Flor de Jacinto: monólogo a luta popular

Flor de Jacinto: monólogo a luta popular

Capa da música “Aguilhões” da Flor de Jacinto. Foto: Juvenil Silva

Flor de Jacinto é cantora e compositora de MPB e folk rock oriunda do município de Escada, Zona da Mata Sul de Pernambuco. Ela tem como principais referências os artistas Geraldo Azevedo, a banda Ave Sangria, Milton Nascimento e entre outros. Lançou sua primeira gravação “Aguilhões” em junho de 2020 pelo selo El Toboso que está disponível no YouTube. Recentemente, Jacinto compôs o line-up de festivais como o Abril pro Rock e Sonora Olinda, se destacando pela experimentação musical com ênfase na música popular que se funde as letras críticas da cantora a realidade social. 

 Meu primeiro contato com a música foi através do meu pai, pedreiro e tocador. Passei parte da infância e adolescência cantando e tocando violão na igreja do bairro vizinho ao meu em Escada. Aos 18 anos me mudei para Paulista, região metropolitana do Recife. Fui com minha avó, tio e primo morar próximo a capital para conseguir ter mais acesso às unidades de saúde e também apoio dos nossos parentes que moravam lá. Quando perdi meu primeiro emprego informal, comecei a trabalhar com minha arte tocando em bares em 2019 e me apresentando em eventos na cidade de Abreu e Lima. Meu repertório era composto de covers, mas sempre encaixava uma música autoral no meio para conseguir divulgar meu trampo.

A nossa diversa cultura popular é reverenciada na minha arte como uma forma de manter viva nossa história construída pelo povo preto, indígena e menos favorecidos desde a existência desse nosso lugar como uma colônia até hoje como conhecemos, o Brasil. – diz Jacinto.

— Acho que uma composição pode ou não conscientizar. Mas independente disso, a realidade, as emoções, tristeza e alegria, as lutas e as vitórias devem ser captadas e expostas na arte como sempre foram na música que emana do povo, ou seja, o nosso folclore, a nossa expressão que vem de “baixo”. Me declaro mulher preta e índia. Ao passo que faço minha arte, reafirmo meu lugar no mundo, minha história ancestral, quem sou – expõe a cantora sobre a importância da mensagem dentro de uma composição, e continua:A música no Brasil, quando não é elitizada, é uma manifestação no estilo “bola de neve” industrializada. O pão e circo sugerido pelo próprio povo desvirtuado da sua identidade real é entregue. Assim, de mês e mês vemos surgir um novo hit de sertanejo ou forró estilizado de acordo com o que estiver na moda sem nenhuma preocupação em preservar nossa história.

Em “Aguilhões” Jacinto faz uma analogia da luta cotidiana que o nosso povo enfrenta com a perseguição sofrida pelos flagelados cristãos da bíblia, ironizando com as seitas neopentecostais que compõem as quarteladas do bolsonarismo.

 “Saulo, Saulo, por quê me persegues? Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões” pergunta o personagem revolucionário e contestador da sociedade de sua época, Jesus, a Saulo de Tarso presente na bíblia cristã no livro de Atos dos Apóstolos. Saulo era perseguidor do movimento cristão e cobrador de impostos. Aguilhões é uma tentativa de recriação do que Saulo poderia ter pensado naquele momento na sua condição de pau mandado das autoridades, conivente com a violência para com os menos favorecidos naquela época, jogando do lado oposto da história. Mas o que o Jesus lhe mostra é que, tanto ele quanto aos que ele oprimia, estavam no mesmo barco. Nos dias de hoje, fazendo essa analogia na letra que na sua estrutura é um monólogo vindo de um indivíduo que seria o Saulo de Tarso dos dias atuais, esses novos “Saulos de Tarso” que dizem “duro é para mim” são os negacionistas, os conformistas, os entreguistas, os não empáticos, egoístas, os que perseguem movimentos sociais e políticos que incentivam a igualdade entre todos, a divisão de recursos e terras de forma justa; os que sempre põem em primeiro lugar o aguilhão apontado para o próprio pescoço como se fosse um troféu meritocrático. A diferença desse Saulo da mitologia cristã para os de hoje é que pouco se constata a luz da consciência vinda sobre esses indivíduos. Eles sentem o peso do sistema capitalista prestes a agonizar sobre os ombros e conseguem parcelar sua dor em 10x no cartão sem acordar. Ignorando entre plumas a violência policial que não os afeta, o descaso que estamos presenciando com o meio ambiente, a fome gritante da população menos favorecida. Capazes de eleger um governo entreguista e genocida e se orgulham disso. Mas duro é para esses que promovem o ódio e o genocídio resistirem a um jato de spray de pimenta no rosto e permanecerem de pé.  expõem a artista fazendo referência aos manifestantes que resistiram bravamente aos ataques fascistas da polícia na manifestação do dia 29 de Maio em Recife.

 Denuncio em Aguilhões o negacionismo da miséria e da violência. Com alguma esperança, acredito que quando as pessoas entenderem que estamos todos no mesmo barco, o Brasil sairá desse estado de divisão ideológica de extremos e entenderemos quem realmente tem o poder: o povo.

Aguilhões

Duro é para mim resistir sob a espada

Recalcitrar contra os aguilhões

E à intocável sacola com prata,

Àquele intocável

Me dando doces que eu terei

Certamente que devolver

No próximo mês

Caixões para comprar e vender dinheiro

Bancos para embalar corpos

E há quem não negue o próprio instinto

Ninguém padece por não ter dinheiro.

Uma dose de alegria para cada cano quente?

Ou um osso para cada um de seus cães?” — dizia uma mente como pluma ao próprio corpo, ignorando o grito da fome.

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