Entrevista: Ex-preso político Luiz Rodolfo fala sobre Fernando Santa Cruz e declarações de Bolsonaro

Entrevista: Ex-preso político Luiz Rodolfo fala sobre Fernando Santa Cruz e declarações de Bolsonaro

Dona Elzita Santa Cruz, mãe de Fernando Santa Cruz, em frente a retrato do filho. Morta aos 105 anos, ela passou décadas lutando por justiça. Foto: Reprodução

Na manhã do dia 29 do último mês de julho, o presidente Jair Bolsonaro criou nova polêmica ao declarar que contaria para o presidente da Ordem do Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, como o pai do jurista havia desaparecido durante o regime militar fascista (1964-1985).

“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, disse o fascista Bolsonaro, num claro tom de provocação às vítimas do regime militar, às famílias dos desaparecidos e, em particular, à memória de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, ou simplesmente Fernando Santa Cruz, ex-membro da Ação Popular (AP) que verteu seu sangue na luta contra o fascismo instaurado no Brasil à época.

Fernando foi dado como desaparecido em 23 de março de 1974 e, após o seu assassinato, ele se tornou um símbolo da resistência ao regime militar nos movimentos populares, em especial no movimento estudantil, onde atuava.

A declaração de Bolsonaro gerou amplo repúdio na sociedade. Diversas personalidades democráticas e entidades se pronunciaram rechaçando não somente a fala do presidente, mas também as torturas, desaparecimentos forçados, sequestros, assassinatos e outros crimes hediondos que foram marcas registradas do gerenciamento militar.

Entre estas personalidades democráticas, está o ex-preso político Luiz Rodolfo Viveiros de Castro, também conhecido como Gaiola, uma referência entre aqueles que lutaram contra o regime militar e para as novas gerações que hoje participam da luta popular. Em entrevista ao jornal A Nova Democracia, Luiz Rodolfo, que também é membro do Grupo Tortura Nunca Mais, falou sobre as declarações de Bolsonaro, sobre a figura do revolucionário Fernando Santa Cruz e sobre a luta por justiça que se estende até os dias de hoje.

Bolsonaro reverencia torturadores e assassinos

Antes de entrar no mérito a respeito de Santa Cruz, Luiz Rodolfo já foi direito ao ponto, quando iniciamos a entrevista perguntando sobre as declarações do atual presidente:

— Esse presidente, no meu entender, é ilegítimo, pois eleição é uma farsa. Ele nem foi votado pela maioria dos brasileiros. Se somar os votos no outro candidato, nulos, brancos e abstenções, a maioria do país não escolheu ele. Eleição é uma coisa viciada, baseada no dinheiro e organizada de uma forma em que o povo, sem acesso à educação e à sua história, escolhe seus “representantes”, entre aspas, e depois nem lembra em quem votou — continua.

— Além disso, esse presidente é um irresponsável, amigo de torturadores. Hoje tem gente que usa camiseta “Ustra vive”. O coronel Brilhante Ustra é talvez o maior torturador da história do Brasil, junto com Sérgio Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Ustra, como comandante do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), também é um dos maiores assassinos da história desse país e assassinou vários companheiros nossos. São esses que o Bolsonaro reverencia. Portanto, sua declaração foi totalmente irresponsável nessa estratégia que ele tem de copiar o Trump e em falar os maiores absurdos sem nenhuma base histórica — diz.

Luiz Rodolfo prosseguiu desmascarando as mentiras que Bolsonaro disse posteriormente, quando o assunto já havia tomado grande repercussão.

— Primeiro, ele disse isso tudo e, na segunda declaração, tentou consertar um pouco as coisas, pois o staff dele, esses generais comprometidos com as Forças Armadas assassinas, deram um toque nele. A emenda saiu pior que o soneto! Aí Bolsonaro inventa que o Fernando Santa Cruz teria sido justiçado pela sua organização porque veio de Pernambuco para o Rio de Janeiro, e a AP do Rio teria estranhado o fato. Enfim, ele queria dizer que Fernando era infiltrado ou algo parecido. Totalmente absurdo, pois o Fernando já estava no Rio há quatro anos, estudava Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Inclusive, o DCE da UFF se chama DCE Fernando Santa Cruz — aponta.

— Então, essa é mais uma provocação desse palhaço do Bolsonaro, que cultua torturadores e denigre pessoas assassinadas na luta, punindo mais uma vez as famílias — diz.

Fernando foi assassinado na Casa da Morte

O ex-preso político nos contou sobre a luta que a família de Fernando Santa Cruz vem travando desde 1974 e sobre o desaparecimento do revolucionário.

— A mãe do Fernando Santa Cruz morreu há pouco tempo com 105 anos, a Dona Elzita, que a vida inteira procurou pelo filho. Nós temos cartas dela para o presidente Geisel, num período em que a ordem era assassinar. Eu sou da leva dos que caíram em 1970. Nós passamos por torturas, mas menos pessoas morriam nessa época. Em 1974, com uma visão de preparar a distensão lenta e gradual, como ele chamava, a ordem era matar, diretamente. Todos que foram para a Casa da Morte, em Petrópolis, estado do Rio, foram assassinados, menos a Inês Etienne Romeu, que conseguiu escapar e contou a história toda — continua.

A famigerada Casa da Morte, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

— Dois ex-policiais, ex-torturadores, já depuseram: o sargento Marival e o Cláudio Guerra, que na época era delegado do Dops. Eles depuseram que Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier estavam na Casa da Morte. Cláudio Guerra disse, inclusive, que os levou para a usina de Cambaíba, em Campos dos Goytacazes, onde incineraram 12 companheiros nos altos fornos. Portanto, a história está documentada por um próprio órgão do governo. Agora, em 2019, já no governo Bolsonaro, é que finalmente foi assinado o atestado de óbito do Fernando Santa Cruz e o motivo. Então, tudo isso é provocação do pulha do Bolsonaro — conta Luiz Rodolfo, que prossegue: 

— O filho do Fernando Santa Cruz, que hoje é presidente da OAB, tinha dois anos na época que o pai foi assassinado. Ele entrou no Supremo Tribunal Federal pedindo que o Bolsonaro esclareça isso, pois ele sabe de outros mortos. Então que ele responda à sociedade e aos familiares dos desaparecidos e que ele confirme o que ele sabe. De certa forma, Bolsonaro já deu essa segunda declaração em que ele “sai”, porque ele diz “eu soube de fontes etc.”, então vai dizer que soube por outros militares.

‘Uma decisão de alto comando’

Luiz Rodolfo também falou sobre a documentação a respeito do desaparecimento de Fernando Santa Cruz.

— No caso do Fernando, tem um documento do Centro de Inteligência da Aeronáutica assumindo que ele foi preso em 22/02/1974. Ele morre no dia 23. Ele era um jovem militante. Para você ter uma ideia, o Eduardo Collier, que foi preso junto com ele, estava no Leme na casa de alguns amigos meus, que eu convivo até hoje, ambos estavam no carnaval. Ele foi preso em pleno carnaval. Eles brincavam carnaval como as pessoas comuns fazem. O Eduardo se despediu das pessoas e saiu do Leme para encontrar o Fernando na avenida Princesa Isabel, onde foram presos. O documento da Aeronáutica comprova isso. A morte dele foi no dia 23 e a Aeronáutica comprova que ele foi preso no dia 22/02. Então é totalmente absurdo que alguém negue isso — relata.

— Os militares depuseram mesmo antes da Comissão da Verdade sobre as mortes. Têm depoimentos do próprio Geisel admitindo. Os documentos secretos que os Estados Unidos abriram ano passado, depois de 50 anos, comprovam isso, tem o Geisel autorizando. O próprio alto poder, a tortura no Brasil era uma decisão de alto comando, uma política do Estado-Maior, de comando, de exterminar com quem resistisse — enfatiza.

A tortura hoje no Brasil

Finalizando seu depoimento ao AND, o ex-preso político Luiz Rodolfo Viveiros de Castro fez questão de lembrar que no Brasil de hoje, assim como na época do regime militar, a tortura é uma prática comum e continua sendo largamente praticada pelos aparatos de repressão do velho Estado brasileiro.

— A tortura é reflexo de todo sistema de exploração que as elites do país, de forma cruel, utilizam desde sempre. As torturas utilizavam, inclusive, instrumentos parecidos com os que usavam na escravidão. A tortura hoje continua existindo massivamente — continua.

— Quando se torturou militantes políticos, uma grande parte filhos de classe média, a repercussão foi maior. Hoje se tortura no campo, mais do que isso, se mata diretamente. A tortura no campo brasileiro é uma praxe, bem como nas periferias das grandes cidades. Jovens, negros e favelados são alvos claros de assassinatos. Isso se recrudesce em governos como o de Bolsonaro e Witzel, no Rio. Mas a tortura sempre foi e continua sendo prática nesse Estado — diz.

— Não podemos esquecer também que mesmo nos governos ditos de “esquerda” ou de centro-esquerda havia tortura. Hoje, o PT e a Dilma se colocam contra Bolsonaro, mas quem fez a Garantia da Lei e da Ordem foi o governo Dilma, que também colocou o Exército na Maré. Nos governos Lula e Dilma, os massacres continuaram, os indígenas do Mato Grosso do Sul que o digam — denuncia.

— A Polícia Federal e o Exército garantem os fazendeiros, grileiros de terra e seus jagunços para assassinar indígenas, camponês etc. Isso tudo só vai mudar quando fizermos uma Revolução — conclui Luiz Rodolfo.

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