Foto ilustrativa
O Conselho Universitário da Unimontes, presidido pelo atual reitor Padre Antonio Alvimar, cumprirá, nos próximos dias, um dos mais terríveis gestos de servilismo de sua história por meio de um ritual que tem se tornado, para além do que representa de fato, algo corriqueiro e banal. A concessão do Título de Doutor Honoris Causa ao prefeito Humberto Souto, além de um cinismo escancarado, é a mais pura expressão do servilismo acadêmico a uma personagem politica bastante conhecida na região. Nasceu, cresceu, viveu, se aposentou, retornou à política e terminará seus dias como político profissional. Namoro de longo tempo com a ditadura militar, eleito deputado pela Arena, representante e defensor fervoroso do Governo Fernando Collor de Mello, sendo inclusive o último e solitário defensor da inocência de Collor, mesmo quando esse já havia renunciado à presidência para não ser condenado pelos crimes cometidos, motivo do seu impeachment; também um latifundiário de alta monta para a sociedade rural de Montes Claros e para a elite catrumana[i]. O título a esse senhor é simbólico, por vários motivos. Na verdade, é a concessão de uma das maiores honrarias acadêmicas a todos os latifundiários que sempre flertaram proximidade com a Unimontes, basta visitar os arquivos das páginas sociais dos Jornais locais ou os arquivos da Assessoria de Comunicação da Universidade. Esse título é a celebração das saturnais de uma universidade, hoje representada por um Padre (algo muito significativo), com a política de uma elite da cidade ainda com seu ranço coronelista. Então, nada demais quanto a isso. Elite, latifúndio, ranços coronelistas, tudo isso faz parte da constituição da universidade, também do poder eclesial, pois que a cidade mesma, uma grande fazenda, jamais escapou dessa sina. Estão juntas desde sempre, também no latifúndio, igreja e política regional, a paróquia e a fazenda convergindo para dentro da universidade. Que esse triste e lamentável episódio da Unimontes seria escrito algum dia, nem Descartes duvidaria disso.
A Unimontes sempre acolheu com boa intenção a agenda política oriunda de várias direções. Aliás, trata-se de uma reescrita da história de submissão política dos reitores que passaram pela Universidade, pois esse título já fora concedido aos ex-governadores Aécio Neves (que não se deu ao trabalho de vir receber o título) e Antônio Anastasia; à secretária de Governo Renata Vilhena; ao ex-presidente José de Alencar, mas pelo fato de ser à época um grande empresário da região; ao bioquímico Jorge Almeida Guimarães, por ser presidente da CAPES; ao professor Mario Neto, por ser presidente da FAPEMIG; a um tal Fuad Jorge Noman Filho, ex-secretário de obras do governo Anastasia; também concedido à Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, talvez pelo excelente serviço prestado à ascensão da extrema direita ao poder no Brasil (mas também ela não fez questão de vir receber o título). Mais recentemente, por proposição de um conselheiro, o professor Antônio Wagner Rocha (a primeira vez que uma proposta dessa natureza partiu de um conselheiro e não de um reitor), o conselho aprovou a concessão do título ao Poeta Aroldo Pereira e à escritora Amelina Chaves, algo que de fato começava a fazer sentido e parecia que com o poeta e a escritora o conselho universitário estaria redimido e a Unimontes voltaria a respirar literatura, poesia, arte, cultura. Leve engano… Não à toa, a concessão do título ao poeta Aroldo Pereira, um poeta vagabundo, foi alvo de ataques sórdidos nas redes sociais por parte de uma gente sebosa do arraial das formigas, pessoas que se arvoram no direito de sapatear em cima do túmulo dos mortos indigentes, pois que nutrem um profundo sentimento de serem os donos da cidade. Entenda-se: Aroldo é um “João” ninguém e tem sobrenome ralé de “Pereira”. Amelina é “Chaves”. Os devotos das elites não conseguem nem mesmo distinguir a escritora do sobrenome que ela carrega, a avaliam menos por sua obra do que por sua herança de família, por isso a reação hostil ao poeta marginal dos Parangolés. Conhecessem a sua obra, saberiam, esses bufões da cultura, que um verso bem cunhado vale mais do que os próprios nome e sobrenome que eles mesmos assinam. Mas com Aroldo Pereira foi só uma leve brisa de esperança! De volta às suas origens servis, a reitoria da Unimontes submeteu ao Conselho Universitário, que aprovou quase que por unanimidade (como tem sido em todas as pautas de interesse da gestão superior…), a proposta de concessão do título de doutor honoris causa ao fazendeiro/político Humberto Souto.
De parte dos acusadores de Aroldo Pereira como indigno de tal honraria, agora nenhum suspiro em contrário. Afinal, nada mais justo do que reconhecer os favores recebidos pela cidade do seu político maior, o então prefeito, que iniciou sua carreira por essas terras, como vereador, em 1962. A sua história, dizem esses anões bizarros, demonstra por si só o merecimento do título. Ele teria elevado ao nível de “cidade desenvolvida” a fazenda esquecida no Norte de Minas. É de autoria dele, defendem os caras-pálidas, o projeto de estadualização da Unimontes, antiga FUNM, e com isso ele teria libertado o conhecimento das cercas da velha fazenda. Para dentro, a universidade se organiza ainda ao modo de uma grande fazenda com suas personagens clássicas facilmente reconhecidas na literatura regional sobre coronelismo e mandonismo. Não faltam jagunços e capitães do mato. Também circulam aos montes os serviçais voluntários prontos a delatar seus pares, vigiar em nome do Rei os súditos insubmissos, relatar ao patrão o desleixo dos peões, na esperança de recolher as migalhas que sobram da mesa farta da Casa Grande da fazenda. Do nascer ao pôr do sol, se ouvem as batidas fortes dos coturnos, o ruído das esporas a anunciar capatazes no cio e o estalar da chibata no pelourinho. No temeroso silêncio da noite do Campus, quando os cães uivam solitários como que alertando para os perigos da aurora, se preparam as minutas de resoluções e portarias que definirão, ao modo do mercador Shakespeariano, a natureza do sacrifício na carne dos professores. Aqui, no sertão, é preciso pagar com o próprio sangue. Direitos confiscados, mentes atormentadas, salários diminuídos, colegas desempregados, adoecidos, corpos esgotados. Evasão por toda parte, salas vazias, ninguém entra e todo mundo pode sair.
Para fora, a universidade dá pistas de avanços significativos em sua agenda. Das poses nas redes sociais com o governo de estado aos afagos dos grupos oligárquicos centenários da cidade, passando pelo gozo fanático dos devotos, tudo parece fluir bem no rio da normalidade acadêmica. Não nos enganemos, pois isso é somente a pálida imagem de uma universidade em decadência traduzida no nível de um discurso esperançoso, mas sem qualquer seriedade ou compromisso. É somente a manifestação patológica de um narcisismo que alimenta o ego do escravo na devoção que ele dispensa ao seu senhor. Escamoteamento cínico da realidade, como de praxe se pratica na “cidade do favor” (recomendo o belíssimo livro do professor Laurindo Mékie, A cidade do favor: Montes Claros em meados do século XX), do mesmo modo que se pratica na universidade do favor. A bem da universidade, os “pró-feitores” trabalham diuturnamente em ronda para selecionar os “bons” dos “maus” escravos. Água e comida aos bons, tronco e chibata aos maus. Com esse cenário country-senzala, não há dificuldade em entender a concessão de um título importante a um fazendeiro/político de nascença. É o pagamento de uma dívida moral, dirão alguns, para justificar seu servilismo às classes abastadas e de sobrenome importante da Cidade. Reafirmar o pacto social com as elites que jamais pode ser quebrado. Rastejam como vermes em torno do totem ao qual veneram como crentes esquizofrênicos. Servidão voluntária, dizia La Boétie; Moscas de feira, dirá Nietzsche.
A Unimontes, que traz nos seus muros o nome de Darcy Ribeiro, jamais se inspirou no seu patrono e parece desconhecer completamente o seu legado intelectual, além de não ter a mínima noção de suas advertências políticas. Tivessem lido pelo menos um pé de pagina de um dos vários livros dele, os atuais “gestores”, mas também os anteriores, saberiam que também no Norte de Minas “nós temos uma das elites mais opulentas, antisociais (sic!) e conservadoras do mundo”. É mais a essa elite que o Conselho Universitário agracia com o título de doutor Honoris Causa do que ao indivíduo Humberto Souto. Mas nessas terras do sertão, onde os fracos não tem vez, onde manda quem pode (ou tem terras, ou gado, ou dinheiro, ou sobrenome, ou calça esporas nas botas, ou veste toga, ou batina, ou usa anel de doutor) e obedece quem tem juízo (traduzido como o princípio da servidão voluntária), não é de se espantar com o desfecho dessa peça do teatro sertanejo. Uma gestão acadêmica de uma universidade pública em uma região pobre, historicamente castigada pela seca e pela política dos coronéis, dobra os joelhos, voluntariamente, diante do seu Senhor de Engenho e faz par com ele num gesto indecente de “comunhão de bens e interesses”.
Uma gestão acadêmica de uma universidade pública em uma região pobre, historicamente castigada pela seca e pela política dos coronéis, dobra os joelhos, voluntariamente, diante do seu Senhor de Engenho e faz par com ele num gesto indecente de “comunhão de bens e interesses”. E se trata disso mesmo, sem meias palavras. A concessão do título a Humberto Souto acontece justamente um mês depois de o Conselho Universitário, sempre paradoxal e devoto, anunciar a concessão do mesmo título a um homem nobre, um geraizeiro símbolo de luta e resistência, o Sr. Braulino Caetano dos Santos. Um homem do campo, agricultor familiar, um dos fundadores da agroecologia no Norte de Minas e líder das comunidades geraizeiras. Por proposição não da reitoria, mas de uma conselheira, a professora Luciene Rodrigues, o título de doutor Honoris Causa será concedido a um homem honesto, trabalhador, morador da comunidade de Abóboras na zona rural de Montes Claros e que chegou a representante das comunidades geraizeiras na Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Liderança importante de um povo que sofre desde sempre as agruras impostas pelas cercas das grandes fazendas. Sem holofotes, sem ostentação e com tímida repercussão, a concessão de um título tão nobre a um homem do campo não representa mesmo o anseio de uma classe que não suporta o reconhecimento da luta e da resistência de um povo que não se rende e não se vende a bagatelas.
A proposição do titulo a Humberto Souto, logo na sequência da concessão ao agricultor, não passa de uma compensação deslavada para pesar a balança do lado das elites e da gente graúda, a repetição compulsiva e incontrolável do desejo servil que se perpetua nos reitores da Unimontes e seus seguidores fanáticos. Como não poderia ser diferente, primeiro a Casa Grande depois a Senzala. O latifúndio será condecorado primeiro, certamente com hasteamento da bandeira e banda de música. No dia seguinte, a condecoração do camponês, certamente sem os mesmos reclames protocolares de um Senhor de Engenho. Mas o povo valente fará presença, porque não se rende e não se vende. De todo modo, a história desse título está definitivamente maculada pela concessão do mesmo a um homem do latifúndio, desses contra os quais o Sr. Braulino e seu povo precisam estar protegidos; desses contra os quais o Sr. Braulino e seu povo lutam de sol a sol para não serem pisoteados pelos cavalos dos capatazes e para não serem tocaiados pelos jagunços quando tudo se aquieta dentro da mata fia. Literatura regional que faria sucesso como crítica social, não fosse o seu realismo escancarado que paralisa nossa capacidade ficcional. A melhor tradução desse Theatrum foi resumida num pequeno comentário pela perspicácia poético-literária do professor, escritor e ensaísta Anelito de Oliveira. Perspicácia poético-literária, mas com o rigor parrésico que cabe somente a um escritor decente: “Coube a um reitor padre, negro, de origem humilde (eufemismo cínico que tanto apraz às elites), professor de ética, conferir um título de doutor honoris causa a um conhecido representante dos latifundiários do sertão mineiro, político conservador, ilustre colaborador do regime militar, do governo Collor! Que triste exemplo num dos momentos mais terríveis da história brasileira!
A Unimontes é Universidade? Que Conselho Universitário é esse que assina embaixo de tamanha atrocidade? Se um nazifascista foi eleito presidente, tudo é possível? É isso?”. Leitura ácida, desconcertante, em profundidade, quase que por aforismos, algo que nos faz engasgar com as palavras. Tradução literal do cinismo que domina a nossa universidade por esses nove meses de uma Gestão sem rumo, raivosa, sem alegria, sem esperança, sem futuro. À letra de Darcy Riberio, só há duas opções: resignar-se ou indignar-se. Mas é sertão! Ainda resta o Mandacaru! É inútil revoltar-se? Ainda nos resta o sonho da resistência de Bacurau, ainda que desidratado pela ameaça constante das esporas e da chibata. Ainda nos restam Aroldo Pereira com sua bicicleta voadora dos versos parangolés e Braulino Caetano com sua simplicidade de homem que nunca pensou em ser doutô, mas se iguala hoje com outro Honoris Causa, o catrumano Darcy Ribeiro!
[*] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes); professor e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) e professor do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF.FILO), ambos da Unimontes. O texto foi enviado ao jornal A Nova Democracia pelo apoiador de Montes Claros, D. Aroeira, e sua publicação foi autorizada pelo autor.
[i] Nota explicativa do colaborador D. Aroeira: O termo catrumano refere-se ao campesinato dos sertões do Norte de Minas. É usado para enfatizar determinadas caracterizadas culturais específicas do campesinato da região, particularmente no que diz respeito ao seu modo de falar e costumes relacionados ao seu modo de vida e produção, como o extrativismo de frutos silvestres típicos do serrado (como o pequi, coquinho azedo, cabeça de nego, etc.), vestimentas típicas, aspectos peculiares de sua culinária (arroz com pequi, umbuzada, paçoca de carne), etc. Muitas pesquisas sociológicas, históricas, antropológicas, linguísticas, etc. utilizam-se do termo para ressaltar as especificidades culturais do campesinato na região. No que diz respeito à linguística, muitas pesquisas tem sido realizadas tendo como base a celebre obra de João Guimarães Rosa “Grande Sertão Veredas”. Devido à presença de um forte regionalismo que, em boa medida, pode ser atribuído ao preconceito histórico sofrido por essas populações rurais camponesas, muitas das quais remanescentes de comunidades quilombolas, o termo é utilizado largamente no Norte de Minas como sinônimo de camponês e/ou sertanejo. A etimologia da palavra é controversa, não havendo um consenso a respeito. Sobre o “linguajar catrumano” indicamos a leitura do artigo Caipira não! Catrumano! disponível em: https://revistadomuseu.wordpress.com/2009/02/05/caipira-nao-catrumano/ e a canção do cantor popular Théo Azevedo linguajar catrumano disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ICsZWd6m_Iw
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