Fome e latifúndio: cobra de duas cabeças

Fome e latifúndio: cobra de duas cabeças

A cobra de duas cabeças, historicamente, atingiu o campesinato pobre sem terra ou com pouca terra. Nos período de crise, como o atual, atingem ainda mais setores do povo, sendo o sustentáculo do capitalismo burocrático em nosso país. Foto: Reprodução da pintura “Retirantes” de Cândido Portinari

Os episódios recentes da história do Brasil escancaram aquilo que sempre esteve presente no cotidiano do povo brasileiro: a fome. Segundo o dado da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), entre 2017 e 2019, o número de pessoas que têm tido dificuldades ao acesso à alimentação por condições financeiras chegou ao patamar de 43,1 milhões. 

A crise sanitária vigente gerenciada pelo governo militar genocida dos generais/Bolsonaro, também atrelada à crise do capitalismo burocrático, agravou a condição de vulnerabilidade sobretudo daqueles que vivem nas favelas do país. De acordo com o levantamento do Instituto Data Favela, 82% da população dessas áreas estão dependendo de doações para o mantimento de suas famílias. Segundo André Martins, gerente da Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Norte e o Nordeste apresentam as menores prevalências de segurança alimentar. Como um país que bate recordes em exportação de grãos não consegue alimentar seu próprio povo?

Um inadequado manejo de análise sobre a questão da fome que assombra o Brasil pode acabar perdendo o cerne que entorna toda a questão. Isso ocorre por ser um fato que se encontra inseparavelmente atrelado à estrutura latifundiária, como uma cobra de duas cabeças.

No Brasil, a gênese do regime da fome está enraizado diretamente na perpetuação da concentração de terras com as invasões coloniais portuguesas de 1500, culminando na origem do latifúndio na Lei das Sesmarias (adquirindo novas roupagens através da história, porém mantendo a mesma estrutura feudal e depois semifeudal nas relações de propriedade e, por conseguinte, nas relações de produção). O espectro da fome no período colonial é exercido através da imposição da economia local para produção de bens primários a serviço do mercado externo (produzindo açúcar, milho, algodão e café), tendo na base o sistema latifundiário de propriedade da terra e as relações escravistas e feudais ou semifeudais de produção. Por sua vez, a alimentação dos escravizados eram mantidos por punhados de farinha a base de mandioca, ou nos litorais, a base de mariscos; e depois, mantida através da instalação de uma economia camponesa extremamente miserável, vítima da exploração feudal e semifeudal no sertão e regiões interioranas do país, subordinada diretamente à autoridade pessoal do latifundiário que concedia terra e se apoderava do valor excedente, através da renda pré-capitalista.

Frei Vicente do Salvador, em seu escrito História do Brasil (1590-1627), fala que: “é o Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão os mantimentos de todas as outras. Dá-se trigo em São Vicente em muita quantidade, e dar-se-á na maior parte cansando primeiro as terras, porque o viço lhe faz mal. Dá-se também em todo o Brasil muito arroz, que é o mantimento da Índia Oriental, e muito milho zaburro que é o das Antilhas e Índia Ocidental. Dão-se muitos inhames grandes, que é o mantimento de São Thomé e Cabo Verde, e outros mais pequenos, e muitas batatas […]” Ou seja, o historiador franciscano deixa muito bem exposto a produção de alimentos para a estabilidade do mercado colonial. Porém, nunca foi interesse dos grandes donatários de terras a garantia da nutrição dos escravos e da população pobre do Brasil colônia.

São relações que se perpetuam ao longo da formação histórica do nosso país através de novos elementos, mas mantendo a intocável grande propriedade agrária do latifúndio semifeudal do velho Estado. A fome e a precariedade nos centros do Recife, São Luís e Rio de Janeiro é uma constante nas obras coloniais descritivas de Fernão Cardim e Padre Vieira.

A fome permanece no desenvolvimento dos capítulos do Brasil colônia em razão da perpetuação do regime da terra, e posteriormente, no Império. A farsante independência de 1822 e o surgimento da República no final do século XIX garantiu nada mais que uma reestruturação do Estado brasileiro e a troca de metrópole nesse processo – que após Portugal, foi a vez do império britânico exercer o trabalho sujo – mantendo a mesma apodrecida infraestrutura e superestrutura social e econômica. 

Essas relações de produção tornam-se ainda mais adjacentes com a Lei de Terras de 1850, consolidando juridicamente que a posse da terra só poderia se realizar através de sua compra. O advento da ilusória Abolição da Escravatura, por não ter sido um processo revolucionário, também não alterou em nada as relações de propriedade e, portanto, manteve intocada a classe dos latifundiários, se tratando de um processo reformista (portanto, negando as transformações democráticas que a época exigia) para corresponder às nascentes relações capitalistas burocráticas aceleradas pela penetração do capital imperialista no país fundindo-se com os capitais dos latifundiários e dos burgueses compradores.

A fome persiste sobretudo no Nordeste, o local mais vitimado justamente por ser a região onde predomina o latifúndio de caráter atrasado cuja concentração fundiária é muito mais expressiva, que estabelece oligarquias onde até hoje dominam o cenário político, econômico e militar de toda a região. É também o local que mostra um maior embrutecimento da economia do campo, de onde sai a maior parte da força de trabalho camponesa expropriada. 

No final do período imperial, o Brasil assistiu o devastador capítulo da Grande Seca que atingiu a região entre 1877 e 1880. A Grande Seca nada mais foi que um sintoma causado pela política da posse da terra, pois como diz um velho ditado: o problema do Nordeste não é a seca e sim a “cerca” – que segrega aqueles que detêm o poder da propriedade da terra daqueles que não o têm, condenados então a viver sob condição de miséria e servidão a estes que o detém. Rodolfo Teófilo relata cenas escatológicas deste caso no livro História da Seca no Ceará: 1877-1880, que mostra os flagelados cozinhando sola de sapatos como forma desesperada de fuga da fome. Não é a toa que este período foi um dos mais efervescentes se tratando de rebeliões populares, porque o país clamava por transformações radicais. É só observar a quantidade de revoltas que ferveu todo o povo brasileiro como a Revolta da Farinha, ocorrida em Salvador no ano de 1858, onde os pobres rebelaram-se contra a alta dos preços dos alimentos e as milhares de mortes causadas por epidemias de cólera, tomando as ruas com o grito de guerra: “Carne sem osso e farinha sem caroço”. Também houveram outros episódios históricos de revoltas como a Cabanagem, Balaiada, a Revolução Farroupilha, a Revolução Pernambucana e a Confederação do Equador – a maioria destas protagonizada por nordestinos.

A persistência da estrutura latifundiária ao longo da formação histórica do país resultou no surgimento de um capitalismo de tipo burocrático, só consolidado no Estado Novo de Vargas, que se sustenta com a economia do latifúndio semifeudal e com a subjugação imperialista (sobretudo ianque), impedindo um desenvolvimento genuinamente nacional e independente, prolongando a questão da fome com a permanência das mesmas relações de produção que são intrínsecas às relações de propriedade de monopólio latifundiário da terra. A expressão da fome no desenvolvimento do pensamento sociológico brasileiro aparece principalmente nas obras de Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, e claro, Josué de Castro que debruçou-se sobre a questão vorazmente, contrariando a historiografia burguesa que põe a questão da fome como uma abstrata “desigualdade”, ou, no caso do Nordeste, resultante da “seca”  – argumentos que procuram esconder a semifeudalidade e o poder em torno da posse da terra – desmascarando que a problemática está associada ao latifúndio, às relações semifeudais de produção, concluindo como principal aspecto a ser resolvido no Brasil. De acordo com Josué: “A fome é a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas.” É neste período, no século XX, que se embate uma verdadeira luta teórica pelo estabelecimento de uma análise consequente da formação econômica do Brasil, que teve como vanguarda o Partido Comunista do Brasil (P.C.B.), apesar de ainda permanecer algumas limitações. Josué de Castro também advoga que a distância entre a definição ou não da existência da semifeudalidade é a distância entre a revolução ou uma simples reforma.

As políticas reformistas para a solução do problema da fome e da extrema pobreza provou que, na prática, está longe de superar essa contradição, porque não alterma em nada a estrutura da propriedade da terra. O que se observa, na verdade, é o aprofundamento da problemática como foi no governo FMI/PT com suas propostas assistencialistas, que não passaram de tentativas falhas de pacificar o nosso povo – a mesma política do regime imperial. O advento do latifúndio de novo tipo, o agronegócio, como penetração do capital burocrático assentado nas mesmas relações de propriedade e que promete alavancar o setor produtivo dos monopólios locais e estrangeiros (agroindústrias), inseriu modalidades capitalistas nas relações de produção no campo, mas, justamente porque mantém a mesma atrasada estrutura engessada na grande propriedade agrária, também faz reproduzir as relações semifeudais e as reforça, de modo subjacente, como base sem a qual não pode existir. Os reacionários e economistas usam do surgimento desta nova roupagem dada ao latifúndio para legitimar suas falácias entoadas nos monopólios de imprensa de que o agronegócio, representado por uma falsa “modernidade”, é a resposta para a questão da fome. O dito “agronegócio” não é a resposta para a questão da fome, na realidade é a sua causa, porque é o que complementa a lógica da perpetuação do regime da terra e da subordinação do país aos interesses do capital estrangeiro, como produtor de monoculturas para exportação que é, sem mencionar que lança sobre a economia camponesa famélica a tarefa de produzir a cesta básica alimentar (que, devido ao atraso de suas forças produtivas, se vê impelida às relações semifeudais de produção) e ainda por cima arrancá-lhe toda a renda da terra que aquela extrai. A questão se soma à evidente crise do capital financeiro expondo que as políticas assistencialistas não estão de acordo com a agenda do velho Estado neste período, onde retira-se sistematicamente qualquer tipo de migalha oferecida ao povo brasileiro para suprir as exigências impostas pelo capitalismo burocrático que, subserviente às oligarquias internacionais, usa de seu programa para sufocar a nação.

Sobre o surgimento de modalidades capitalistas na economia latifundiária, o Presidente Gonzalo, dirigente do Partido Comunista do Peru, ao analisar este processo, constata: “A economia latifundiária é evoluída em um processo muito lento e prolongado até uma forma capitalista seguindo o caminho burocrático, que consiste em introduzir técnicas e modalidades capitalistas mantendo a grande propriedade agrária e resguardando o poder da classe latifundiária feudal. Por este caminho a economia latifundiária é evoluída internamente e, em vez de libertar o camponês, aproveita ao máximo a exploração do trabalho gratuito e outras modalidades feudais para lograr uma acelerada acumulação de capitais. O camponês sofre dolorosamente este longo processo de transformação em que são sugados seu trabalho e seus bens, vê-se despojado de suas poucas terras e ainda é lançado fora do campo. O latifúndio e a servidão mantêm-se ocultos sob novos nomes.” 

De acordo com os dados de 2020 da Companhia Nacional de Abastecimento, a Conab, enquanto a fome assola o país, houve uma grande demanda pela produção de milho – uma das monoculturas que impulsionam a economia latifundiária -, mas revela que as reservas públicas da nossa alimentação se encontram fragilizadas, com uma relativa estagnação na produção de arroz e feijão. Os dados de 2020 festejados pelo Ministério da Agricultura mostram que o milho obteve uma produção recorde de 108 milhões de toneladas, a demanda é acompanhada também pelo grande crescimento da produção de soja que representa 80% do comércio de exportação com a China. Países imperialistas garantem a boa nutrição de seus gados com as colossais exportações de produtos plantados e colhidos por um verdadeiro exército de famélicos em nossa pátria. Para as classes dominantes é de fato um motivo para se comemorar o discurso do “Agro é pop”, mas isso prova na prática que as supersafras estão apenas garantindo o lucro dos grandes latifundiários e do capital burocrático e imperialista ali instalados, longe de alimentar a população pobre do Brasil.

Como relatou o artigo do AND intitulado Latifúndio e servidão: irmãos siameses: “Os surtos de relativa industrialização com base nos monopólios locais e estrangeiros (agroindústria) assentam-se no latifúndio e na semifeudalidade voltados à produção primária de monoculturas para exportação (commodities). As médias e pequenas propriedades rurais, principalmente as pequenas, são as que produzem alimentos submetidas às relações de exploração com os monopólios, que ao pagar por elas um preço abaixo do valor (tomando-lhes a renda na forma de renda-produto) fazem baratear a cesta básica, mantendo baixos os salários nas cidades. Daí que ao imperialismo e ao capitalismo burocrático interessam (porque é chave) manter uma agricultura camponesa mais ou menos arruinada de forma permanente. Por isto não a eliminam por completo. A agricultura familiar famélica – e, portanto, atada a novas formas de servidão – se reproduz indefinidamente submetida e ao lado do latifúndio (como agronegócio ou não) como parte essencial da base do desenvolvimento capitalista burocrático e suporte do imperialismo e em benefício destes.”

A questão da fome está essencialmente assentada, portanto, no regime latifundiário de propriedade da terra, que através de seu caminho burocrático legitima a permanência de seu aparato estatal decadente e insustentável através dessas bases econômicas, em benefício da dominação imperialista no Brasil. O problema da fome, que sobretudo é uma questão agrária, perpetua-se por ser uma contradição que nunca será superada dentro dos marcos das vias institucionais, sendo tal norma jurídica a vontade dos latifundiários erigida em lei. Perpetua-se pelo fato do Brasil nunca ter passado por um processo revolucionário de conteúdo democrático e nacional. A extrema pobreza que cobre os marginalizados deste país é a mais explícita demonstração dessa intensa contradição que ano após ano ataca e mata milhares dos filhos e filhas do nosso povo. 

Portanto, a solução cabal é o caminho democrático como única via possível para solucionar as mazelas deste imenso país. Caminho este que será trilhado pela Revolução Agrária e Antifeudal, Democrática e Antiimperialista (o Poder de Nova Democracia) ininterruptamente ao Socialismo, como única garantia consequente de arrancar a fome pela raiz através da destruição do latifúndio e divisão de suas terras em lotes individuais de estrutura coletiva como garantia de desenvolvimento das forças produtivas, não para desenvolver capitalismo, mas no rumo do Socialismo, condição para brindar o povo brasileiro com um futuro luminoso para se viver e trabalhar.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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