Entrevista com Charles Trocate, dirigente do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

No dia 28 de novembro, o Comitê de Apoio ao AND de Porto Alegre entrevistou Charles Trocate, dirigente do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) desde a sua fundação em 2012, e antes disso dirigente do movimento camponês a mais de trinta anos. Em seguida publicamos as principais partes da entrevista.
Foto: Reprodução

Entrevista com Charles Trocate, dirigente do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

No dia 28 de novembro, o Comitê de Apoio ao AND de Porto Alegre entrevistou Charles Trocate, dirigente do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) desde a sua fundação em 2012, e antes disso dirigente do movimento camponês a mais de trinta anos. Em seguida publicamos as principais partes da entrevista.

Origens do MAM

Durante 20 anos eu fui militante orgânico do MST. Entrei no MST aos 15 anos, lá em 1992, e fiquei até 2012, durante esse período fui da Direção Nacional. E de 2007 a 2012 eu acabei dirigindo a Frente de Massas do MST do estado do Pará, numa situação muito especial, porque naquela época um grupo chamado Agropecuária Santa Bárbara comprou aproximadamente 800 mil hectares de terra, 43 fazendas em 11 municípios do sul-sudeste do Pará. O interesse não era, o que eles diziam publicamente, o “maior projeto de renovação de rebanho do mundo”, o interesse era o subsolo. 

Nós já tínhamos enfrentado a Companhia Vale do Rio Doce, quando era estatal, e também quando ela foi privatizada.E nós fomos um pouco prestando atenção no que estava acontecendo. E vão então vai nascer uma síntese interessante de que a gente tinha feito a luta pela terra, mas não tinha feito a luta pelo território. Nós estávamos perdendo a terra para a empresa Vale.

O direito de superficiário é um que rapidamente o juiz pode depositar se tu decidir se tu fica em cima do solo ou não. Porque em detrimento do direito de superficiário há o direito de subsolo da União. Caso o interesse seja pela mineração e haja viabilidade econômica, a União sempre vai decidir para que a empresa se estabeleça. Então o superficiário sai querendo ou não, porque há uma força judicial que vai tirar ele. Então nós fomos entendendo que havia um processo de afetação contínuo de áreas que tinham sido palco da luta pela terra, da luta pela reforma agrária. Em 2012, a gente decide então chamar uma primeira reunião nacional.

Aí vem pessoas de nove estados, são 36 pessoas de nove estados e a gente faz uma reflexão coletiva durante três dias na cidade de Parauapebas. E a reflexão deu conta de que a mineração já era unanimidade, digamos assim, nos territórios dessas pessoas. O modus operandis era igual [a do latifúndio], eles atuavam em bloco, pudesse ser pequena, média ou grande. E que nós não tínhamos para quem entregar essa pauta porque era uma decisão do governo na época de implementar a mineração, ampliar a mineração no país. Então de 2012 até os dias de hoje eu estou no mando (do MAM).

“Mas na luta por um outro modelo mineral, quem tem condições de parar o modelo mineral atual é uma classe trabalhadora”

Nós estamos muito interessados em organizar os trabalhadores e trabalhadoras da mineração. Porque a gente pode até impedir que o trem deixe de circular um dia ou dois dias. Mas na luta por um outro modelo mineral, quem tem condições de parar o modelo mineral atual é uma classe trabalhadora. E essa, digamos assim, o setor industrial, que aqui é a indústria extrativa da mineração no Brasil, é a que mais mata, mutila e enlouquece. O pior trabalho hoje no Brasil é o dos trabalhadores da mineração. 

Nós não podemos ser contra a mineração.

Somos seres mineralógicos, né? A sociedade precisa (da mineração), mas não pode ser 8, não se minera em lugar nenhum, mas também não pode ser 80. Nós estamos exatamente na fase incontrolável da mineração no mundo e em especial no Brasil e na África. Por quê? 

…A mineração, ideologicamente, está associada aos grandes meios de comunicação, às grandes corporações da mídia. Então ela goza desse privilégio de que ela é, indiscutivelmente, desenvolvimento e progresso.

Até a gente sustentar que ela, tudo bem, é desenvolvimento e progresso, mas vamos aqui verificar, leva muito tempo. Tanto a direita como também as esquerdas. Então você não verifica ao longo da nossa história movimentos contestatórios do modelo mineral brasileiro.

É claro que sempre teve pensamento crítico do modelo mineral. Mas um professor, um grupo de pesquisa aqui e ali, que foram suplantados pela lógica dominante, nunca se tornou um movimento.Você não verifica no Brasil, nas esquerdas, nos movimentos populares, e nem nos partidos. De fato, é um território livre de luta, nunca foi feito. E aí isso o torna mais difícil, entende? Mas torna-se mais importante, inclusive.

Nós nascemos em 2012, em 2014 a gente muda o nome do movimento para “movimento pela soberania popular na mineração”, que já explicita um pouco a estratégia, mas também a tática… vai refutar a ideia de ser atingido, o “movimento dos atingidos por mineração”, sobretudo porque não caberia só os atingidos no território, propor uma alternativa ao modelo mineral. Nós precisamos controlar socialmente a mineração em relação à natureza, em relação à economia e em relação à sociedade.

“Nós não somos um país minerador, nós somos um país minerado. Os efeitos geofísicos das minas ficam aqui. O produto que vai embora.”

Por exemplo, a mineração produz afetações, a primeira afetação é a economia nacional. Esse é o modelo que nós pagamos para ele existir. Pela existência da Lei Kandir, que não vai dar tempo de a gente desenvolver aqui, mas é primordial entender os benefícios que a Lei Kandir traz para essa fase incontrolável do modelo mineral, a baixa líquida, o baixo CEFEM, que é a compensação financeira sobre extração mineral, aos municípios mineradores.

A Lei Kandir é uma lei de 1996 que isenta de tributação ao ICMS ‘’operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços exportados’’ (anotação nossa).

…Cara, essa é uma lógica que eu nunca tinha visto, eu não sou nem economista, eu tenho pés na filosofia. Mas claramente é uma maneira de jogar a economia nacional ao exterior, porque não fica nada aqui…

Mas nós não somos um país minerador, nós somos um país minerado. Os efeitos geofísicos das minas ficam aqui. O produto que vai embora… Ainda têm isenção fiscal, ou seja, ela não paga o preço, também, a mineração consome anualmente 170 trilhões de litros d’água, o suficiente para abastecer todas as residências que recebem água no Brasil, sozinha. Ela também recebe isenção fiscal para exaurir a água.

Mineração no Brasil

Do ponto de vista do panorâmico histórico, a mineração no Brasil sempre foi estatal. Na coroa, na colônia, é exatamente a mineração na colônia que vai favorecer o aparecimento de condições para o assalariamento da classe trabalhadora na Europa.

A exploração escravocrata no sul global, é o que possibilita a construção de capitais para o assalariamento, porque a elite foi convencida de que o trabalho escravo custava muito e, portanto, era necessário assalariar. Continuaria escravo, porém, administrando o seu dinheirinho. Também no Brasil o império e no Brasil a república.

Na república, a Vale nasce em 1943, é um acordo de guerra, mas ela herda o que foi a mineração na colônia e no império, e ela retifica o que é a mineração na república. Quando a Vale é privatizada, em 6 de maio de 97, não é uma empresa que é privatizada com tantos navios, tantas máquinas, foi privatizado o modelo mineral. Por isso que ele ficou incontrolável.

Antes o Estado, muito complicadamente, controlava a mineração, era estatal, e passou para a mão dos acionistas, aí virou um vale-tudo, o lucro do acionista virou um vale-tudo contra a natureza. Então nós privatizamos o nosso modelo, por isso que ele está incontrolável. E mais, nós financiarizamos ele, aí complicou ainda mais.

“Se esse mineral vai virar alguma tecnologia, alguma peça, já não se sabe mais, porque ele já realizou um conjunto de capitais, na extração e no transporte, e já não será necessário que ele se transforme em mercadoria…”

Vocês sabem, os clássicos nos ensinaram que o empresário só vai ter o retorno daquilo que ele investiu, se é numa fábrica, quando aquilo que ele investiu foi vendido, repassado ao consumidor. Aí é que ele vai reaver o seu lucro, aquilo que ele investiu. Na mineração, eles já chegaram ao ponto de realizar capitais só tirando ele do lugar e mandando para algum outro lugar no mundo.

Se esse mineral vai virar alguma tecnologia, alguma peça, já não se sabe mais, porque ele já realizou um conjunto de capitais, na extração e no transporte, e já não será necessário que ele se transforme em mercadoria para o rentismo ter o seu lucro. Nós estamos nesse nível e é por isso que está incontrolável. É muito dinheiro já realizado na mina e no transporte, não necessariamente isso vai virar mercadoria, pode estar virando uma ilha de depósitos em qualquer outro país, sobretudo na Ásia, na Oceania e nos Estados Unidos. 

Na concepção do parlamento empresarial brasileiro e da política minerária do governo, nós precisamos sair de 2,6% de participação no PIB pela mineração para chegar a 10%. A tendência é que o Brasil cresça 3% ano que vem pela mineração, com os negócios e a transição energética.

E o congresso empresarial, então, diz o seguinte: nós precisamos chegar a 10%. Nós precisamos chegar a 10% do PIB pela mineração! Nós estamos em 2,5% e está insuportável!

O Brasil virou um conjunto de múltiplos buracos, entendeu? Parte significativa da classe trabalhadora já está adoecida pela lógica de mineração. Nós temos um documentário, depois, se tiver curiosidade, chama-se Os Descartáveis, dez minutinhos, que é o relato de um grupo de trabalhadores da Vale em Parauapébas. De como é que eles entraram e como eles saíram. 

Dez anos eles não prestavam mais para a empresa. Estavam todos doentes, sem condições alguma de realizar qualquer tipo de manuseio ou atividade. E do ponto de vista da hierarquia, da racialidade, infelizmente, quem mais trabalha na mineração, nos postos mais mal-renumerados são os negros. É um denso corte de raça ainda…

“E o congresso empresarial, então, diz o seguinte: nós precisamos chegar a 10%. Nós precisamos chegar a 10% do PIB pela mineração! Nós estamos em 2,5% e está insuportável!”

A grosso modo é… O que é que nós acumulamos, então, só pra concluir aqui, nesses 12 anos? É verdade que a gente nasce no sul e sudeste do Pará.

A gente nacionaliza o conflito Carajás, dando um apelido a ele, que é o MAM, Movimento pela Soberania Popular no Mineração, tentando imaginar que a mineração produz um conjunto de afetações. Portanto, também o MAM é um movimento muito complexo, porque quer organizar aquele que sofre a afetação no território, aquele médico que está na saúde do município de minério-independência, lidando com o adoecimento pela mineração. É generalizar a luta.

O problema mineral brasileiro não é um problema a ser enfrentado por um setor. Nós fizemos o que foi possível, dar o pontapé. Construímos um conjunto de reflexões. Agora, é importante que os outros possam ir assumindo, porque você, morando aqui em Porto Alegre, é afetado pela mina de carajás. Todos nós somos.

Primeiro, nós construímos uma linha política de luta pelos territórios livres de empresas de mineração e a luta por territórios livres de mineração. Dois, o combate à injustiça hídrica, fiscal e tributária, ou seja, a democratização da renda mineral, porque ela também fica com uma elite muito reduzida.

Bom, tem tantas outras coisas, mas essa é um pouco a vereda que nós estamos encontrando. A conclusão é que não dá para ser só lá, em Carajás, tem que ser uma mudança na sociedade inteira.

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