Nascido no sub-distrito de Birzeit, em Ramallah, na Palestina, Sliman Mansour é considerado por muitos um “pintor da Intifada”. Durante o grande levante palestino iniciado em 1987, Mansour se juntou a um coletivo artístico, boicotou suprimentos israelenses e retratou, em sua arte, a resistência palestina e a vida dos palestinos sob a ocupação sionista.
Nesse texto, o colaborador de AND, cineasta e jornalista, Daniel Moreno, conversou com Sliman Mansour sobre sua história e sua arte. A entrevista foi feita entre fevereiro e março de 2025 e é disponibilizada na íntegra abaixo.
A arte que você produziu no contexto da luta pela Libertação Nacional Palestina, especialmente suas pinturas, é bastante apreciada hoje, e costuma sempre aparecer junto às artes de outras figuras notáveis como Ismail Shammout e Naji al-Ali. Seu estilo de composição é bastante impactante e tem sido parte da iconografia da Libertação Nacional Palestina há muitas décadas.
Primeiramente, eu gostaria de pedir para você fazer uma breve apresentação de seu trabalho para o público brasileiro. Muitos por aqui devem ter apreciado suas obras, as compartilhado em suas redes sociais ou colado nas paredes de suas casas sem ao menos saber seu nome.
Eu nasci em 1947 em Birzeit. Birzeit era uma pequena vila, habitada por cristãos e muçulmanos que viviam em harmonia. Campos vastos cercavam Birzeit, cheio de oliveiras e muitas árvores frutíferas, e muitas fontes d’água naturais, com pequenos açudes que coletavam a água da irrigação. Eu passei minha infância nesses campos, especialmente durante o verão.
Era o meu Jardim do Éden, assim como para a maioria das crianças do povoado. Meu pai morreu quando eu tinha quatro anos de idade, e minha mãe matriculou a mim e meus irmãos num internato em Belém. Eu fiquei nessa escola durante muitos anos. Somente no verão eu voltava para meu povoado.
No internato, eu recebi uma educação multicultural porque sempre tínhamos professores voluntários oriundos da Alemanha e dos EUA. Um desses professores, alemão, era um amante das artes, e me ajudou bastante a desenvolver meu talento artístico.
Após a Guerra de 1967 [também conhecida como “Guerra dos Seis Dias”], me inscrevi na Academia Bezalel, que era a principal escola de artes em Israel. Estudei lá durante três anos e iniciei meu ofício como professor de artes.
Daí, passei a contribuir com a organização da Liga dos Artistas Palestinos sob Ocupação, promovendo exibições coletivas dos artistas vinculados a ela. Durante essa época, fui preso três vezes, e muitas de minhas pinturas foram confiscadas. Também trabalhei como cartunista em duas publicações semanais, até 1992.
Durante a primeira Intifada, eu fui um dentre os vários artistas que passaram a boicotar produtos israelenses e materiais artísticos importados, passando a trabalhar com materiais naturais. Nós formamos um grupo e estabelecemos um centro artístico em Jerusalém por dez anos.
Então, trabalhei com vários artistas locais e um artista norueguês para fundar a Academia Internacional de Arte Palestina em Ramallah. Também trabalhei como professor de artes na Universidade de Al-Quds, de 2002 a 2014.
Hoje, tenho um estúdio em Ramallah e trabalho de forma mais livre. Eu sempre acreditei que a arte pode e deve assumir um papel importante na sociedade, na nossa em particular, para promover a libertação. Eu trabalhei toda minha vida de acordo com esse princípio.
O estudante Mansour em 1961, em Jerusalém
A história que você conta está inserida no grande esforço dos artistas palestinos em trabalhar num espírito de coletividade, tanto na sua prática quanto na sua abordagem. Havia uma cena cultural e artística que refletia uma situação política em desenvolvimento, e engajava-se com a Resistência em graus variados. Como você entende o papel cumprido por esses grupos e artistas, e o seu papel em particular, na construção dessa luta?
Eu não penso que nós trabalhávamos coletivamente com um propósito muito claro. Cada grupo estava interessado em desenvolver sua prática artística e todos nós queríamos um público mais amplo.
Nós todos fomos afetados pela ocupação e pela negação da existência palestina, então expressar nossa identidade e firmeza, em nossa terra, era um objetivo comum a todos. Claro, cada grupo utilizava-se de meios diferentes – escritores e poetas com palavras, trupes teatrais com palavras e movimento, músicos com palavras, notas e sons e etc. Nós tínhamos um meio totalmente diferente, baseado em formas, cores e movimento. Escultura era algo raro à época. Também haviam várias associações de mulheres que trabalhavam com vestimentas tradicionais e com o bordado, e promoviam estudos dessas tradições. Os artistas sentiam-se muito próximos dessas associações e aproximavam-se delas.
Por vezes, todos nós trabalhávamos juntos. Por exemplo, todos éramos relacionados ao teatro, então o Teatro Al-Hakawati em Jerusalém tornou-se um centro para muitas dessas atividades – usávamos ele para exibições coletivas e lá conhecíamos mais gente, fazíamos amizade e criávamos laços.
Os estudantes universitários também eram bastante politizados e sempre nos convocavam para seus festivais sazonais, então as universidades também se tornaram um outro espaço onde os grupos interagiam. Todo mundo sempre queria um cartaz ou uma ilustração nossa. Partidos políticos também precisavam de cultura para seu trabalho político, e nós artistas trabalhamos com todos eles.
Durante grande parte da minha vida nos anos 70 e 80, eu e outros artistas fomos voluntários dessas atividades. Acho que foi mais assim que as coisas funcionaram do que algo planejado de antemão.
Em suas obras, vemos muitos elementos comuns da cultura árabe palestina, tanto no uso de iconografia e símbolos, quanto na forma de representação escolhida. Como você entende seu processo criativo na construção dessas imagens? Como elas se relacionam com o processo mais amplo da Libertação Nacional Palestina?
Eu me interessava muito por duas questões: a identidade palestina e o sumud [firmeza]. A identidade é uma ideia abstrata, então tivemos de buscar imagens que a refletissem. Buscamos nas antigas culturas de nossa região, sobretudo na arte canaanita, egípcia e iraquiana clássicas; e então, na arte islâmica – principalmente na caligrafia – e na arte popular, em especial nas vestimentas tradicionais e no bordado.
Também buscamos elementos da paisagem, através da representação de duas árvores: a laranjeira, simbolizando a terra ocupada em 1948 e a oliveira, simbolizando a terra ocupada em 1967. As paisagens incluíam cidades como Jerusalém, Jafa e Haifa e também povoados palestinos. Buscamos incluir imagens do povo trabalhando na terra, o que também servia à ideia do sumud.
Essas ideias diziam respeito à todas as pessoas criativas e não apenas aos artistas plásticos.
Durante nossa pesquisa sobre bordado, eu e meu colega Nabil Anani fomos arrebatados pela riqueza desse campo e passamos dois anos estudando-o. Isso resultou num livro sobre motivos iconográficos, no qual coletamos mais de 600 modelos antigos e, desde 1985, ele segue sendo a principal fonte para quem trabalha com bordado.
O uso do patrimônio histórico na sua arte é muito impactante. Me parece que havia um interesse comum entre os artistas palestinos de sua geração nessa pesquisa cultural.
Eu percebo uma variação em sua abordagem para a pintura. Às vezes você usa mais profundidade na composição cênica, num realismo estilizado, especialmente nas paisagens (como em Yaffa, 1979); às vezes você usa os ícones mais abertamente, lembrando composições de arte sacra (como em Laranjal, 1984). Ora o aspecto alegórico está nas margens, ora está mais evidente. Como você descreveria sua abordagem para a composição cênica? Como você decide sua abordagem formal?
Há também o Mustafa al-Hallaj, que usou o patrimônio histórico na maioria de sua obra, e Abdul Hay Mosallam.
Eu não penso muito nesses problemas enquanto pinto. Eu costumo realizar um esboço onde estejam presentes todos os elementos que quero para a pintura, e então levo-o ao quadro. Enquanto eu trabalho, vou elaborando mais certas questões na pintura sem uma razão em especial, mais baseando-me em meu gosto.
Eu geralmente busco encontrar o caminho mais simples para fazer a pintura. Se funciona, ótimo. Se não me satisfaz, trabalho mais nela, adicionando profundidade e outros elementos.
Você geralmente escolhe camponeses para representar o povo palestino, também dando muita ênfase às mulheres. Aqui no Brasil, a questão camponesa e agrária é muito relevante e imagens como as que você produz tendem a ressoar bastante aqui. Como essa escolha de representação pode refletir seu entendimento sobre a Libertação Nacional Palestina?
Eu uso a imagem da mulher como símbolo da pátria-mãe e, às vezes, da revolução. Acho que é uma abordagem comum. Não é qualquer mulher, todavia, que pode representar a nação. Ela deve projetar compaixão, deve ser bela, com olhos cor-de-oliva. Deve ter mãos fortes – um sinal de conexão com a terra, de trabalho na terra. Deve ter um pescoço rígido, como sinal de orgulho. Deve usar uma vestimenta tradicional, com bordados coloridos.
Ora ela aparece sozinha e é o bastante para transmitir a mensagem, ora aparece com outros camponeses guardando a terra. Na maior parte das vezes, é representada com um tema triste.
Represento o campesinato e as terras palestinas porque nossa luta é baseada na terra, e a filosofia do sionismo é baseada na reivindicação da terra palestina. A terra se torna, portanto, a questão principal em nossa luta, e a conexão do palestino com o seu chão se torna um problema importante. Então representamos isso com paisagens, cenas em povoados, árvores, flores e aves.
Você tem usado bastante suas redes sociais para denunciar o sionismo e demonstrar apoio à causa palestina. Especialmente desde Outubro de 2023, alguns artistas, sejam eles palestinos ou não, manifestaram-se de forma similar, enquanto outros posicionaram-se de maneira dúbia e incerta. Qual você entende ser seu papel, como um artista ligado a essa causa, na denúncia do sionismo e defesa da resistência?
Eu não me interessava por redes sociais antes de 2021, mas minha arte sempre, a todo momento, serviu para denunciar a ocupação. Não tenho problema com toda sorte de ideologias, mas quando uma ideologia nega minha existência e tem como objetivo me despejar e tomar minha terra, aí teremos problemas.
Como um artista, eu entendo que a arte não é feita somente de linhas e cores mas deve carregar uma mensagem. Na minha situação, a melhor mensagem que eu posso imaginar é a de derrubar a ocupação e viver em liberdade. Sempre apoiei uma solução de dois estados desde o início dos anos 80, mas a questão principal é viver em dignidade e liberdade.
Aqui no Brasil, temos acompanhado o desenvolvimento da situação na Palestina com bastante atenção e sentimento internacionalista. A Resistência tem dado uma demonstração de força significativa frente a um inimigo antes tido como infalível e serve de exemplo para as lutas dos oprimidos no mundo – tanto no campo de batalha quanto nas telas dos quadros, por assim dizer.
Que mensagem você, como um artista ligado a essa causa, tem a dividir com os camponeses, trabalhadores, intelectuais e artistas de nosso país?
Penso que quando um povo enfrenta um inimigo poderoso ele se torna mais consciente da importância de manter uma atitude otimista frente à vida e ao futuro, e a nunca deixar o inimigo quebrar seu espírito, o que significaria a derrota total.
O povo aprende a viver com o muito pouco que tem e a apoiar uns aos outros em todos os níveis. Também aprende a viver com suas diferenças e resolvê-las de maneira amigável. Aprendem a ter um alvo bastante claro que, no nosso caso, é derrubar a ocupação, viver com dignidade e igualdade total.