Entrevista com Khadijeh Habashneh, cineasta e arquivista do Cinema Militante Palestino

Khadijeh também é autora do livro “Knights of Cinema: The Story of the Palestine Film Unit”, que detalha extensivamente o trabalho dos pioneiros do cinema palestino, sobretudo de Abu Ali Mustafa. 
Khadijeh Habashneh e Abu Ali Mustafa no Festival de Cinema de Cartago de 1980, na Tunísia.

Entrevista com Khadijeh Habashneh, cineasta e arquivista do Cinema Militante Palestino

Khadijeh também é autora do livro “Knights of Cinema: The Story of the Palestine Film Unit”, que detalha extensivamente o trabalho dos pioneiros do cinema palestino, sobretudo de Abu Ali Mustafa. 

No mês de agosto de 2024, tive a honra de realizar uma entrevista por vídeo-chamada com a cineasta e arquivista Khadijeh Habashneh, membra integrante do Cinema Militante Palestino e que hoje coordena o Projeto de Preservação dos Antigos Filmes Palestinos (Old Palestinian Films Preservation Project). 

Khadijeh também é autora do livro “Knights of Cinema: The Story of the Palestine Film Unit”, que detalha extensivamente o trabalho dos pioneiros do cinema palestino, sobretudo de Abu Ali Mustafa. 

Aqui está uma degravação de tópicos levantados durante a nossa entrevista, que, se a princípio interessam aos cineastas e entusiastas dessa área, pertence a todos os que compreendem a contribuição que as artes dão à revolução social, e, sobretudo, a contribuição que a revolução social dá às artes.

Sobre o histórico do Cinema Militante Palestino

Sua primeira pergunta é: por que escrevi esse livro [1]? Escrevi o livro para levar à cabo a mensagem que o Cinema Palestino iniciou, quando apresentou a sua causa, a causa de seu país e a causa de seu povo às pessoas do mundo todo.

A causa Palestina antes de 1967 – i.e., antes da guerra na qual Israel ocupou o resto do território palestino – por 20 anos permaneceu no vago, deixada de lado. Na primeira vez que fomos à luta para falar sobre a Palestina e sobre a causa do povo palestino, no final dos anos 60, ninguém sabia o que esse nome significava. “Você está se referindo ao Paquistão?”, “não, à Palestina”. 

A gente explicava toda a história do princípio ao fim e acabamos descobrindo que, em todos os documentos ao redor do mundo, até mesmo nos documentos da ONU, a “Causa do Povo Palestino” ou a “Causa Palestina”, se tornou o “Problema do Oriente Médio”. 

Portanto, havia um grande trabalho a ser feito. Primeiro, entre o nosso povo, que ficou perdido por 20 anos, apenas lutando para sobreviver com seus filhos fora de seu país, para encontrar sustento e educação. Por 20 anos ficamos perdidos, refugiados em todo o mundo e, principalmente, no mundo árabe em torno da Palestina. Portanto, foi um grande trabalho: primeiro, o de recolocar a causa para seu próprio povo e para as novas gerações criadas fora da Palestina. 

É por isso que os primeiros filmes que fizemos foram exibidos nos campos de refugiados palestinos e nas bases Fida’i, aos guerrilheiros e às bases guerrilheiras que começaram em 1967, depois da guerra [2] … 

Na verdade, as exibições começaram antes, mas eram clandestinas e se tornaram abertas depois de 67, porque não havia mais nenhum regime que nos pudesse impedir, uma vez que tinham fracassado na guerra. O que é que eles poderiam nos dizer? “Os deixem fazer as exibições”. As autoridades tinham medo de que, se fizéssemos coisas do tipo, estaríamos estimulando uma guerra, e que “agora nós não podemos, não estamos prontos para a guerra”… Essa era a conversa deles, naquele momento.

A Al-Asifa, braço armado do Movimento de Libertação Nacional Palestino, no início, era composto pela Al-Fatah. Depois, eles se juntaram a outras organizações de diferentes vinculações, de esquerda e nacionalistas, algumas delas islâmicas, e que tinham diferenças com a OLP. Até mesmo o próprio Fatah estava aberto a pessoas de todo o tipo: não se tratava de um regime militar especial, ou uma organização militar, de esquerda, de direita… Era aberta para todas as pessoas dispostas a lutar contra Israel. Portanto, esse grupo precisava ser apresentado ao povo. Se costumava chamá-los de al-mukharribeen (vândalos), de irhab (terroristas); era comum tratá-los como rebeldes anti-regime, guerrilheiros… Como se não houvesse a questão da identidade nacional em jogo.

Quando a luta militante começou, tínhamos três pessoas que não eram formadas, àquela época, em escolas de cinema. Sulafa Jadallah, que foi a primeira mulher cinegrafista do mundo árabe – talvez até do mundo, porque naquela época havia muito poucas mulheres trabalhando no cinema, especialmente na fotografia cinematográfica. Ela tinha esse hobby por causa do irmão, que era dono de um estúdio de fotografia, que a levou a se apaixonar pelas câmeras e pela fotografia, e a estudar isso. Então, essa mulher, quando se formou em 64, ouviu falar sobre a luta militante. Embora esta fosse clandestina, as notícias chegaram a ela, e ela procurou por seus representantes, para saber se poderia ajudá-los em alguma coisa; e então começou a fazer filmes – fotos, a princípio – para os guerrilheiros fedayin, em especial, quando eles se tornavam mártires. Na mesma época, outros dois se formaram – Hani Janwharieh e Mustafa Abu Ali – e se agruparam, começaram a pensar juntos.

A revolução naquela época não tinha dinheiro. Disseram a eles “certo, vocês podem tentar gravar conosco, mas não temos recursos agora. Vocês podem começar com o que tivermos disponível”. Começaram a fotografar com suas próprias câmeras e mais tarde, depois de uma batalha da qual participaram, passaram a divulgar o trabalho militante, as operações, as demonstrações públicas, toda atividade que acontecia. Eles costumavam enviar suas fotos para o exterior. Muitas pessoas de todo o mundo, jornalistas e cineastas, queriam ver quem eram esses fedayin, quem eram esses que confrontaram o exército israelense em uma grande batalha em Al-Karameh [4] – batalha na qual os dois não conseguiram levar seus equipamentos de filmagem.

Fotogramas de “Crianças sem infância” (1980), de Khadijeh Habashneh.

Foi nesse momento que a revolução percebeu que precisava de ajuda nesse campo e começou a adquirir câmeras e outros equipamentos. O principal objetivo era a documentação, porque não se encontrava em lugar algum o registro das misérias que aconteceram com o povo palestino nos anos 1940, em 48. Houveram massacres e genocídios em alguns vilarejos, mas não existe nenhuma documentação sobre isso. Também se ouvia falar de algumas atividades heroicas que aconteceram no período, mas sem nenhuma documentação.

Então havia muito interesse em documentar tudo no início da ação militante, documentar até mesmo as operações militares que costumavam fazer no território ocupado, e produzir notícias, comunicados de imprensa para jornalistas acerca de todas as atividades em torno da revolução e sobre a OLP. A OLP criou muitas instituições para ajudar a população nos campos de refugiados. Até mesmo projetos econômicos, para ajudar as pessoas que perderam seus pais ou o homem da família… Para ensinar as crianças, treiná-las para o trabalho. Essas iniciativas levaram a muitas, muitas instituições e se costumava documentar tudo. Muitas batalhas contra o regime jordaniano em 1970 também foram documentadas, as operações militares, o social, o econômico… Até mesmo as conferências, os trabalhos sociais. 

Quando o povo começou a ser mobilizado em sindicatos, e se estabeleceram sindicatos para mulheres, para professores, para palestinos em geral, com o propósito de organizar o povo em suas várias categorias, para tudo isso se fazia a documentação. Todos esses tipos diferentes de sindicatos e associações começaram também a se mobilizar: as mulheres entre mulheres, as crianças entre as crianças, as mulheres entre as crianças e famílias… Os professores entraram em contato com os professores do mundo, estudantes entraram em contato com os estudantes, e os camponeses também… Para chegar ao mundo, através da política social, e elevar o conhecimento acerca da Palestina, da causa palestina e da luta palestina.

Nós éramos, naquela época, chamados de terroristas. Em 1967, 1968 depois que saímos da Jordânia e do Líbano, os israelenses e os europeus chamavam os palestinos de terroristas. Porque também houveram algumas operações de sequestros de aviões que iam para a terra ocupada da Palestina, e também sequestros de soldados. Era importante fazer essas ações, para chamar a atenção das pessoas. Quando ocorria, todos buscavam saber mais sobre, e então, os filmes explicavam.

Assim, o cinema trabalhou em paralelo com o trabalho militar. Nós costumávamos dizer que a câmera é uma de nossas armas. É a outra arma da revolução, de nossa luta, a câmera de combate. Isso é, na verdade, correto.

Porque os pioneiros do cinema palestino estavam ocupados com uma ideia: nós, que estudamos em Londres e no Egito, como podemos fazer filmes para a revolução? Devemos criar nossa própria linguagem, deve haver uma nova forma. Como podemos expressar isso? E eles começaram a mostrar os filmes ao povo e responder às suas indagações: Como o povo reage a isso? Será que ele entende nossa linguagem e a maneira na qual nos expressamos? 

Fizemos muitos experimentos no primeiro e no segundo filme que produzimos. Costumávamos exibi-los nos campos de refugiados e nas bases militares e ouvíamos as pessoas, a compreensão que tinham dos filmes, e também mudávamos a abordagem de acordo com isso. Nós dizíamos um dos slogans de Mustafa Abu Ali, que o cinema da revolução deveria ser o cinema do povo, de seu povo. Deveria ser entendido primeiro por seu povo, deveria se comunicar primeiro com seu povo e depois ir para o mundo.

Quando começamos a ser convidados a ir em exibições na União Soviética, no Vietnã, na China, em alguns festivais do mundo árabe, eles ficavam impressionados com o nosso trabalho. A primeira vez que exibimos em um festival foi em Damasco, em 1972, e então começamos a ser convidados para muitos festivais e nos tornamos conhecidos, a causa era mais conhecida, a revolução era mais explicada e conhecida. Até que, no final de 74, a revolução pôde ser mais organizada e institucionalizada, nos tornamos membros da UNA [5]. Então, houve um paralelo entre o desenvolvimento do cinema e o desenvolvimento da revolução.

Eu comecei meu trabalho com as mulheres. Acredito que, no início de qualquer movimento é preciso organizar o povo, explicar-lhe a sua causa, mobilizá-lo, informá-lo sobre a sua situação no mundo, sobre os nossos objetivos e como podem ajudar. Por meio dessas organizações, trabalhamos com mulheres, crianças, refugiados; abrimos creches, institutos. 

Eu trabalhava paralelamente entre o cinema e a mobilização popular. Mas chegou um momento em que precisei dedicar mais tempo ao cinema – em 1976, quando acumulamos um número enorme de documentação, e era difícil encontrá-la quando precisávamos. Foi quando eu criei o arquivo, junto com Mustafa. Fiz um treinamento e me integrei à seção do Departamento de Arquivo, tornando-me arquivista.

Em 1981 [6] foi a primeira vez que fomos bombardeados pelos ataques israelenses. Não apenas no Sul, nas bases guerrilheiras, mas também nas cidades e em Beirute, a capital do Líbano. Houve uma grande preocupação em particular com o arquivo, então, nós o transferimos para um local secreto, o organizamos e cuidamos do espaço para que fosse adequado para manter os documentos. Mas em 1982 [7], eles invadiram, perseguindo os palestinos aonde quer que estivessem. Em especial, os combatentes, todas as pessoas que se politizaram e os dirigentes da luta eram um alvo para os imperialistas e até mesmo para os regimes ao redor que tinham vínculos profundos com os capitalistas. Todos esses regimes hoje são mais americanizados. Portanto, nós trabalhamos sempre entre inimigos. É uma batalha, uma batalha contínua pelos palestinos. 

(…) Como dissemos, esses pioneiros do cinema – Cavaleiros, como eu os chamo no livro – tinham como objetivo principal apresentar a Causa Palestina para as pessoas ao redor do mundo e para seu próprio povo. Tinha como objetivo, primeiramente, se concentrar em como abordar essa questão, qual a abordagem mais favorável. 

Por exemplo, nos anos 60, Mustafa tentou usar animação no primeiro e no segundo filme, mas não funcionou, não foi muito compreendido, e então tentou usar outros meios. Mustafa tentou o teatro, montando cenas: levou crianças para brincar num tipo de peça que explicava como os capitalistas vinham, extraiam a fortuna do povo e o empobrecia, e como o povo poderia lutar, contribuir com a luta. Ou seja, fotografando e filmando essa peça e colocando partes dela no filme.

“Com Alma, com Sangue” – esse foi realmente o primeiro filme. Havia um antes, mas serviu mais como marco zero. Funcionava como um filme que costumávamos exibir nos campos e também fazer algumas perguntas, um pequeno questionário, perguntar às pessoas: o que vocês entenderam do filme? Do que gostaram? Do que não gostaram? O que sugerem? Usamos esses instrumentos também para alcançar nosso povo, e, de fato, se alcançássemos nosso povo, alcançaríamos outros povos.

Mais tarde, surgiram formas mais avançadas. Há um filme que agora é muito solicitado, Chamado “Cenas da ocupação em Gaza”, de 1973. Esse filme tem 13 minutos, mas conta o quanto as pessoas sofreram e resistiram. As duas coisas, assim como está acontecendo agora, já acontecia exatamente há 50 anos. Esse filme foi muito solicitado nos últimos dois, três meses, para festivais. Todos os festivais pedem, mesmo os que não são politizados, e exibem esse filme como uma forma de solidariedade com o povo de Gaza, ou com o povo palestino.

A mesma coisa com “Eles Não Existem”, de 1974. É uma outra maneira de atingir as pessoas. Quando usamos o slogan de Golda Meir e demonstramos o que está acontecendo no território, quando eles realmente fizeram um genocídio completo em um campo de refugiados palestinos… O filme demonstra esse genocídio e fala sobre o genocídio a partir disso. 

Então, no cinema, como você pode ver quando assiste aos filmes, existem muitos instrumentos que podemos utilizar. E não era algo inacessível: era para ser filmes simples, claros e bonitos; não é necessário falar muito. Ao mesmo tempo, haviam frases como “genocídio em Moçambique”, “genocídio na África do Sul”, “genocídio em Gaza”, e a partir daí o genocídio do campo de refugiados.

Khadijeh e o cineasta Samir Nimr durante a gravação de “Crianças sem infância” (1979).

Sobre o esforço pelo arquivo. Sobre a sociedade israelense atual.

Por que manter a história viva entre as novas gerações? Porque a memória é uma questão vital para a identidade humana e para a identidade nacional. Sem memória, você está perdido. Portanto, para a memória, para as novas gerações e para todas as pessoas ao redor do mundo, manter essa causa viva com documentos, fotos e cinema… Esse era o meu objetivo principal. Com o tempo as informações e até mesmo os eventos se perderam. Não existiam ferramentas que preservassem isso para o povo, para a vida, para o mundo. 

(…) Não foi fácil encontrar o arquivo, pois eu estava os procurando depois de quase 35 anos. Muitos escritórios fecharam, muitos institutos que eu conhecia já não existiam. Portanto, foi uma busca longa e difícil. Comecei com e-mails e cartas e, depois, viajando. Há pessoas que eu costumava contatar, e pedir para que procurassem e entrassem em contato se soubessem de algo…

Havia muitos coletivos de estudantes que costumavam nos ajudar, na França, na Europa, daqui e dali. Eles costumavam pegar filmes emprestados e exibi-los, como uma ação de solidariedade. Entrei em contato com todas essas pessoas para perguntar sobre os filmes, até que eu encontrei alguns na França: um de nossos amigos, que costumava trabalhar conosco, coletou-os em Paris. 

Então, fui para Paris com a ajuda de amigos cineastas. Quando íamos aos festivais, havia muitos cineastas que foram apresentados à causa palestina e queriam fazer algo a respeito. Eles costumavam vir a Beirute e nós os ajudávamos a fazer seus próprios filmes. Tive que pedir para eles, porque alguns deles tinham cópias de nossos filmes… Portanto, foi uma longa busca. 

Quando consegui reunir, por exemplo, 15 filmes em Paris, pedi a Serge Le Peron [7], “por favor, você poderia me encontrar algum lugar onde eu pudesse ver esses filmes em 16 milímetros, com moviola ou projetor para assisti-los?”, e ele respondeu que sim, na universidade tal, uma seção de cinema, que talvez possuísse os instrumentos. Então fomos à Cinemateca Francesa em Paris e eles tinham moviola porque estavam colecionando filmes de todas as épocas, filmes muito antigos e novos. 

Então eu fui lá e assisti a esses filmes, cerca de 16 ou 17 filmes. Eles foram muito generosos comigo… Me disseram: “diga o nome de dois filmes quaisquer, e nós os digitalizaremos para você”, como um presente pela minha visita. Eles digitalizaram “Com Alma, com Sangue”. 

Eu queria que esse filme continuasse lá porque não podemos apresentá-lo em outros lugares no mundo árabe, especialmente na Jordânia, no Líbano ou em outros lugares. Então eles ainda estão lá… Eles também digitalizaram “Cenas da Ocupação em Gaza”. Lá estão guardados os originais para nós, para quando tivermos um lugar seguro na Palestina. Quando tivermos soberania sobre nossa terra.

(…) E em toda essa operação de coletar arquivo, às vezes eu tinha que ir ao Cairo porque o Cairo é, você sabe, a Hollywood árabe. “Eles devem ter todo tipo de máquina”. Então lá eu fui também e, depois de dois anos procurando, encontrei a moviola que eles usavam para 35mm, sabendo que às vezes elas servem para 16mm. Se não usar, não serve pra nada, tem que se trabalhar nela!

Eu pude ver alguns dos filmes lá e limpá-los. Lá eles limpam os filmes, da poeira e dos resíduos. Coloquei dois curtas-metragens para restauração. É um processo muito caro. Por isso, tive que procurar parceiros que pudessem ajudar e manter algumas das cópias dos filmes. E até agora, nós estamos com seis filmes que temos que restaurar.

Os filmes ainda estão no Cairo, eu os mantenho no acervo pagando uma taxa. Deixo lá porque eles têm um bom lugar para guardar o arquivo: eles chamam de Frigidaire. Lá têm muitos filmes. Eles pedem por uma quantia, não muito, para manter o filme por um ano. E eu renovo até que o levemos para a cinemateca. A maioria de nossos filmes agora está com a Cinemateca de Toulouse. A Cinemateca de Toulouse se interessou bastante e veio até Jerusalém. Nos encontramos lá em 2018 e temos mantido a relação. 

(…) Agora os filmes, alguns eu encontrei em uma polegada, outros em fitas VHS, e tive de transformá-los em vídeo, DVD. Outros, os que estão em bobinas, foram para a Cinemateca de Toulouse. Consegui fazer a restauração de sete filmes, que sempre são solicitados: alguns deles, como os que você mencionou, “Cenas da ocupação em Gaza” e “Eles não Existem”. 

Agora meu filme também é muito solicitado, que é sobre crianças, sobre os direitos das crianças, “Crianças sem Infância”. Meu outro filme foi perdido no cerco a Beirute. Ele estava no último estágio de edição, estávamos prestes a adicionar a música e os efeitos sonoros… Mas saímos do estúdio e não pudemos retornar a ele, porque eles destruíram a estrada que levava a ele. 

Os israelenses passavam por lá. Eles compravam aviões, enviavam soldados e ocupavam a área por um certo tempo para atiçá-la e depois iam embora. Mas nesse caso eles destruíram toda a área. Quando alguns de nossos combatentes foram ao estúdio para pegarem as coisas de volta, não encontraram nada. Não encontraram as bobinas, nem as ferramentas, nem as máquinas – eles levaram alguns de nossos equipamentos. 

Ladrões! Ladrões de tudo, ladrões de terra, ladrões de dinheiro, ladrões.

(…) A sociedade, naquela época – sob a ocupação, em Israel – era uma sociedade diferente, na verdade. Naquela época em que estávamos sitiados em Beirute, sim, Sharon, com 100.000 soldados invadiu o sul do Líbano e cercou Beirute. Mas a sociedade em Israel era uma mistura de pessoas diferentes, pessoas de esquerda, de direita, misturadas… Algumas pessoas diferentes, algumas da Rússia, outras daqui. 

Agora, o Likud, liderado por Netanyahu, é mais radical e fanático de direita. E eles são estúpidos. Eles falam da religião e da promessa de Deus. Sim, estúpidos e loucos. Não sei como o povo deles os aceitam… 

(…) Eles estão tentando estragar o acordo desde que o Likud chegou ao governo. Eles começaram também a mudar a sociedade, de uma sociedade mista para uma sociedade fanática… Completamente direitista e muito radical. Não pertence nem mesmo aos judeus. É um discurso novo, novo e diferente, como uma alucinação, na verdade. É como se eles estivessem alucinando que Deus lhes deu terras, sem comentários. Portanto, agora a sociedade deles é muito agressiva.

E você pode ver o que está acontecendo em Gaza. Agora, eles estão começando a se espalhar para a Cisjordânia… Mas desta vez as pessoas não estão indo embora. Vocês estão acompanhando os eventos em Gaza, as pessoas passaram por misérias. Todos os tipos de ações inimagináveis aconteceram com elas, mas elas não estão indo embora. Alguns ficaram no norte de Gaza e disseram: “Ficaremos aqui. Se vocês quiserem usar a bomba nuclear, podem usar! Estamos aqui, não vamos embora.” Portanto, essa é a única coisa que eles podem fazer.

Fotogramas de “Tal el-Zatar” (1977), de Abu Ali Mustafa, Pino Adriano e Jean Khalil Chamoun.

Sobre o cinema palestino hoje.

O cinema palestino hoje é feito principalmente por cineastas, apenas. Mas eles não são reunidos, não estão em um instituto, grupo ou organização. Houve uma tentativa de Mustafa de reorganizar o Grupo de Cinema Palestino, que criamos no final de 1972, e cujo único filme de fato é o “Cenas da Ocupação em Gaza”. 

Depois do estabelecimento da Autoridade Nacional no território ocupado, parte da ajuda veio através das ONGs, e houve um tipo de discussão com o Ministério da Cultura da Autoridade Palestina, a quem pedíamos para que mantivesse algum fundo, nada muito grande. 

O Grupo de Cinema Palestino não funcionou por muito tempo após a morte de Mustafa. A nova geração quer trabalhar através de suas próprias iniciativas, não gostam de trabalhar em grupos como fazíamos durante a revolução. Costumávamos perguntar quem tinha um hobby entre os combatentes, se tinha um hobby de fotografia ou algo relacionado a cinema, engenharia de som ou música, e então os trazíamos desde a linha de combate para alguns países aqui perto, em Bagdá ou para o Egito, para receberem treinamento em cinematografia, engenharia de som e coisas do gênero. 

Agora os cineastas trabalham mais como indivíduos. Alguns se tornaram como produtores, coletando dinheiro ao redor da União Europeia, que possui um fundo para cinema e cultura. Eles oferecem verba para produzir alguns filmes todos os anos, alguns através do Ministério da Cultura, outros individualmente. 

Na verdade, as pessoas que fazem filmes com ajuda externa, em sua maioria, não podem falar sobre a existência de luta ou de conflito. Elas têm de dizer que agora há paz. E nunca houve paz. Mustafa criou um argumento para um filme chamado “Esperando pela Paz” – ele não conseguiu nenhum financiamento para esse filme! “Porque ‘esperando pela paz’, se nós já estamos em paz?”. 

Então, esse problema existe. Mas entre os filmes recentes, de festivais, há bons exemplares. Mas não se pode dizer que seja como aquele que fizemos, revolucionário ou militante. É um cinema que conta algumas histórias da população palestina. História de famílias, história de casais, história de um vilarejo, algo assim. É muito interessante e a maior parte é ficção. 

É por isso que agora a maioria das pessoas solicita os filmes antigos, porque eles falam sobre a causa em geral. Ou dão um pedaço dessa história, a história da causa. A história da luta, dos muitos massacres, em Sabra Shatila, e em Al-Mukhayyam… Tal el-Zatar, o lugar onde fiz um filme sobre suas crianças, assim como as crianças de Gaza agora, que perderam toda a suas famílias e só restaram as crianças, e não sabíamos seus nomes porque elas eram pequenas, muito pequenas para saber pronunciá-los.

Portanto, há uma grande diferença entre o cinema antigo e o atual. 

Mas eles estão fazendo um bom trabalho. Eles estão dando conta de parte da história palestina com pequenas histórias da luta, ainda que não da luta do povo palestino como um todo, vivendo o que vivem sob a ocupação, mostrando como vivem. 

Talvez falem sobre como invadem os vilarejos… Mas não acho que isso receberá algum orçamento da Europa ou de qualquer outro país. Eles talvez tenham que encontrar algum fundo nacional, de um banco… Ou de algumas boas economias palestinas, que ajudem em alguma coisa.

Sim, enfrenta-se esse tipo de situação, mas ainda há esperança. Depois que nosso projeto foi adiante, fizemos o acordo entre o Ministério da Cultura e a Cinemateca de Toulouse. Agora eles estão entusiasmados, têm uma seção para cinema, usada apenas para cuidar da doação para o pequeno fundo específico para o cinema. 

Eles dão, por exemplo, US$ 5.000, US$ 10.000 para iniciar um projeto, e iniciar a captação com outras fontes, para enviá-los para os festivais. Os festivais começaram a pedir a essa seção que indicasse filmes para festivais ou algo assim. 

Há uma ideia de criar um tipo de instituto para o cinema, que ainda não foi concretizada… Mas quando se analisa a situação, nunca, nunca será tranquilo construir um instituto desse tipo. Vamos ver, talvez no futuro nós consigamos ou eles consigam. Esperamos que sim. 

Conselhos para cineastas. Palavras finais.

[Para fazer um Cinema Militante é preciso] Estar mais perto do povo e acompanhar sua vida, documentar sua vida, conversar com ele… Se você tiver um filme, exiba-o com as pessoas e ouça-as. Acho que é muito importante ter um novo cinema relacionado ao povo e às suas causas. Um cinema que expresse suas causas. 

Muito obrigado por seu interesse e por sua cooperação. Desejo a você tudo de bom em suas exibições que vocês estão preparando no Brasil, um lindo país. Muito obrigado. Você é, de fato, um trabalhador árduo.

Daniel Moreno é cineasta, interessado por questões relativas à história e cultura dos povos em luta.

Esse texto expressa a opinião do autor.

Notas:

1 – Knights of Cinema (Cavaleiros do Cinema), publicado em 2023 pela Palgrave Macmillan.

2 – A Guerra dos Seis Dias, ou Terceira Guerra Árabe-Israelense, onde, ao fim, Israel ocupou as Colinas de Golã (então parte da Síria), a Cisjordânia (então parte da Jordânia), a Península do Sinai e a Faixa de Gaza (então do Egito).

3 – A Batalha de Al-Karameh foi um confronto onde a OLP, com suporte do exército da Jordânia, venceram uma incursão do exército israelense no território ocupado da Cisjordânia em 21 de março de 1968. Foi a primeira grande batalha desse estágio da Revolução Palestina e uma grande vitória moral para as forças guerrilheiras: mesmo mobilizando aparato militar desproporcional de 15.000 tanques M47 e destruindo o campo de refugiados Karameh, Israel não completou sua principal missão de capturar o principal dirigente da OLP, Yasser Arafat, e teve que se retirar.

4 – Associação das Nações Unidas.

5 – No dia 17 de Julho de 1981, aviões israelenses bombardearam um complexo de apartamentos em Beirute, alegando a presença de sedes de organizações ligadas à OLP, matando 300 civis e ferindo 800.

6 – Data do início da agressão de Israel ao Líbano em conluio com as milícias falangistas, iniciando a Guerra do Líbano e o Cerco de Beirute.7 – Serge Le Peron é ex-editor da famosa revista Cahiers du Cinéma e co-fundador do Groupe Cinéma Vincennes, responsável pelo filme pró-Palestina “A Oliveira” (1976).

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