Comuna de Paris. Foto: Reprodução
Foi tétrica a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) da última quarta-feira, dia 07/04, a respeito da liberação de cultos e missas presenciais no auge da pandemia. Em nome de uma suposta defesa da liberdade religiosa, o sr. André Mendonça, Advogado-Geral da União, e outras figuras saídas do submundo bolsonarista, pregaram, isto sim, e de modo aberto, o achincalhe até mesmo da aparência de Estado laico que temos no Brasil. De modo cínico, citaram pencas de versículos bíblicos (como se estes possuíssem força de lei), enquanto fecham os olhos e são cúmplices de fato do extermínio em massa de centenas de milhares de brasileiros no contexto da Covid-19. Não pode passar despercebido, ainda, o fato de que sua petição falava apenas em defesa dos “cristãos”, ignorando solenemente a existência de todas as outras manifestações religiosas.
Outro dia, falando sobre o mesmo tema, embora de modo mais prático, o velho ladroeiro Roberto Jeferson, que serviu – e foi servido – a todos os governos nas últimas décadas (incluindo os do PT), postou um vídeo na internet defendendo o assassinato dos “seguidores de Satanás” que pretendessem fechar igrejas. A sua biografia não deixa dúvidas a respeito da sua valentia e desprendimento. Vendo-o, e a outros pistoleiros clericais, que usurpam a religiosidade das massas para construir verdadeiros impérios, podemos recordar de passagem do mestre Graciliano Ramos, em “Memórias do Cárcere”, ironizando os reacionários que atacavam os seus adversários em nome da “fé e dos bons costumes”: “Os homens do primado espiritual viviam bem, tratavam do corpo, mas nós, desgraçados materialistas, alojados em quartos de pensão, como ratos em tocas, a pão e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a simples espíritos”. Grande Graça! A atualidade destas palavras, escritas há cerca de setenta anos, diz, numa via, sobre a genialidade e integridade do grande escritor comunista, e noutra, dos velhos dilemas e hipocrisias que perduram sem solução na vida brasileira. A paródia de República burguesa-latifundiária que nos assombra, passados mais de 130 anos da sua proclamação, não foi nem sequer capaz de proceder à real separação entre a Igreja e o Estado, como revela de modo eloquente a Cruz que encima o plenário do próprio STF, ou o ensino religioso (cristão) nas escolas, ou as leis antiaborto, ou as concessões de rádio e televisão públicas às emissoras religiosas, ou a isenção fiscal aos estabelecimentos religiosos etc etc etc.
O combate decidido, desde o marxismo, à religião como ópio do povo não se confunde, no entanto, com a negação da fé em geral e nem tampouco com uma abordagem grosseira perante a religiosidade das massas. Ao contrário dos “ateus estúpidos”, não pensamos que a crença religiosa seja um mero arbítrio, fruto da ignorância, mas um fenômeno histórico cujas raízes são bem fincadas na terra, e que só assim pode ser compreendido e superado.
A fé é necessária? Sem dúvida. O que os dados do dia nos mostram, são os mortos em progressão geométrica, a fome, o desemprego, os projetos e os laços pessoais esgarçados ou espatifados por inteiro. Hoje, já praticamente nenhuma família trabalhadora passou incólume a esta catástrofe que nos assola, que reforça pelo negativo o caráter inerentemente social do fenômeno humano. Condição social esta que pressupõe uma história e uma geografia concretas, que existem dentro de dado modo de produção, numa época específica. Demonstra-o uma constatação simples: outro dia mesmo os jornais anunciavam que pessoas a partir de 16 anos que moram em Nova Iorque começarão a ser vacinadas contra a Covid-19 ainda em abril. Enquanto isso, no Brasil, a imunização avança a conta-gotas e os casos vão em alta alarmante, fazendo-nos campeões em mortes diárias, motivadas em grande medida pela pregação genocida-golpista de Bolsonaro et caterva. Como se vê, pessoas da mesma faixa etária e com as mesmas características gerais podem morrer ou se salvar pelo simples fato de estarem situadas em pontos distintos do planeta. Portanto, somos humanos, sim, mas humanos divididos em classes e em países, social, econômica e culturalmente distintos.
Esta distinção será eterna? Não. O comunismo vindouro não acabará com os valores da humanidade, que hoje existem potencialmente, mas, pelo contrário, tornará a Humanidade e a história humana possíveis. Mas esta conclusão não é visível a olho nu: a decisão de batalhar por este futuro implica uma forte dose (nem sempre doce) de crença militante, sobretudo quando os obstáculos no caminho impõem aos lutadores renúncias presentes, em nome de vitórias distantes que apenas se deixam vislumbrar no horizonte. Desde sempre, esta prioridade dos objetivos gerais do movimento proletário sobre os ditos resultados palpáveis imediatos – consciência que não se alcança sem a mediação da teoria – tem separado revolucionários de reformistas.
A fé, fenômeno distinto da religião, é um dado ativo no mundo, como são em geral as ideologias. Ao contrário do que apregoam os detratores mal informados (ou mal intencionados) do marxismo, aquela noção é algo bem estabelecido nos clássicos – e, de resto, em todo o pensamento científico. Já o velho Hegel dizia que “nada de grande acontece no mundo sem paixão”. Marx, comentando Hegel, nos Manuscritos de 1844, precisava que “a paixão é o esforço das faculdades do homem para atingirem seu objetivo”. Lenin, conhecido por sua lógica implacável, dizia que “quando existe algum contato entre o sonho e a vida, então tudo vai bem”. Einstein, intelectual avançado identificado com o socialismo, asseverava que “o objetivo de toda a atividade do intelecto é transformar certo ‘milagre’ em algo concebível”. Mariátegui, um dos mais relevantes intelectuais latino-americanos, em seu artigo “O Homem e o Mito”, pontuava que “a força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade”. E o Presidente Mao, que compreendeu de modo tão decisivo o papel ativo da consciência na vida social, cravava que “nada é impossível no mundo para quem se atreve a escalar as alturas”. Portanto, é pura falsificação querer separar no marxismo o rigor científico da paixão revolucionária; a síntese, nele, da intransigência de princípios com a plasticidade e capacidade criativa; a sua crítica consequente e devastadora tanto ao idealismo quanto ao racionalismo positivista.
Não opomos à fé obscurantista num eterno retorno – típica do reacionarismo – um cientificismo supostamente neutro e tecnocrático, também ele uma forma de mistificação da realidade, porquanto desconsidera um dos seus agentes vitais, quais sejam, as coletividades humanas e seus sistemas de desejos e valores, e mais ainda a sua presente (transitória) divisão em classes antagônicas. Opomos a este e àquela a crença militante na aurora revolucionária, a fé na sua realização próxima, não como mera materialização de uma ideia perfeita pré-concebida, mas como produto legítimo dos esforços dispendidos, acontecimento que terá o sangue e a carne – e as imperfeições – dos seus construtores. Esta fé ardente sobreviverá às religiões e animará revoluções que ainda nem foram concebidas.