Protesto de residentes em saúde em Brasília, no dia 11 de maio. Foto Banco de Dados AND
Residentes médicos e multiprofissionais realizaram, ao longo da semana, paralisações por todo o Brasil e em alguns estados anunciaram greve por tempo indeterminado. A bolsa paga pelo Ministério da Saúde está atrasada há cerca de dois meses. Vários deles tiveram seus cursos interrompidos para atuar no atendimento da pandemia de Covid-19.
As residências médicas e multiprofissional em saúde estão dentre as várias metodologias de formação em saúde, ou seja, uma pós-graduação. Atualmente o Ministério da Saúde financia o total de 22.302 bolsas, sendo 13.496 de residência médica e 8.806 de residência multiprofissional.
A principal característica das residências é realizar-se através do trabalho em saúde, contudo o avanço da precarização do Sistema Único de Saúde (SUS) também afeta os residentes que, ao invés de se dedicar ao programa, estão cada vez mais tornando-se força de trabalho precarizada e atuando no lugar dos trabalhadores da saúde. Situação que está se tornando cada vez mais comum em todas as unidades do SUS; antigamente ocorreria somente nos Hospitais Universitários. Em meio à pandemia de Covid-19 vários programas foram interrompidos e os residentes agora reforçam as equipes de atendimento em hospitais por todo o país.
Os residentes têm uma jornada semanal de 60 horas de trabalho, sendo 48h práticas e 12h teóricas em regime de dedicação exclusiva, ou seja, não podem trabalhar em outro lugar. Contudo, a quantidade de denúncias e os locais que praticam aumento dessa carga horária vêm aumentando cada vez mais, conforme relatam o Fórum Nacional de Residentes em Saúde (FNRS) e a Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR). Essa precarização, por sua vez, prejudica diretamente a formação.
O residente multiprofissional psicólogo, João Costa, uma das lideranças do FNRS, denuncia as precárias condições da formação e do SUS que influenciam diretamente na qualidade de todos os cursos de residência médica. “A gente está sem orientação nenhuma, fica nessa dualidade. Uma hora, é trabalhador e, outra hora, é residente. Legalmente, nós somos estudantes. São questões que vão se acumulando e a bolsa é apenas um retrato. Só que isso é descumprido historicamente, devido ao desinvestimento na área da saúde, à defasagem de recursos humanos. O que tem sido feito? Substitui-se a mão de obra. Mas ele não tem a expertise da especialização e ele é jogado no cenário de prática. A gente tem várias denúncias de que eles eliminaram a contratação de novos profissionais. Temos denúncias de instituições filantrópicas, que são, na verdade, privadas, que criam programas de residência e demitem todo seu corpo técnico e lucram com o programa. Não há nenhuma fiscalização dessa formação. Deveria ser no SUS, ser construída para o SUS. A gente não tem política nacional. Isso é um déficit histórico. Por isso, ficamos presos a legislações muito simplistas”, denuncia.
O residente Átila Tresohlavy, fisioterapeuta, também membro do FNRS, denuncia que em muitas famílias o residente é a fonte de renda. “É muito frustrante. A gente trabalha em serviços diferentes, mas todos na linha de frente do enfrentamento à Covid-19. E não recebemos o mínimo, que é a bolsa. É um descaso que já ocorre há alguns anos. Os ingressantes trabalham com contrato de dedicação exclusiva e sem direito a vale-transporte ou a vale-refeição. Nós decidimos tomar medidas mais drásticas porque, com a pandemia, muitas famílias estão desempregadas e têm no residente a sua única fonte de renda”, protesta.
O residente, médico, Euler Sauaia Filho, uma das lideranças da ANMR, estima que cerca de 12 mil residentes médicos e multiprofissionais estão sem receber. “Os residentes estão sendo deslocados de suas atividades para atender Covid nos hospitais, sendo obrigados a exercer uma atividade que não faziam. Por exemplo, uma residente de pediatria que só atendia criança tendo que atender na Unidade de Terapia Intensivo (UTI) de adulto. Os hospitais não estão contratando médicos. Pegam o residente para atender no lugar do médico, porque o contratado custa oito vezes mais”.
Augusto Ribeiro, uma das lideranças sindicais do Sindicato dos Médicos de São Paulo, relata que alguns já pensam em largar o curso por causa dos constantes atrasos. “São residentes que estão, inclusive, pensando em largar a residência. Aqui em São Paulo a gente tem muito residentes que vem do Interior e de outros Estados e não tá conseguindo pagar as contas. Porque com 60h semanais dificilmente você consegue ter outra fonte de renda”, conta ele.
Paralisações, greve e protestos
Em Campinas (SP), cerca de 300 residentes estão atuando na linha de frente do combate à Covid-19 nas unidades básicas de saúde, além do Hospital Mario Gatti, Hospital de Clínicas (HC), Hospital Universitário da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Hospital Universitário da PUC. Os residentes denunciam que não recebem a bolsa desde o início da pandemia.
A residente multiprofissional fisioterapeuta Thamires Facundes Dias, que atua no Hospital Mário Gatti, denuncia que as paralisações são necessárias. “É muito complicado, não queríamos parar nesse momento, queremos trabalhar, mas estamos correndo risco sem receber para isso. Temos medo do que possa soar nesse momento, essa paralisação, mas é para ter voz e reivindicar reconhecimento. Em qualquer outro local o funcionário já teria saído, se continuamos até agora é porque a população precisa. Nós não podemos ter outro vínculo empregatício, e a bolsa é a única fonte de sustento. Muitos estão sem conseguir pagar o aluguel, dependendo de carona, se enfiando em empréstimos. Trabalhamos 60 horas por semana, contamos com esse dinheiro. É um impasse, cada hora falam uma coisa, uma data diferente para o pagamento, enquanto isso ficamos aqui aguardando esse repasse”.
A residente multiprofissional, enfermeira, Julia de Castro Lovatto, atua nas unidades básicas de saúde, relata que os residentes estão realizando empréstimos para sobreviver com a falta de pagamento das bolsas. “Estamos pagando para trabalhar, não recebemos auxílio transporte, nem alimentação, a bolsa é o único pagamento que recebemos, e não está sendo pago. Infelizmente, não é de aplausos que a gente vive, e isso mostra a falta de reconhecimento. É difícil, fica insustentável, vemos colegas que pegaram a doença, estamos em contato diariamente e nos arriscando. É o nosso trabalho, estudamos para isso, queremos ajudar as pessoas mas precisamos nos sustentar”.
A residente Franciellen Souza Ferreira, terapeuta ocupacional, relata que nem todos conseguem ter apoio financeiro da família. “Este atraso não impacta só o residente. Nós também temos família, e nem sempre a família dá conta. Meu pai é mototaxista, minha mãe é dona de casa. Minha bolsa impacta a vida deles, porque eu saí de um emprego para estar na residência e agora preciso deste dinheiro para ajudar eles”, explica Ferreira, que deixou os pais em Uberlândia, em Minas Gerais, para estar no programa. “Falei para meu pai ficar tranquilo, que eu o ajudaria. Que é também para ele não sair de casa. Então no que eu puder eu vou ajudá-los, mas sem a bolsa?”
Em Santos, litoral de SP, cerca de 80 residentes que atuam na Baixada Santista estão sem receber. Umas das residentes multiprofissionais, enfermeira, que preferiu não se identificar, relata que não está conseguindo pagar contas básicas. “Divido o aluguel de um imóvel com outra moradora e mexi em uma reserva para pagar essa despesa e custear o transporte. Por sorte, a menina com quem moro é compreensiva e está arcando sozinha com todos os outros gastos, como gás, produtos de limpeza e contas de luz e internet”, conta.
Na capital São Paulo, residentes de 21 hospitais da capital estão sem receber há dois meses e muitos deles já estão com graves dificuldades financeiras. A residente multiprofissional, nutricionista, Sofia Travieso atua na UTI do HC de São Paulo e desde o início da pandemia vêm atendendo pacientes com Covid-19. “Eu me planejei para vir pra cá sabendo que eu ia ter essa bolsa de auxílio, para pagar todas as contas,. Eu resolvi morar em uma kitnet sozinha, fiz as contas e com o valor da bolsa eu conseguiria me virar tranquilo. Por sorte eu tenho familiares que tão conseguindo me ajudar, pelo menos eu pagar o aluguel e essas contas de casa nesse momento, mas eu tenho relato de outros colegas e amigos que estão sendo ameaçados de despejo”, desabafa.
O HC, um dos centros de referência para Covid-19 no estado de São Paulo, deslocou em abril os médicos residentes de todas as especialidades para atendimento na emergência da unidade, contudo os residentes denunciam as precárias condições. Um médico residente da neurologia foi contaminado e internado na UTI.
Um dos residentes, que preferiu não se identificar, relata a falta de pagamento. “Por causa da falta de profissionais no mercado e o avanço rápido da doença no estado, o HC está tirando residentes de neurocirurgia, reumatologia ou obstetrícia, por exemplo, e colocando para o atendimento direto aos pacientes da Covid-19, sem a mesma proteção trabalhista”.
Outro residente, que preferiu não se identificar, relata que outros residentes também já foram contaminados pela falta de Equipamento de Proteção Individual (EPI). “Ele não é o primeiro residente a se contaminar. Outros residentes também já pegaram o vírus e, felizmente, conseguiram se recuperar. A nossa grande questão é: se a gente morre ou tem alguma sequela grave nesse processo, não estamos cobertos por nenhuma lei trabalhista. Se a gente tem uma complicação mais séria, não tem convênio médico, seguro de vida ou qualquer outra estabilidade”, denuncia.
Em Londrina (PR), cerca de 35 residentes multiprofissionais e médicos que atuam na Santa Casa e no Hospital Universitário paralisaram as atividades no dia 11 de maio. Em Curitiba, foram cerca de 40 residentes que também participaram do ato cobrando o pagamento das bolsas.
O residente Denner Melo, fisioterapeuta, relata. “Entrei em contato com o Ministério da Saúde e foi orientado que o pagamento estaria certo para acontecer agora no mês de maio o pagamento do mês de abril, mas o do mês de março não tem uma data prevista para ocorrer. Nós paramos por dez dias na esperança de receber, mas caso não ocorra vamos fazer uma nova reunião e, infelizmente, se não houver pagamento teremos que parar novamente”.
Em Apucarana, no mesmo estado, cerca de 40 residentes multiprofissionais e médicos realizaram um ato no centro da cidade no dia 11 de maio, com cartazes denunciavam o atraso das bolsas. O residente Matheus de Morais Cordeiro, nutricionista, relata. “Estamos divididos em enfermeiros, fisioterapeuta, psicólogo, assistente social, são profissionais que atuam na cidade inteira e com a pandemia estamos na linha de frente auxiliando o acolhimento da população nas Unidades Básicas de Saúde. É difícil se manter na cidade sem salário. Ainda mais quem é de longe como colegas do Mato Grosso, Curitiba, Londrina e Maringá”.
Em Ponta Grossa, também no PR, cerca de 50 residentes multiprofissionais e médicos realizaram em frente ao Terminal Central um ato, no dia 13 de maio, contra a falta de pagamento. A paralisação das atividades começou no dia anterior.
Em toda a cidade atuam cerca de 88 residentes no Hospital Universitário da Universidade Estadual de Ponta Grossa e nas unidades básicas de saúde da cidade. Além da falta de pagamento das bolsas, também denunciam a precarização das unidades e a falta de EPI. Até mesmo os residentes aprovados em 2019 estão sem receber.
Rivair Gonçalves Júnior, um dos residentes, relata que alguns estão com dificuldades até mesmo para comprar alimentos. “Muitos residentes estão há dois meses sem receber a bolsa-salário, trabalhando de graça. A maioria veio de outras cidades e não está sem condições de ir até o trabalho. Estamos nos expondo ao risco de contágio em meio à pandemia do coronavírus. É uma situação bem complicada. Tal situação tem dificultado, inclusive, para que os profissionais tenham dinheiro para comprar alimentação, aluguel, contas de água e luz, dentre outras situações”.
Em Brasília (DF), foi realizado um ato no dia 11 de maio em frente ao Ministério da Saúde. A residente Larissa Alencar relata que os atos exigem o pagamento dos residentes imediatamente.
“A gente tá em frente ao Ministério da Saúde no movimento nacional de greve que se inicia hoje, em articulação com residentes de todo o Brasil. A gente tá trabalhando há dois meses sem receber qualquer salário e no meio de uma pandemia. Os residentes são profissionais formados que fazem parte das equipes de saúde, seja em unidade básica, nos hospitais, na gestão do SUS e a gente tá há dois meses sem receber nada. A gente tá aqui hoje para reivindicar o pagamento imediato de todas as bolsas atrasadas dos residentes de todo o Brasil. A greve vai se sustentar até que esse problema seja resolvido”.
Em João Pessoa (PB), o ato ocorreu no dia 12 de maio em frente ao Núcleo do Ministério da Saúde, no centro. Uma das residentes, que preferiu não se identificar, denuncia a negligência do Ministério. “Os residentes estão precisando paralisar, deixando a população ainda mais sem assistência porque não há alternativa”.
No Espírito Santo, cerca de 85 residentes multiprofissionais que atuam na capital Vitória, Aracruz e Colatina estão sem receber a bolsa há dois meses. Os programas de residência também são gerenciados pelo Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde, órgão da Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo que também confirma o atraso dos pagamentos.
Gabriel Perdigão, terapeuta ocupacional pela UFES, atua no programa de Residência Multiprofissional de Saúde da Família; ele denuncia a frequente mudança nas datas de pagamentos das bolsas. Além disso os residentes aprovados esse ano ainda não receberam nenhuma bolsa. “O Ministério da Saúde sempre passa uma nova data de recebimento. Iríamos receber dia 8, mas não recebemos. Mais uma vez, o novo ministro publicou que os residentes receberiam no dia 15. Eu liguei várias vezes e eles disseram que é quando fecha a folha de pagamento, dia 15. Ao todo, no estado, há cerca de 85 residentes sem receber. A situação está insustentável. Estamos sem o vale-alimentação e não posso ter outro vínculo de trabalho. Esses profissionais estão tendo que se apoiar na família e em amigos para conseguir comer, às vezes. Alguns têm filhos, outros vieram de fora do estado”.
Em Vilhena (RO), os residentes paralisaram suas atividades no dia 11 de maio. Além da falta de pagamento das bolsas, eles também denunciam a falta de EPI. Apenas duas máscaras estão sendo fornecidas por plantão, sendo que as recomendações técnicas são a troca do EPI a cada duas horas.
O que falta ao SUS sobre às OSS
O AND vem denunciando essa situação de precarização do SUS e dos trabalhadores da saúde. Antes da pandemia de Covid-19, ainda no mês de março, os residentes multiprofissionais e médicos realizaram um ato nacional cobrando o reajuste das bolsas e denunciando o abusivo aumento da contribuição previdenciária da categoria de 11% para 14% após os cortes de direitos aplicados com a draconiana “reforma” da previdência do governo dos generais e de Bolsonaro. Agora também convivem com a falta de pagamentos.
Já no mês de março o governo estabeleceu, via Medida Provisória (MP), novas medidas trabalhistas. A partir de agora, as corporações que controlam o SUS e a saúde privada poderão estabelecer plantão sem limite de horas aos agentes de saúde, imposição do banco de horas, não precisarão treinar seus profissionais e outros ataques diretos aos direitos dos trabalhadores da área.
Apesar do governo ultarreacionário alegar falta de recursos na saúde, em todo o país há o avanço das Organizações Sociais da Saúde (OSS) para o gerenciamento dos Hospitais de Campanha, ao mesmo tempo em que os hospitais públicos entregues para as OSS estão em precárias condições e os trabalhadores lançados às péssimas condições de trabalho e remuneração. Trata-se de uma transferência bilionária de dinheiro público para essas grandes corporações, que embolsam às custas da exploração dos trabalhadores e do péssimo serviço.