Na primeira parte da série de reportagens sobre a grilagem de terras no Maranhão, o caso de Nestor Finger foi destrinchado: utilizando-se de típicas manobras jurídicas em casos de grilagem, alegou ser dono de uma suposta Fazenda Santa Inês e a sinistra atuação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Terras do Maranhão (Iterma) a favor do grileiro. A análise da origem da documentação grilada explicita de maneira clara as fraudes nos registros imobiliários que envolvem o caso Finger.
Fraudes e certeza de impunidade
No relatório do processo ao qual o Comitê de Apoio ao AND – São Luís (MA) teve acesso, há o registro da existência de uma Certidão de Cadeia Dominial que foi usada no processo de manutenção de posse da Associação dos Trabalhadores em Agricultura Familiar do Povoado Vilela. Neste documento consta a concessão de duas sesmarias pela Coroa Portuguesa, uma de 1815 e outra de 1819 – as duas juntas dão o total de 21.780 hectares, número incompatível com os 52.000 hectares que a família Finger alega ser proprietária.
Como a única prova que Nestor Osvaldo Finger tinha da existência de uma tal Fazenda Santa Inês entre os municípios de Boa Vista do Gurupi e Carutapera são as matrículas registradas nos cartórios do Maranhão, é necessário atacar os evidentes vícios na origem e cadeia dominial desses imóveis.
Na certidão, não consta que a Carta de Sesmaria da dita Fazenda Santa Inês, que teria sido desmembrada nas Fazendas Santa Érica I, II, III, IV e V tenha sido validada nos termos da Lei de 1850 (Lei de Terras), dessa forma, nos termos da lei, as terras se tornaram devolutas (i.e., foram devolvidas ao patrimônio público), porque as sesmarias caíram em comisso.
O fato é que a cadeia dominial está cheia de furos que servem a demonstrar a grilagem, apesar do visível esforço de cartorários, outros servidores públicos, advogados, despachantes e grileiros atuaram de maneira ardilosa para tornar “aceitável” a cadeia dominial dos “imóveis” da Fazenda Santa Inês.
Para somar à série de manobras ilícitas, o documento afirma que o registro ocorrido em 1989 estaria confirmado por Certidão do Iterma emitida em 29 de fevereiro de 1987! Tal descuido pode evidenciar a certeza da impunidade e a vista grossa que tais instituições públicas de regularização de terras tem para com os crimes de grilagem no país em benefício de latifundiários ladrões de terras camponesas.
O fato é que a documentação estava irregular desde o início, Nestor Finger apenas deu continuidade, a presença do nome de Onofre Gim da Cunha nessa cadeia dominial é praticamente a prova final da fraude relacionada a esses registros.
Em 1997, Onofre Gim da Cunha descobriu que o seu nome estava envolvido nas fraudes cartoriais de grilagem de terras que ocorriam no Estado do Maranhão. A tal Fazenda Santa Inês é a terra que está relacionada. Ao tomar conhecimento do fato, Onofre encaminhou notícia-crime ao Ministério Público Federal indicando nomes a serem investigados e pedindo providências, pois o seu nome estava no relatório do Incra que indicava os 100 maiores grileiros de terras do Brasil.
Ao que tudo indica, após a investigação do Incra, houve a tentativa de se retirar alguns nomes comprometedores da cadeia dominial, uma vez que as suas tramoias haviam sido constatadas por aquele órgão e encaminhadas para a Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão (CGJ/MA). Os dois nomes são: Domingos José da Costa e Hermann Mayer, que não constam na certidão de cadeia dominial referida e que eram pólos da investigação feita pelo Incra nesse referido caso, pois estavam, como indicam os processos, naqueles mesmos anos, encaminhando requerimentos para tentar convalidar essas matrículas que o órgão sabia se tratar da mais abjeta grilagem.
Vê-se no processo do Incra, por exemplo, que, em ofício encaminhado àquele órgão por Domingos José da Costa, afirma-se que Avelino Pereira Lima teria transferido os domínios da Fazenda Santa Inês (sem área definida, como consta no registro) para Domingos José da Costa que, após o levantamento topográfico foi quem “deu” o tamanho de 52.138,8 ha para esse registro imobiliário. Até então, as medidas que poderiam ser consideradas eram as das Cartas de Sesmarias. E é essa a matrícula com área inventada que será transferida para o Cartório de Maracaçumé, onde os próximos participantes dessa maquinação atuaram. De Domingos José da Costa a área inventada foi vendida para Hermann Mayer.
Hermann Mayer, que muito embora não dê o ar da graça na Certidão de Cadeia Dominial, é figura central nesse abominável caso de grilagem, como se pode ver na própria investigação elaborada pelo Incra.
Bloqueio de matrículas griladas é vitória da mobilização camponesa
Segundo o relato de alguns camponeses da região, que a esposa de Hermann Mayer era servidora do Incra e que, trabalhando na criação de Assentamentos de Reforma Agrária na fronteira do Maranhão com o Pará, no início dos anos 2000, “descobriu” uma “sobra” de terras na região, que poderia ser assenhorada desde que se encontrasse a “documentação certa”.
A manobra feita, então foi “requentar” a documentação já preparada por Domingos José da Costa e colocá-la novamente no circuito do mercado ilegal de terras.
Tudo isso só foi possível porque essas matrículas não tinham sido definitivamente canceladas. Não se sabe por quais meios isso ocorreu à época, porém, ainda hoje, as únicas informações comprovam evidências de grilagem e não de ocupação de terras.
De lá para cá, passaram-se 26 anos desde a notícia-crime de Onofre Gim da Cunha feita junto ao MPF, 20 anos do ofício de cancelamento administrativo das matrículas relacionados com esse caso de grilagem. O registro do Protocolo Geral destes ofícios é 4073 de 12 maio de 2003, feito pelo Incra e encaminhado para CGJ/MA.
Em 2013, o advogado dos camponeses à época, Dr. Diogo Diniz Ribeiro Cabral, ligado à Federação Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema), juntou os mencionados documentos e pediu explicações sobre os mesmos ao Juízo de Maracaçumé. Passados 10 anos, os órgãos públicos (Incra, MPF e CGJ) nunca apresentaram os resultados dos processos que deveriam ter cancelado as matrículas da reconhecida grilagem e evitado o surgimento do conflito agrário.
Todos esses órgãos falharam rotundamente e quem sofreu, como sempre, foram as famílias de camponeses, que pagaram com seu próprio sangue e ainda assim o sofrimento não chega ao fim.
Mas não para por aí.
Em 5 de setembro de 2013, o Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público do Maranhão determinava que em um prazo de 30 dias, os processos relativos a conflitos agrários deveriam ser acompanhados pela Procuradoria Especializada em Conflitos Agrários do MPE/MA. Naturalmente, o processo da comunidade que estava sendo atacada pela Família Finger poderia e deveria ser acompanhado pelo Procuradoria Especializada. Porém, por insistência da Promotoria de Justiça de Maracaçumé, a Procuradoria Especializada só consegue iniciar a sua participação no processo judicial, seis anos depois, em 22 de março de 2019 (o pedido ocorreu em janeiro de 2013). Neste período, já havia uma série de decisões absurdas já tomadas contra os camponeses.
No dia 17 de Janeiro de 2023, depois de várias petições, requerimentos, manifestações e de resistirem a todo tipo de crimes do latifúndio numa luta prolongada, os posseiros da Gleba Campina e das demais comunidades afetadas, através de ação ajuizada pelo Ministério Público, conquistaram, no dia 16 de janeiro de 2024, uma Decisão Liminar de bloqueio de matrículas de imóveis da suposta “Fazenda Santa Érica”, matrículas oriundas de fraude amplamente denunciada e que se sobrepõe à área dos lotes de centenas de famílias.
Ativistas da região destacam que a raríssima medida do judiciário em favor das comunidades tem grande relevância política para a luta pela terra em todo o Estado, pois se dá em meio a uma brutal ofensiva do latifúndio sobre as posses camponesas.
Confira as reportagens anteriores publicadas pelo Jornal A Nova Democracia sobre a luta pela terra no Maranhão:
Família Finger: Especialistas em transformar terras de camponeses em fortuna pessoal (Parte 1)
Agentes do latifúndio: as polícias a soldo dos grileiros em Junco do Maranhão (Parte 3)