Documentos inéditos mostram que o governo do Estados Unidos enviou orientação ao governo brasileiro sobre como tratar o assassinato de Vladimir Herzog e o levantamento popular que poderia vir em resposta. As informações foram reveladas pelo jornalista Jamil Chade, do Uol.
Vladimir Herzog foi preso no dia 24 de outubro de 1975 na sede do DOI-Codi de São Paulo, local para onde foi ainda livre depois que soube que militares o procuraram na TV Cultura. Preso pelos gorilas, Herzog foi assassinato em uma simulação de suicídio que acabou desacreditada pelo povo brasileiro. Grande protestos em São Paulo condenaram o assassinato.
Foi justamente por isso que o governo ianque criticou o regime militar brasileiro em documentos enviados à Brasília. Para os ianques, o relatório foi montado de forma muito artificial para justificar a versão de um suicídio, o que poderia levar suspeitas.
“O relatório não contém nem mesmo um mínimo de reprovação às autoridades por simples negligência, o que poderia ter lhe dado maior equilíbrio”, diz o documento de Washington.
Outro trecho aponta que “[os militares] não ofereceram uma explicação” sobre o motivo do suicídio”, diz um trecho do documento.
Eles concluem com a afirmação de que “ninguém realmente esperava que o Exército se acusasse, e ninguém está surpreso com os resultados da investigação”.
Mas, para não deixar dúvidas de que lado estavam, afirmam categoricamente que “o relatório confirma a explicação militar inicial de que o suicídio foi totalmente voluntário, descartou a possibilidade de crime e não encontrou evidências de maus-tratos. O relatório também aponta o testemunho de que Herzog era membro do Partido Comunista com histórico de tratamento psiquiátrico”.
Controle sobre jornais
A maior preocupação dos ianques era em relação ao levantamento popular que a morte de Herzog poderia causar. Dedicaram, portanto, bastante atenção ao tratamento do caso na imprensa.
“A reação da imprensa até o momento, particularmente a do Estado de São Paulo, que deu grande destaque ao caso Herzog quando ele ocorreu em outubro, tem sido, talvez significativamente, abafada”, diz o documento, que acrescenta que “embora não descartemos o desestímulo do governo aos comentários editoriais, também é possível que os observadores da imprensa sintam que o informe fala por si só e que seria imprudente e inoportuno fazer comentários e inútil questionar publicamente a palavra de oficiais militares seniores”.
Eles ressaltaram, ainda, que foram informados por um jornalista que o regime militar brasileiro convocou jornalistas a irem ao serviço nacional de inteligência, onde receberam “instruções de uma série de ‘coronéis”. A tônica da abordagem, que foi discreta, foi que a situação em São Paulo é indevidamente tensa, que há envolvimento comunista, que o governo está se movendo para cuidar da situação e que o dever patriótico dos jornais é evitar inflamar a situação”
Reação à repressão
Um outro telegrama do governo ianque revela o temor dos norte-americanos da reação popular ao caso. “Os setores que pressionam por um melhor desempenho em relação aos direitos humanos e a oposição mais geral à revolução ganharam um ponto focal efetivo para seus esforços, aumentando assim o combustível e o ímpeto de sua causa. Por outro lado, a inclinação da revolução será a de resistir, considerar que a explicação do exército não está sujeita a questionamentos”.
Os ianques sabiam que o regime, frente a um levantamento, responderia com força. O medo, contudo, era da repressão aumentar ainda mais a fúria popular. Em outras palavras, se o povo seria “capaz de se sustentar, alterando assim a equação política básica aqui, ou se será forçado a recuar diante da forte resistência revolucionária [o revolucionário, aqui, refere-se ao regime]”.
Necessidade de investigações
A revelação aponta para a necessidade de mais investigações sobre os crimes do regime militar. Até hoje, os estudos foram muito limitados pelos sigilos e controle da caserna sobre os documentos.
Esse ano, familiares conquistaram, depois de dura luta, a reabertura da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Muitos defendem ainda a reabertura de outras comissões de investigação dos crimes do regime militar, com atribuições maiores do que as primeiras que existiram.
O AND acompanhou de perto a mobilização e realizou, em abril deste ano, um ato de condenação aos 60 anos do golpe militar, ao intervencionismo militar e à política de conciliação do atual governo com a caserna. O ato terminou com o lançamento de uma moção política pela reabertura da CEMDP. O AND também realizou diversas entrevistas com familiares de mortos e desaparecidos políticos e intelectuais envolvidos em pesquisas sobre os crimes do regime militar.