Faixa estendida em ato de celebração aos 26 anos da Heroica Resistência Camponesa de Corumbiara, ocorrido dia 9/08 na Unir, em Rondônia. Foto Banco de dados AND
A Redação de AND entrevistou o advogado do povo Marino D’Icarahy Júnior, que faz parte da Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo) e atua como defensor dos quatro jovens camponeses presos políticos do Acampamento Manoel Ribeiro. Em sua entrevista, Marino evidencia a farsa montada para sustentar a acusação aos jovens camponeses.
Jornal A Nova Democracia: Já é possível identificar um certo modus operandi nessas ações judiciais e de perseguição a ativistas?
Dr. Marino D’Icarahy: Sim, o modus operandi desse estado policial é a formação do sujeito “terrorista”, que é um método bem a la Goebbels, que consiste em repetir, como é repetido em todos os processos onde a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) aparece, que se trata de uma organização terrorista, que supostamente usa táticas de guerrilha, enfim. Mas a realidade é outra. É exatamente a realidade inversa. Quem impõe esse terror bélico e armado no campo são as forças repressivas do Estado a serviço dos latifundiários e das “autoridades” que são os próprios ou outros que a eles são umbilicalmente ligados. Então é neste quadro que se dão os processos. E esse processo contra os quatro presos do Acampamento Manoel Ribeiro são um belo exemplo do que nós estamos falando aqui.
AND: Como atuavam as forças policiais na defesa do latifúndio e contra os camponeses acampados?
MD: Mesmo com a decisão do tribunal de justiça [que impedia a polícia de fazer cercos e barrar o acesso dos camponeses], as práticas de cerco contra os acampados só foram crescendo por todo o final do ano de 2020 e 2021, até que foi feito um flagrante dentro da fazenda ocupada. Três policiais militares e um pistoleiro que prestavam serviço de milícia privada para aquele latifúndio foram presos. Com eles foi encontrado farto armamento de todos os calibres e farta munição também. Em seguida, os policiais recrudesceram a repressão ao acampamento, tendo noites que sequer eles permitiam que acampados dormissem, descansassem depois de um dia intenso de trabalho, soltando fogos (eles, os policiais!) à noite toda, deixando os acampados sem dormir, mas alertas. Era esse o clima do lugar quando numa das tentativas de invasão da Fazenda pela polícia, os camponeses empreenderam talvez a mais aguerrida resistência ao ataque da PM, conseguindo fazê-los recuar.
AND: Como se deu o quadro das prisões?
MD: Passou a imperar um desejo de vingança incontrolável da tropa militar da polícia que culminou no dia 14 de maio, com a prisão de três camponeses e uma estudante. Prisões covardes, arbitrárias, acusações mentirosas e deslavadas que nós desmontamos a partir das informações vindas dos próprios camponeses e dos presos, unindo com as imagens produzidas pela própria PM, a partir do drone e das viaturas que participaram da operação que resultou na prisão dos quatro. Veio à tona um conjunto de barbaridades praticadas pela PM naquela operação. Policiais jogaram as caminhonetes contra o corpo dos camponeses, com eles já machucados, rendidos, presos, tomaram “botinadas” na boca do estômago, socos, foram ameaçados com faca no pescoço. E ali é perguntado sobre quem estava portando armas. Em interrogatório dessa natureza, o camponês respondeu dizendo que não havia armas e que era proibido ter armas no acampamento, depoimento esse que foi confirmado por todos os quatro perante a juíza.
AND: E a acusação de que os camponeses teriam impedido o reparo de uma cerca, danificado viaturas e a tentativa de homicídio contra os policiais? O que de fato aconteceu?
MD: Na verdade os policiais entraram aos trambolhões por dentro do pasto, depois de terem cortado a cerca com alicatão. Entraram com a formação de choque, seis a sete viaturas em alta velocidade, em terrenos irregulares, danificaram os automóveis todos e aos solavancos; a própria câmera da viatura acabou caindo, mas ainda assim registrou o momento em que um PM foi lá e cortou o fio da câmera.
As filmagens desse fato mostram outras coisas: mostram a menina que foi acusada de portar arma de fogo, portando, na verdade, um rojão, que ficou o tempo todo em suas mãos, que ela sequer teve tempo de utilizar. O ataque foi planejado antecipadamente pelas forças que armaram uma farsa para dar “cobertura legal” a essa operação. Fabricando boletins de ocorrência da gerência de um outro latifúndio vizinho, a Fazenda Ipiranga, queriam dar a entender que a cerca deles [dessa Fazenda] tinha sido cortada e que o proprietário tinha sido impedido de consertá-la pelos camponeses, quando é mentira, isso não ocorreu.
AND: O que respalda esta prisão como uma prisão política?
MD: Eles estão presos porque lutam do lado do povo e isso tá comprovado no próprio despacho último que mantém essa prisão. Apesar dessas evidências e de sequer mais existir o Acampamento Manoel Ribeiro, os quatro camponeses presos continuam sendo considerados pessoas que não podem estar em liberdade simplesmente porque supostamente pertenceriam à LCP. Isso é a prova cabal da expressão nua e crua da criminalização dos movimentos populares, na medida em que, na prática, não apenas no discurso, é posta sobre eles a pecha de organização criminosa. Assim como os liames que unem aquelas pessoas, que são liames políticos, de classe, de interesse de classe, de uma classe completamente desvalida, despossuída, que só precisa de um pedaço de terra para viver e trabalhar – esse liame eminentemente político – transformam em um liame criminoso como se eles se unissem para praticar crimes. E isso é uma crueldade máxima desse Estado policial, policialesco e fascistóide em que nós vivemos.
AND: Qual a situação atual do processo?
MD: Com muita luta nós pedimos um novo Habeas Corpus (HC) em favor deles, e nós trazemos de forma absolutamente comprovada tudo isso que apresentei. Todos os detalhes dessa trama diabólica e kafkiana que foi montada contra esses quatro presos políticos. Na verdade, essa maquinação só aumenta a revolta do povo. Esse HC se destina antes de tudo a pedir a nulidade de tudo, de todo o processo. Contamos com o apoio de uma intensa e vigorosa campanha em favor desses presos políticos para que, de fato, essa ofensiva da defesa ganhe esperança de ser contemplada pelo Judiciário.
AND: Como está o ânimo dos quatro jovens?
MD: Está muito bem! Eles cumpriram seus papéis de presos políticos na audiência de forma brilhante respondendo com muita firmeza, deixando claro toda essa injustiça que eles estão sofrendo. Denunciaram todas as atrocidades do Estado, não apenas na prisão deles, mas também nas condições carcerárias. E quando visitados pela defesa, têm demonstrado estar confiantes na vitória. Muito mais importante do que a liberdade destes lutadores do povo é a defesa da causa que os levaram a essa situação. Porque a tendência nesse estado de coisas é a luta do povo aumentar.
AND: Qual a relação da história da Abrapo com a luta pela terra?
MD: A Abrapo, tem uma profunda ligação com essa história [Heroica Resistência Camponesa de Corumbiara] também. Foi exatamente naquele contexto de Corumbiara que nasce o movimento que veio a constituir a Liga dos Camponeses Pobres e é também naquele contexto de lutas que nasce o NAP, que era o Núcleo dos Advogados do Povo, que depois veio a se constituir na Abrapo, Associação Brasileira de Advogados do Povo – Gabriel Pimenta. Aqui se faz menção exatamente a esse nosso herói: um jovem advogado que foi covardemente morto lá, um advogado brilhante, lutador do povo, um rapaz completamente comprometido com a luta camponesa e que deu a sua vida nessa luta. Os advogados do povo também tem esse papel de ser a defesa que acusa. Que acusa o Estado exatamente por tudo isso que nós conversamos aqui que foi comprovado.
E esses advogados do povo que são atingidos pelo velho Estado, não o são à toa, também é no mesmo sentido da aplicação do Direito Penal como direito a ser aplicado ao inimigo. E então, na mesma razão, perseguem aqueles que exatamente incomodam por também não se submeterem ao regime do velho estado e denunciam pelas suas entranhas, a sua podridão e a sua farsa. A própria defesa do dito e propalado Estado Democrático de Direito é uma farsa.
No entanto, se acham extremamente progressistas aqueles que se agarram nessa farsa, onde nós somos obrigados sempre a perguntar: o direito democrático para quem? ditadura para quem? e democracia para quem? É nesse contexto que se dá a perseguição à militância e aos advogados populares que contundem na luta o velho estado, portanto, as marcas dessa perseguição elas são medalhas que a gente carrega e que é sinal que a gente cumpriu de alguma maneira nosso papel, senão eles não teriam se incomodado conosco, nem com os movimentos que eles perseguem nem os advogados que eles também igualmente perseguem, é uma luta continua.
Não podemos nos conformar de maneira nenhuma com isso que está acontecendo e que haverá de acontecer muito mais. Porque a tendência nesse estado de coisas é a luta do povo aumentar. A Abrapo mesmo tenta se preparar para esse momento que nós vislumbramos porque é sensível ao nosso trabalho a intensificação deste processo de criminalização da luta do povo à medida em que ela avança. Porque isso é uma questão de dupla via, na medida que aumenta também a repressão, aumenta a luta e haverá de aumentar com certeza o trabalho dos advogados do povo.
Então não só a gente vai defender estes lá estão presos agora, estes presos políticos, mas também convidamos a juventude a se engajar e vir engrossar as fileiras dos advogados do povo. Nós estamos precisando de mão de obra vigorosa, inteligente e de gente comprometida com a causa para dar prosseguimento a essa luta e servir de braços nessa tropa de advogados que vai ter que estar pronta para outros momentos que hão de advir aí em nosso país.