe espaço e objetos cênicos. Nos seus termos:
Não está demarcado ‘o que é’ esse ambiente. Móveis, uma cama, várias cadeiras metálicas, uma mesa, alguns armários, um colchão no chão. Objetos soltos, distribuídos sem relação uns com os outros, um vaso com flores, um aparelho de telefone. Fotos de atrizes, modelos vestidas de maiô, jogadores de futebol, pegadas aqui e ali. As luzes – muito concentradas sobre estes móveis e objetos – delimitam o espaço da ação. Fora deste limite, nada, a obscuridade, tudo escuro. Somente depois de transcorridos vários minutos de ação dos atores, o espectador começará a intuir, nessa obscuridade que demarca o ‘âmbito’, estranhas formas, como se se tratasse de ferros, grades, alambrados, elásticos de cama. Entretanto, todos os elementos que estão claramente iluminados ante sua vista são reais. E a ação que começa também é real: uma senhora recolhe os papéis espalhados, limpa a mesa, faz a cama, ordena tudo. Tudo isto, em conjunto, buscando dar a sensação de que ‘estamos’ em um ‘lugar’ que em realidade poderia ser ‘outro’. Dois elementos cenográficos significativos: a) O ambiente é estreito, porém apresenta uma série de dados que o sugerem como habitável; b) A única entrada e saída, o único modo de chegar do exterior ou de dirigir-se a este, é um buraco no piso, no fundo do cenário. Deste buraco, e previamente dos degraus que o antecedem, emergem as figuras dos personagens que chegam, e por ali, saindo, desaparecem quando saem desse ‘ambiente’.6
Neste ambiente sugerido como ‘habitável’ circularão Beto, Pepe, Eduardo, Dona Sara, Coca, La Negra e, de alguma forma, Senhor Galíndez. Desde logo, adiantemos um breve perfil de cada um destes personagens, ainda que de algum modo, algumas pistas, neste sentido, já tenhamos antecipado em nota.
Beto e Pepe trabalham para Galíndez – falaremos sobre este trabalho e suas performances. Dona Sara, do alto de seus 65 anos, além de se prestar à arrumação da casa, se faz testemunha e cúmplice dos ocorridos. Nada lhe assombra ou se lhe faz intolerável para além de suas imprecações de hora e humor. Ousamos dizer que, alegoricamente, Dona Sara é àquela que repõe no lugar o que fora desarranjado por força das circunstâncias – condição sine qua non ao ‘eterno retorno’ da partida que se joga em sigilo. Seu instante de presença mais larga se dá na primeira cena – é ela que recepcionará Eduardo entre maledicências e intrigas.
Coca e La Negra são as duas prostitutas que serão ofertadas, certa feita, a Beto e Pepe, como antídoto contra o tédio da espera longa e nadificada a que estão subsumidos – isto porque Galíndez surge, se vai, ressurge, volta a ir-se entre uma ligação telefônica e outra; destaquemos que toda e qualquer demanda que aciona o cordel dos quefazeres depende estritamente de seus chamados e implicações. Coca e La Negra serão objetos de uso, instrumentos de consumo, e mais do que tudo, seus corpos serão superfície de expressão e expansão do território de domínio de Beto e Pepe. Dalgum modo, elas presentificam uma viragem de cena no transcurso narrativo de El Señor Galíndez; certo ponto de inflexão no que tange ao cenário (o ambiente habitável transfigurando-se em sala de tortura), assim como a ‘desenvelopagem’ ou o desenvolvimento dialético dos personagens Beto, Pepe e Eduardo que, principiando nelas, se lançam às artesanias opressoras da tortura. A este momento, Eduardo se faz iniciado nas atividades práticas da escola de quadros de Galíndez. Seu desempenho ótimo supera as expectativas dos comparsas mais experimentados e instrutores de ocasião.
Sigamos um trecho do texto dramatúrgico:
“(Pepe termina de tirar a roupa de Coca – que fica inteiramente nua).
Pepe: (a Coca) Venha, minha linda peronista! Vamos começar uma longa viagem. Vamos voar até as nuvens. Quer voar comigo?
Coca: Sim, doido. Quero voar contigo. (Pepe coloca Coca sobre uma cama. A cama se põe em posição vertical automaticamente).
Pepe: Não tens medo de voar? (a Eduardo) Garoto, venha cá!
La Negra: (a Coca) Mulher, que que é isso? (Coca lhe faz sinais de não estar entendendo nada, porém ainda assim lhe parece divertido).
Pepe: (a Eduardo) Prenda-lhe as mãos!
(Eduardo lhe coloca algemas nas mãos e nos pés)
Eduardo: Está bem assim, senhor?
Pepe: Perfeito, garoto. (a Coca) Lindo corpinho que você tem, hein? (Vai até o armário e tira uma caixa. Pausa). (a Eduardo) Você sabe quais são os pontos nevrálgicos?
Eduardo: Li alguma coisa sobre isto no livro do senhor Galíndez.
Coca: (Assustada) Ei, me larguem! Parem com isso! Basta de brincadeiras!
Beto: É impressionante, Pepe! Muito bom!
Pepe: Por onde quer começar, garoto?
Coca: Começar o quê?
Eduardo: Então vamos começar com ela, senhor?
Pepe: Sim, claro. (Pausa) Vamos fazer ela voar. (Pausa) Você tem sorte, garoto. É bom ser adestrado com uma puta. Nem todos dispõem desse tipo de material. Vamos!
Coca: (Assustada, a Eduardo) Senhor, diga a eles que me soltem. Por favor, senhor.
Eduardo: Que tenho que fazer?
(Beto se aproxima da cama em que Coca está amarrada)
Beto: Por onde você quer começar? (a Eduardo)
Eduardo: (pausa) Pelos mamilos.
Beto: Pelos mamilos? Ótimo, porém se mantenha calado. Olha, garoto, durante este serviço não se fala! São os outros que têm que falar agora.7
Apesar de tudo, tal como dissemos, Beto e Pepe não dispõe de qualquer autonomia decisória; não recebem seus soldos para artimanhas estratégicas e formulações táticas de aproximações sucessivas. Galíndez não os recompensaria os arbítrios e espontaneísmos. Sequer os excessos seriam pontuados a um bloco de horas extras; de nada serviria o avançar dos limites como a um gesto heroico de bravura obsessiva. O que há são prescrições cerradas e inequívocas, Beto e Pepe são rebatimentos destas – seus passos estão catalogados na partitura coreográfica que Galíndez lhes distribui ao sabor da hora e de seus compromissos irrevelados. Sem antecipações, sem aviso prévio, sem qualquer margem à uma deriva funcional extemporânea. Beto e Pepe são como peças circunscritas a um regramento que se lhes decai sobre suas cabeças amoldadas em matéria bruta, barata e de acabamento servil. Se se tratasse de um jogo de tabuleiro, Beto e Pepe seriam instrumentos da ação de outrem, tangidos pela regência de mãos e por um determinismo sob rigoroso registro de licenciamento. Galíndez seria, neste caso, regulamento e gesto de mover, receituário e provisão de efeitos colaterais – acionista majoritário de um sistema no que se encaixa sob medida.
Eduardo Pavlovsky afirma que o sistema-Galíndez acaba por fazer circular as personagens de Beto e Pepe da condição de torturadores profissionais a de vítimas de algo que lhes trespassa, que lhes transborda, que lhes transcende, condicionando-os irredutivelmente8.
Por isto, Beto e Pepe são aqueles que ‘permanecem’ dispostos ainda no quando da ausência de Galíndez – como se estivessem sob dedicação exclusiva, em tempo integral, ou em uma espécie de plantão permanente regulado por uma senha que, se disparada, faz mover mundos e fundos. Beto e Pepe encarnam a condição prefigurada do que, através deles e, paradoxalmente, a sua revelia, se presentificará, de alguma forma e em algum momento. Todavia, entre um serviço e outro, Beto e Pepe se mostram engolfados na espera, no interstício esvaziado de sentido, no hiato amornado e insípido, ainda que inteiramente tomado por mediocridades comezinhas, eles, os ocupantes da cena, eles, os protagonistas sob encomenda, estão como que avassalados pela suspensão do tempo, um tempo de custa, que se demora, que se retém, lânguido, e que acabará por amesquinhar, ainda mais, a tais personagens – parcelados, submergidos.9
Pepe é dado aos esportes e exercícios de força, vez ou outra, diz aplicá-los com sua parceira no ato do sexo eivado de fetiches de submetimento e dominação. Beto se detém em lições de contabilidade que ele saca de livros e das classes reproduzidas por um gravador, ele as escuta e repete. Se trata de preparar-se para uma eventualidade, vá se saber, Beto não se sente sob os confortos de uma sinecura, talvez se lhes possa vir a faltar o emprego, Pepe é solteiro, tem uma amante, sabemos, mas o caso de Beto é distinto, ele é o provedor de uma família inteira, tem esposa e uma filha pequena, o futuro quem saberá o que virá a ser, talvez que os serviços encomendados por Galíndez rarefaçam, talvez que surjam novas diretrizes em tempos de paz, talvez que, dia menos dia, eles não sejam mais úteis aos intentos do patronato, quiçá eles se façam figuras carimbadas, destas que se tem de eliminar afim de fazer torrar arquivo, incômodo registro, espécie de operativo limpeza, passar um ‘esponjão’ no recinto, evitar a presença de personas non gratas, Beto sabe de um caso assim, sabe do que se passou com um companheiro de serviço, ouviu de seu próprio testemunho coisas que não lhe caíram bem às quadras da consciência, ele conta a Pepe, escutemos a sua voz, ele quer tomar a si as rédeas do futuro – que lhe falta, que falta a todos, sabemos, ele não será capaz, eles estão condenados de antemão, eles são réplicas de Galíndez, mas ainda assim, escutemos a voz de Beto:
(Pepe olha Beto. Lhe toma umas de suas anotações e lê)
Pepe: Liceu Profissional Cima?
Beto: Estudo aí agora.
Pepe: E para que você se meteu nisso?
Beto: Sabe, velho, eu quero progredir, sabe, e por conta disso comecei a estudar contabilidade, secretariado geral e o tema dos impostos. Quero ter um lugar na vida. Um futuro.
Pepe: Você não está satisfeito com esse trabalho?
Beto: … satisfeito eu estou.
Pepe: Então?
Beto: O que acontece é que esse trabalho pode terminar de uma hora para outra.
Pepe: Como? O que você está dizendo? Você é louco? Esse é o trabalho mais seguro do mundo. Além disso, você já é um expert… um especialista! Olha esse garoto que veio aprender conosco. Por que será que nos mandaram ele? Porque somos imprescindíveis.
Beto: Sim… somos imprescindíveis. Porém, sabe o que é? Depois do que aconteceu com o Ahumada… eu tenho pensado em tantas coisas.
Pepe: Para com isso, o Ahumada era um louco. Você sabe muito bem. Estava mal, não ia durar muito tempo.
Beto: Você sabe que ele era um mestre no trabalho. Ainda assim, cada vez menos o convocavam para trabalhar, lhe pagavam atrasado, a gente não queria conversar com ele, para não ficar mal, não é?
Pepe: Não, ultimamente ele vinha trabalhando muito mal.
Beto: Não, Pepe, as coisas não eram bem assim.
Pepe: O que que não era bem assim?
Beto: Para mim, ele disse outras coisas. Me disse que quando estava trabalhando, Galíndez falava primeiro e lhe dava ordens; dez minutos depois, voltava a falar e modificava as coordenadas inteiramente e quando ele voltava a trabalhar, Galíndez lhe telefonava dizendo que ele havia desobedecido as suas instruções. (…). Você sabe, Pepe, eu conhecia o Ahumada desde que comecei a fazer esse trabalho. Para mim, ele era um mestre, um fora de série! Um destes tipos que não tem igual! Eu não podia abandoná-lo.
Pepe: E o que aconteceu?
Beto: Às duas da madrugada, tocou o telefone, Ahumada atendeu… eu o vi pálido, ele tremia, então tirei o fone dele e me pus a escutar… lhe diziam que ele fosse embora, que largasse o trabalho, que não servia mais, e que se não fosse embora do país eles o liquidariam… (pausa). Para mim a voz era a de Galíndez.10
Apesar de tudo, Beto e Pepe seguirão a espera da próxima ligação telefônica. A expectativa é que seja a voz de Galíndez, voz que planta os dias que virão.11
3
E Eduardo, o personagem aprendiz, como será que Pavlovsky o caracteriza? Será, também, tangido por contradições e complexidades, evocado em distintas facetas e camadas, ou será qualificado de forma brusca, não lapidada, um arremedo oblíquo e restrito à superfície estriada de seu aparato sensório-motor? Adiantemos que não será esta a via de ingresso ao personagem, a dramaturgia e a encenação de El Señor Galíndez atestarão em contrário. Eduardo não está solto e perdido no tempo, ele atende às suas coordenadas históricas12, ele enverga no dorso as sujidades do agora – àquele 1972 -1973 no que a ditadura empresarial-militar agonizava, ele talvez saiba que os métodos terão que ser modificados, que o dispositivo terá que ser aprofundado, que o recuo deste instante será a condição necessária ao rearmar-se, cirúrgico e letal, até que vingue o tempo que já se avizinha.13
Eduardo saíra há pouco da Colimba – qual seja, do serviço militar obrigatório, está com 20 anos, ousemos certo cálculo quase-aleatório, saquemos a Pavlovsky uma data não disposta por seu punho e letra, digamos que Eduardo seja da classe 1953 – ano de seu nascimento, que ele tenha sido recruta naquele exército de Onganía Levingston Lanusse, que ele estivera aos exercícios de preparo militar ao ano de 1971, estamos fabulando, vejam bem, estamos encorpando de forma inadvertida o texto de Pavlovsky, estamos às derivas, inventariando o que Pavlovsky sequer escreveu, estamos avançando sobre um pedaço de vida de Eduardo que não nos foi apresentado pelo seu autor, estamos rompendo a quarta parede da encenação, e também da dramaturgia o que é dizer da folha não rascunhada, estamos alargando suas fronteiras, pensando que havia uma vida pregressa a este Eduardo, o colimba o recruta o conscripto, que ele experimentara as réstias disciplinares de uma caserna iluminada pelos preceitos da doutrina de segurança nacional, que ele, Eduardo, se acostumara a buscar entre aqueles que se revoltam com a opressão política e econômica a face mortífera da Górgona, estamos situando o recorte temporal do texto de Pavlovsky numa largueza processual que o atravessa em distintas direções epocais, pensando que talvez tenha havido, aos personagens, e no caso aqui o de Eduardo, uma antessala feita de carne e osso e pulsões e desejos, outra ambiência habitável, um mapa de causalidades, de condicionantes, estamos inventando/ nos enganando que os personagens de uma peça tenham vida pregressa, vá se saber se descobrimos alguma pista/ digitais/ traços de arcada dentária, vá se saber, afinal eles, os personagens todos, o teatro realista exasperado de Pavlovsky não seria senão o espelho expresso do real social por sobre o qual se está debruçado, com relação ao qual se procura ofertar um ingresso, a avaliação crítica de nós mesmos, e então Eduardo, o personagem, não chegará gratuito, de um passe de mágica até onde ele esteve e se tornou; ele, Eduardo não chegou cru e desnudo àquela sala de El Señor Galíndez, Eduardo já havia sido trabalhado pelas fileiras antinacionais que haviam tornado as forças armadas argentinas seu preposto institucional; ele, Eduardo, o personagem, já não estaria como um mármore bruto deixado à educação primitiva, endurecida, árida, sertaneja pela pedra, esta virgindade ruim, esta tábula rasa, este começar do zero, ele não estaria aí, Eduardo bebeu com gosto o caldo torto do açude de Galíndez e outros mais. Havia um preparo ali prévio, nele, seu corpo em sendo esta superfície inteiramente plasmada e costurada de inscrições ideológicas.14
Ou nada que isto, desloquemo-nos às antípodas destes argumentos, e pelo contrário, seria então Eduardo um autômato cingido, tão somente, por comandos input output, esculpido à imagem e semelhança de Beto e Pepe? Estará ele apenas tocando para frente o bastão ou as baquetas de uma orquestra viciada? Talvez que não. Terminantemente não é este o caso de Eduardo. Afinal não é sem razão que, logo de cara, ele provocará a indignação de Beto e Pepe por envergar conhecimentos tático-estratégicos acumulados na leitura dos livros escritos por Galíndez. Eduardo é aquele que estudou as linhas do texto, aquele que viveu as agruras do quartel. E Beto e Pepe parecem perceber sua obsolescência, este descarte que se lhes avizinha logo que Eduardo chega sob a indicação de Galíndez. Notemos este diálogo logo ao princípio do texto:
“Beto: (a Eduardo) Estás mentindo! (a Pepe) Te juro, Pepe, que um dia Galíndez vai me ouvir! Como é possível que não nos consulte?!
Pepe: E alguma vez ele nos consultou? Do que falas?
Beto: Não, mas para uma coisa como essa ele devia nos ter avisado antes. Isso é diferente. Afinal de contas, não somos novatos. Ele sabe que nós dois juntos trabalhamos muito bem. Já nos disse isto muitas vezes.
Pepe: (a Eduardo) O que você tá olhando, palhaço?
Beto: (a Eduardo) Tá pensando que vai estragar as coisas aqui?
Eduardo: Não senhor, afinal, vocês dois me parecem ótimo.
Pepe: Porém, a nós dois você desagrada profundamente. A tua presença nos enche o saco, tá entendendo?
Beto: Se dependesse de mim, te botava pra fora a pontapés.
Pepe: Não precisamos da ajuda de ninguém.
Beto: Nós nos bastamos a esse trabalho, tá entendendo?
Pepe: A gente tá acostumado a trabalhar em dupla e você veio foder o nosso ritmo.
Eduardo: Se eu soubesse que ia provocar tanta discórdia não teria vindo.
Beto: No entanto, você pediu pra vir para cá!
Pepe: O que você veio fazer aqui, nos espiar?
Beto: Galíndez não manda ninguém pra cá que não queira vir.
Pepe: Qual é a tua? Você é alcaguete? Filho da puta!
Beto: Reviste-o, Pepe. (…).15
Não estaria Eduardo, agora, no ‘tempo dramático do teatro’ ingressando a uma escola de formação de quadros? Não seria essa uma sinopse pertinente ao texto El Señor Galíndez de Pavlovsky, o desenvolvimento gradual e contínuo da novíssima geração hiper especializada nas técnicas de submetimento e tortura para o avanço do saqueio imperialista e de seus sócios locais?! Eduardo em sendo a expressão individuada deste processo, desta conformação, um agente, uma peça, um objeto de encaixe a esta lógica operacional, quiçá um fazedor de conhecimento, um pequeno produtor de especiarias. Afinal, não estaria palmilhando, degrau por degrau, a sua instância futura no corpo de especialistas aos trabalhos sujos do maquinário de opressão capitalista? Não poderíamos dizer que El Señor Galíndez, desde a perspectiva de Eduardo – esta personagem tomada como protagonista, funcionaria como uma espécie de romance de formação, ele, Eduardo a ser conduzido até àquele ‘ambiente habitável’, ele a ser submetido aos ritos de ingresso e passagem, o sistema de humilhação, as surras e xingamentos, a desqualificação seriada, as vantagens/desvantagens de um sistema de premiação-punição, o experimento de laboratório sobre o corpo das prostitutas, o capuz encobrindo a identidade do verdugo ou daquele que está sob a ação do terror, o uso dos instrumentos de corte, agulhas, seringas, entorpecentes, as algemas e cordas, o iodo espalhado nas partes nevrálgicas, a maquineta que dispara a corrente elétrica, o balde de água que acelera e acentua a descarga, tudo isto regado a lampejos de sexo – a genitália como matéria contábil e sob terminologia atuarial, seu corpus estatístico, a penetração forçada como se fora de uma estocada às paredes do útero, os minutos gritando cortados e afiados numa balança performática, e de tudo isto somado, a confissão extraída, o desfibramento do caráter, o esfacelamento subjetivo, orgânico, emocional, e a palavra puxada de dentro daquele, um qualquer, que terá que falar, e falar, e contar, e esquecer, e denunciar, e gritar, e tentar cuspir, e evadir-se de ali em tentativa-tentação, e mentir, e fabular, e oferecer nomes datas endereços, tudo falso, tudo correto, a delação a encher relatórios, e a alimentar novas ações nas que os grupos de tarefa serão instados a se lançar.16
4
Eduardo estará pronto ao final do texto e da sessão de exercícios práticos. Quando da 4ª ligação telefônica de Galíndez, Beto e Pepe se exasperam, ou quase. É que tudo estava pronto e arranjado para mais uma sessão de trabalho, e eis que Galíndez põe na mesa uma contraordem, deve-se pôr em suspenso a operação. Disse que a situação não era boa e propícia. Que havia que deixar baixar a poeira sobre os fatos. Beto fará alusão ao estudante morto pelos excessos cometidos por Pepe – que se defende dizendo que estritamente cumprira os ordenamentos de Galíndez. Mas não era ainda a hora de levá-lo ao óbito, havia informações ainda a colher, e o estudante não resistiu. Quem terá cometido erros? Mas que importa esta tira da sorte, este lance de batatas ferventes, pouco importa. Pepe e Beto estão exauridos. Quiçá tenham sido pegos em calça curta como num alarme falso, a parede de chapiscos onde, outrora, Ahumada, um mestre, um fora de série aos olhos de Beto fora lançado em descarte. Mas que importa isto?
Está garantida a renovação da engrenagem, as ferramentas foram ajambradas, lubrificou-se as peças de contenção e movimento, Eduardo está preparado, é a nova geração ganhando o protagonismo da cena, ele agora estará sozinho no palco, já e já o pano abaixa, no entanto, ainda há tempo para sua profissão de fé, ouçamos o que ele diz:
“Eduardo: A nação toda sabe de nossa profissão. Também sabem, inclusive os nossos inimigos. Sabem que nosso labor criativo e científico é uma trincheira. E assim, cada qual deve lutar para garantir a sua vitória definitiva contra os que intentam, sob ideologias exóticas, destruir nosso estilo de vida, nosso ser nacional”.17
Uma vez mais, tocará o telefone. Já sabemos quem está do outro lado do aparelho, o Senhor Galíndez. Eduardo o atende, com um gesto marcial, a mão na testa, em continência, ele tem uma primavera extensa ao horizonte.
André Queiroz é escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF).
Esse texto expressa a opinião do autor.
* El Señor Galíndez é uma obra teatral escrita pelo ator, dramaturgo e psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky (1933-2015), encenada pela primeira vez no ano de 1973. Vejamos este largo trecho testemunhal de Pavlovsky sobre o processo de criação do texto dramatúrgico e seus intentos: “Eu tinha um objetivo muito claro: escrever uma obra de denúncia sobre a tortura. Porém, realmente, não tinha mais do que isto. Estávamos em março de 1972. (…) Me chegavam apenas imagens desordenadas, caóticas, intensíssimas, porém as imagens brotavam sem poder se moldar como um todo. Havia ideias, conceitos, e somente um personagem real: o inspetor Galíndez. (…) O inspetor Galíndez, torturador especializado e científico, preparado pela CIA, invadia todas as minhas cenas. Era como um pesadelo. Não podia me livrar dele, os demais personagens careciam de força dramática. Não havia teatro: havia cenas narrativas. (…) Não havia conflito. Os personagens transitavam oniricamente, deambulavam como sonâmbulos em um espaço rodeado de fantasmas. Belos fantasmas, porém, também transparentes e ambíguos. (…) De repente, me surgiram os dois personagens. Eu havia matado o inspetor Galíndez como personagem real: somente assim adquirira valor simbólico, e nasciam Beto e Pepe, os dois torturadores da obra. (…) A ideia chave, o grande objetivo pelo qual deveria transcorrer a obra, era a Responsabilidade do Sistema, representado pelas chamadas telefônicas do Sr. Galíndez. O Sr. Galíndez era nosso Inimigo n.1: somente lutando contra o Sr. Galíndez e não conta a tortura como fenômeno isolado se pode eliminar os torturadores. A tortura como instrumento do sistema capitalista”. IN: Revista Crisis: Buenos Aires, agosto de 1973. Link de acesso ao texto de EL SEÑOR GALÍNDEZ: https://pdfcoffee.com/eduardo-pavlovsky-el-seor-galindez-2-pdf-free.html
- Ao longo da peça de Pavlovsky, os personagens Beto e Pepe aguardam as coordenadas de ação de Galíndez que apenas lhes chega por meio de telefonemas – quatro no total. Podemos dizer que os personagens estão tangidos pela ‘espera’ e pela ‘circularidade’ demarcada pelas injunções de Galíndez – que nunca se mostra, que ‘ninguém’ nunca viu, que está restrito a revelar-se tão somente através das chamadas telefônicas atendidas por Beto, e que podemos sintetizar sob o espectro fluido de uma presença-ausência. Como em ‘Esperando Godot’, de Samuel Beckett, assim como em ‘El Montapratos’ (The dumb waiter), de Harold Pinter, os personagens dispostos à ação dramática ‘ocupam o tempo largo e esvaziado da espera’. Sobre tal questão, sugerimos a leitura do artigo de Nicholas Rauschenberg, Uma recepção realista de Samuel Beckett? Circularidade/interrupção em O Senhor Galíndez de Eduardo Pavlovsky. Link de acesso: https://periodicos.ufpb.br/index.php/moringa/article/view/27179/14483 ↩︎
- Importante destacar a livre interpretação que ousamos da obra de Eduardo Pavlovsky no que tange às giras dos personagens. Todavia, destaquemos alguns trechos nos que a referida ‘presença/ausência’ de Galíndez faz despertar as inquietações e desassossegos em Beto e Pepe:
“(…) Pepe: Porém… não posso acreditar nisso. Galíndez gosta bastante de nós. Quantas vezes nos elogiou por nosso trabalho?
Beto: Mas quem nos elogiou?
Pepe: Como ‘quem nos elogiou’?
Beto: Como sabe se foi Galíndez quem nos elogiou?
Pepe: Porque ele nos mandou telegramas escritos e assinados por ele!
Beto: Os telegramas podem não ter sido enviados por ele.
Pepe: (Assustado) E por quem então?
Beto: Por alguém que se faça passar por ele. Como sabemos que é Galíndez se faz dois anos que trabalhamos para ele e ainda não vimos a sua cara?
Pepe: (Tranquilizando-se) Porém Beto, Galíndez existe… digo, é uma pessoa real… de carne e osso, tal como a gente.
Beto: Sim, suponho que sim.
Pepe: (Assustado) Como supõe? Só está faltando você me dizer que ele poderia não ser de carne e osso? Fosse assim, o que fazemos com ele? Para quem trabalhamos? De quem recebemos ordens?
Beto: De Galíndez, Pepe!
Pepe: Então, está resolvido. Estamos aqui porque ele nos dá as ordens… e nós obedecemos. Ele nos paga e nós trabalhamos. Não me enche mais o saco!
Beto: E que não estou seguro. E se estivermos aqui recebendo ordens de uma outra pessoa? Como sabemos para quem trabalhamos se nunca vemos a Galíndez?” IN: PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez. (p.16-17) ↩︎ - Certa feita, após uma das ligações telefônicas, na que Beto revela ao patrão que estão um tanto entediados no ‘entretempo da espera’, Galíndez lhe acena com uma surpresa, diz para que algum deles vá até a esquina que há dois pacotes de presentes que lhes anuviará os humores. Vejamos este trecho do texto de Eduardo Pavlovsky:
“Beto: (Atende) Alô, sim senhor Galíndez. Tudo bem, muito obrigado. Bem, na verdade, não estamos muito contentes não, diria que estamos um pouco entediados. Sim, senhor. Uma surpresa? Aqui? Sim, senhor, estou escutando. Perfeito, senhor. Compreendido, senhor. (desliga o telefone. Se volta para Eduardo). Vai até a esquina, garoto. Vão te entregar dois pacotes da parte do senhor Galíndez.
Pepe: Dois pacotes?
Beto: Ele nos manda dois pacotes para que a gente não se entedie.
Pepe: Não será uma mesa de ping-pong como daquela vez?
Eduardo: Chegando na esquina, o que faço?
Beto: Vai passar um carro e te entregarão os dois pacotes. Compreendes?
Eduardo: E o que faço com os pacotes?
Pepe: Não é para levá-los para a casa dos teus pais, não é seu idiota?!
Beto: Tragá-los para cá, infeliz, rápido”.
Enquanto esperam pelo retorno de Eduardo, Beto e Pepe voltarão a ponderar sobre a angústia que lhes toca este tempo largo de espera; vez mais, se atualizarão as dúvidas e inquietações sobre se Galíndez é de fato uma pessoa, ou quem sabe, ele seja mais de uma pessoa, Beto relata que sua voz desta vez estava mais rouca do que de costume, Pepe releva mencionando que talvez ele tenha se resfriado. Até que Eduardo retornará com os dois ‘pacotes’. Sigamos um pouco este trecho do texto dramatúrgico de El Señor Galíndez:
“(Se escutam passos e surgem duas jovens mulheres com vendas nos olhos. Atrás delas, vem Eduardo).
Beto: Que é isto?
Eduardo: O carro chegou na esquina e desceram estas duas garotas. Me deram uma carta para vocês. (Entrega a carta a Beto).
Pepe: É genial, Beto! Os dois pacotes são duas putas! Sacou?!
Beto: (Lê a carta) ‘Queridos Beto e Pepe’
Pepe: Queridos, hein?! (Pepe segue lendo a carta) ‘Aqui lhes mando duas garotas para que vocês se divirtam. Façam o que quiserem’.
Beto: ‘Obséquio da casa’.
Pepe: Assinado.
Beto: Galíndez!
Pepe: Um macho!
(As jovens estão paradas no centro do quarto. Juntas uma da outra. Beto e Pepe se olham. Beto tira o cinto e o bate com força na mesa. As garotas correm, assustadas. Pepe toca o traseiro de uma. Beto se coloca em frente da outra).
Beto: Tire a venda! Tire!
(A cada vez que ela tenta tirá-la, Beto lhe dá um tapa na mão. Pepe faz sinal a Eduardo para que participe também. Os três disfrutam da cena. As jovens tentam se esquivar dos golpes e bofetadas)”. IN: PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez, p.26-29. ↩︎ - Em mais uma de suas ligações, Galíndez ordenará que tudo esteja pronto em dez minutos para que o trabalho se inicie. Beto lhe perguntará o que fazer com as prostitutas. Galíndez dirá que as leve até a esquina e deixe que elas sigam o seu caminho. De hora a outra, tudo se rearranja na ambiência – o cenário se desfaz, o quarto com cama e móveis poucos e baratos se revelará na sua verdadeira função prática; os personagens se mostrarão inteiramente motivados, ávidos por, enfim, ocupar-se de seus quefazeres habituais, fazendo uso de sua expertise acumulada. Vejamos este trecho:
“(… O ambiente se transformou de um quarto qualquer em um local de tortura. Muitos elementos se transformaram. Somente há luz focal. Chega Eduardo. Ao vê-los fica totalmente desconectado).
Pepe: Não te assustes, garoto, é a rotina.
Beto: (A Eduardo) Trouxeste roupa?
Eduardo: Não me disseram nada, senhor.
Pepe: (A Beto) Quantos mandaram?
Beto: Dois.
Pepe: Como você está?
Beto: Como sempre, com vontade de trabalhar”. IN: PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez, p.35-36 ↩︎ - Em um trecho do Nunca más: informe de la Comisión Nacional sobre la desaparición de personas sobre a prática da tortura nos Centros Clandestinos de Detenção durante a última ditadura argentina, se afirma: “Os Centros Clandestinos de Detenção foram, antes de tudo, centros de tortura, contando para isso com pessoal ‘especializado’ e ambientes propícios a tal finalidade, chamados eufemisticamente de ‘salas de cirurgia’, e toda uma gama de insumos utilizados nas distintas técnicas de tortura. (…) As primeiras sessões de tortura tinham por objetivo o ‘amolecimento’ do recém-chegado e estavam a cargo de pessoal indistinto. Uma vez estabelecido que o detido podia proporcionar alguma informação de interesse, começavam as sessões a cargo de interrogadores especiais. Ou seja, que nem sequer se efetuava uma avaliação prévia que pudesse estabelecer se a pessoa a ser sequestrada possuía realmente elementos significativos para os seus sequestradores. Por causa desta metodologia indiscriminada, foram apreendidos e torturados tanto membros de grupos armados, como seus familiares, amigos ou companheiros de estudo ou trabalho, militantes de partidos políticos, sacerdotes ou laicos comprometidos com os problemas dos pobres, ativistas estudantis, sindicalistas, dirigentes de bairro e – um insólito número elevado de casos – pessoas sem qualquer tipo de prática gremial ou política. Bastava figurar em uma agenda de telefones para passar imediatamente a ser ‘alvo’ dos tristemente famosos ‘Grupos de Trabalho’. IN: Nunca más – … Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 2018 (p.63-64). ↩︎
- PAVLOVSKY, E. El Señor Laforgue, op.cit. (p.02-03). ↩︎
- Cf. PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez, op.cit. (p.33-34). ↩︎
- Nos termos de Eduardo Pavlovsky: “O Sr. Galíndez e seus chamados telefônicos aos torturadores Beto e Pepe lhes subministrando ordens – representava o SISTEMA – com todas as suas contradições. Beto e Pepe, torturadores profissionais, são os que submetem suas vítimas durante as sessões de tortura, porém são personagens prescindíveis quando o SISTEMA, ou melhor, o Sr. Galíndez, não os necessita mais e se tornam substituíveis por outros. Por isto que Beto e Pepe vivem em uma incerteza permanente a cada chamado do Sr. Galíndez. Nunca poderiam saber sobre seu futuro porque foram testemunhas ativas da maquinaria institucional da tortura. Para eles, gente de baixa extração cultural, os chamados do Sr. Galíndez lhes convertem em vítimas”. IN: PAVLOVSKY, E. Resistir Cholo – cultura y política en el capitalismo. Buenos Aires: Topía Editorial, 2015 (p.86). Link de acesso: https://www.topia.com.ar/sites/default/files/resistir_cholo.pdf ↩︎
- Atentemos a este trecho de um artigo de Alfonso de Toro sobre o teatro de Eduardo Pavlovsky, e aqui, mais especificamente, sobre a peça que abordamos: “(…) Pavlovsky se confronta com o problema da angústia, da opressão, da tortura e do poder anônimo e cruel da ditadura. El Señor Galíndez nos traz à memória o 1984 de Orwell uma vez que Galíndez é somente uma voz que se revela através do telefone e a qual seus cúmplices ou torturadores, Pepe e Beto, não estão seguros de ser sempre a mesma. Seus sequazes vivem na incerteza, parte do sistema de opressão e da angústia, esperando sua chamada para receber um novo ‘trabalho’ ou um novo ‘pacote’, pessoas que se rebelaram contra o sistema e que devem ser postas ‘em ordem’ novamente. O senhor Galíndez, inclusive, teria escrito um ‘tratado’ sobre a tortura que serve de base para a preparação dos neófitos”. IN: DE TORO, A. El Teatro postmoderno de Eduardo Pavlovsky. Repositório da Universität Leipzig, pp.59-80 (p.66). Link de acesso: https://home.uni-leipzig.de/detoro/wp-content/uploads/2014/03/Teatro_Pavlovsky.pdf ↩︎
- Cf. PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez, op.cit (p.14-16). ↩︎
- Vejamos o que diz Eduardo Pavlovsky acerca da ‘controvérsia’ de ‘humanizar’ as personagens de torturadores em seus textos dramatúrgicos: “No teatro, buscamos descobrir a ambiguidade, essa zona incerta do ser humano que pensarmos ser necessário desvelar esteticamente. Condenamos sua ética, porém revelamos sua tormentosa ambiguidade. Essa é a subjetividade que nos interessa esteticamente nos personagens da repressão. Desde o personagem, percorrer o intricado mundo dos afetos de pessoas que romperam sua ética; confrontar essa ética com seu reverso estético. A ética da multiplicidade. Assumir esteticamente, em sua índole complexa, a subjetividade na problemática do repressor, não é mais do que nos aproximarmos à possibilidade dramática de uma nova forma, futura, de repressão: o controle social e suas sutis formas possíveis, através de um novo tipo de repressor. Em Memorias do calabouço (1990), Mauricio Rosencrof e Fernández Huidoro, militantes uruguaios detidos entre 1972 e 1983, no Uruguai, falam dos repressores: ‘Quero me dirigir a patologia dos oficiais que se embruteceram conosco. Existe a tese de que os que mais agrediram eram os que tinham dentro de si tendências sádicas desenvolvidas. Resisto a considerar enfermos àqueles que eram mais perversos nas torturas, concedendo-lhes um diagnóstico psiquiátrico, porque seria limitar a questão a graus de patologia individual. (…) A metodologia utilizada pelo exército foi a de fazer todos participarem, oficiais, enfermeiros, médicos, todos tinham que ‘sujar as mãos’ para que todos se sentissem implicados, e, além disso, o excesso foi o normal na instituição. Por isso, rechaço que Astiz ou Mason sejam sádicos. A essência do sadismo como patologia dentro do exército é secundária. O constante é a normalização em que se converte o anormal’”. IN: PAVLOVSKY, E. Piedad del torturador. Buenos Aires: Página 12, 29 de novembro de 2007. ↩︎
- Tal como o próprio teatro de Eduardo Pavlovsky, vejamos, através de seu depoimento, como ele apresenta a sua démarche dramatúrgica: “Eu diria que tive uma primeira influência que tem a ver com o teatro de vanguarda europeu, pensemos o que foram os anos 50, Beckett, Ionesco, Adamov, Pinter um pouco depois, tudo muito europeu, essa foi a influência que tive – isso faz com que meu primeiro teatro seja conceitualizado por Jorge Dubatti (que é quem o estuda aqui, na Argentina) como teatro de vanguarda – que seria aquele teatro que se dedica a estudar as ansiedades e as angústias do pós-guerra que tem em Beckett o seu epicentro. Depois, de forma natural, vivendo em um ambiente como o nosso, com o passar dos anos, me foram atravessando coisas, era difícil que a um tipo jovem não lhe atravessasse a Revolução Cubana, o Maio Francês, depois se deu o Cordobazzo – que foi uma coisa impressionante para a nossa cultura, e quase não se menciona o Cordobazzo, então meu teatro começou a se politizar, e aí aparece La Mueca, La Cacería, El Señor Galíndez, Telaranã, que seria um teatro mais atravessado pelo social-histórico latino-americano, os aparatos repressores, a tortura como instrumento institucional, não como sádicos que agarram uma maquininha, mas como a instituição que ensinava – tal como faziam nossas forças armadas que faziam interiorizar a isto a gente jovem tal como Alfredo Astiz, ele tinha 22 anos, lhes mostravam que os inimigos eram as madres e que era aí que havia que levantar as denúncias para salvaguardar a pátria, há que ser franco que a coisa se deu desta maneira. (…) E se tornou impossível me desprender do social porque há um social que é histórico, que é imaginário, não há nada que não seja social histórico, está interiorizado em nós, é impossível dizer ‘eu parto daqui e não olho o social’ porque se está dentro do social, dentro do entramado da cotidianidade, o político e o social estão entramados, somos consequência disto”. IN: Entrevista de Eduardo Pavlovsky no Programa Las Palabras, por Carlos Ares (capítulo 4) – Canal Encuentro, Buenos Aires, s/d. Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=lcvzcZ7FdaA (Grifo nosso) ↩︎
- Vejamos este parágrafo do historiador Norberto Galasso: “[O ministro da economia] José Alfredo Martínez de Hoz reconheceu que ele e seus amigos conspiraram a partir do dia 11 de março de 1973 [dia da eleição do governo civil de Héctor Cámpora depois de sete anos de ditadura empresarial militar entre 1966-73] para recuperar o poder perdido naquilo que Leopoldo Melo chamava ‘a encruzilhada traiçoeira do quarto escuro’. Vários são os setores que incidem na firme determinação de pôr fim ao funcionamento da democracia formal. Um destes fatores reside em que o avanço popular, desde o ‘Cordobazzo’, em 1969, em diante, como ocupações de cidades e operações armadas, havia aterrorizado a classe dominante. O chão havia tremido sob seus pés como se ela própria, com todos os seus privilégios, estivesse a ponto de desmoronar. Daí sua reação fascista e sua decisão de mergulhar a Argentina em um banho de sangue. Para ela, era indispensável ‘uma punição’ destinada a evitar qualquer repetição futura de semelhantes rebeldias. O segundo dos fatores diz respeito a que setores da classe dominante se propuseram ‘reordenar’ a economia argentina e, como em toda grande restruturação se dá em detrimento dos interesses populares, sua implantação somente seria possível à custa de sangue e fogo para aplacar a resistência das vítimas. A estes dois motivos, se somará a crise do grande movimento nacional, cujos antagonismos internos, acentuados depois da morte do General Perón, debilitaram profundamente o governo presidido por Isabel Perón. Finalmente, em quarto lugar, o imperialismo norte-americano encontra a oportunidade para preponderar sobre a Argentina: saqueá-la financeiramente, dominar seu mercado interno e estrangeirizar seu aparato produtivo. Tradicionalmente uma semicolônia inglesa, a Argentina havia intentado um desenvolvimento autônomo a partir de 1945 e concluída essa experiência, o Tio Sam somente pode ingressar nessa economia competitiva através dos investimentos da época de Arturo Frondizi [1958-62] e das desnacionalizações da época do Gal. Juan Carlos Onganía [1966-70], porém a volta do peronismo em 1973 havia obstaculizado seu predomínio. Nesse momento, se fazia propícia aos Estados Unidos para avançar sobre essa Argentina em cujos quartéis prevalece a defesa da ordem ocidental e cristã. Ou dito de outra forma, a propriedade privada que as agrupações guerrilheiras e os levantes populares haviam posto em questão”. IN: GALASSO, N. Historia de la Argentina – desde los pueblos originarios hasta el tempo de los Kirchner. Tomo II. Buenos Aires: Colihue, 2012 (p.505-506) (Grifo nosso). ↩︎
- Nos termos de Marcos Novaro e Vicente Palermo: “Esse plano executado com zelo desde fins de 1975 em todo país se inspirou na doutrina contra insurgente que havia se convertido no núcleo essencial do imaginário militar, e que identificava como um inimigo mortal, o qual se devia combater a sangue e fogo. Como foi que esta doutrina de claros traços totalitários, e a força de vontade nela inspirada adquiriram a consistência e o radicalismo necessários para instaurar o terrorismo de Estado? A percepção, por parte das Forças Armadas, da ‘ameaça comunista’, no período antecedente ao golpe, é só uma parte da explicação, e não a mais significativa. Ter sido alvo direto de ataques guerrilheiros foi apenas a confirmação, consciente ou inconscientemente glorificada e instrumentalizada, requerida por um diagnóstico, um ideário e um projeto que, mais do que a uma reação exaltada e circunstancial, respondiam a uma profunda convicção que vinha se gerando havia muito tempo. Mais precisamente desde meados dos anos 1950, quando se iniciou um longo ciclo de instabilidade política no país, pelo qual se imputaria como responsáveis tanto o peronismo, crescentemente radicalizado e indomável, como a esquerda revolucionária. Passo a passo, desde então, foi tomando forma a ‘doutrina de segurança nacional’, que identificou um inimigo social, político e ideológico com muitos rostos e braços, que atuava em distintos terrenos e com variadas formas organizacionais e métodos: a ‘subversão’”. IN: NOVARO, M & PALERMO, V. A Ditadura Militar argentina 197601983 – do golpe de Estado a restauração democrática. São Paulo: Edusp, 2007 (p.108). ↩︎
- Cf. PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez, op.cit (p.8-9). ↩︎
- Vejamos este parágrafo de Eduardo Luis Duhalde: “O diagrama militar aplicado depois do golpe de Estado de 24 de março foi de caráter nacional simultâneo. O plano militar terrorista cuidadosamente preparado ao longo do ano de 1975, teve como eixo central a comunidade informativa, ou seja, os distintos serviços de informação de cada força sob a coordenação do Serviço de Informação do Estado (SIDE). Através deles, foi realizada a compilação da informação de todas as pessoas e estruturas orgânicas que deviam ser ‘atacadas’. Todo indivíduo qualificado de ‘esquerdista’ era um inimigo a exterminar. Cada estrutura ‘infiltrada’ devia ser depurada; aquelas que estavam ao serviço direto da ‘subversão’ deviam ser destruídas. Com relação ao movimento operário, a tarefa da ‘comunidade informativa’ foi prolixa e paciente. Oficiais de inteligência percorreram todo tipo de estabelecimentos industriais, fábrica por fábrica, oficinas grandes e médias, e junto com as patronais elaboraram as listas de elementos indesejáveis: membros de comissões internas, ativistas sindicais, trabalhadores com militância política, com antecedentes grevistas, etc. Mais difícil se apresentava, dentro do diagrama militar, a tarefa de exterminar aos membros das organizações políticas revolucionárias, na medida em que estas tinham uma estrutura clandestina – forçosamente depois da ação da Triple A [grupo paramilitar Alianza Anticomunista Argentino – que atuava desde o ano de 1974] – e uma organização celular apoiada no ocultamento da identidade dos seus membros. A informação-base de posse dos Serviços de Informações devia servir como ponto de partida aos ‘Grupos de Tarefas’ das Forças Armadas mediante a aplicação do ‘método de série-conjunta’, ‘da periferia ao centro organizativo’, baseado no ‘efeito multiplicador da informação coletada’. Noutras palavras, a aplicação sistemática da tortura a familiares, colaboradores e membros periféricos, para chegar assim, sequencialmente, a membros mais orgânicos, até alcançar às cabeças das organizações. Com somente um critério comum: a eliminação física de todos eles, mesmo daqueles cujo compromisso político era mínimo ou circunstancial”. IN: DUHALDE, E.L. El Estado Terrorista argentino. Buenos Aires: Colihue, 2014 (p.337-338). ↩︎
- Cf. PAVLOVSKY, E. El Señor Galíndez, op.cit. (p.40). ↩︎