Fome, Latifúndio e Colonialismo: comentários acerca da ‘Geopolítica da Fome’ de Josué de Castro

Esse mês, se celebra 115 anos do natalício de Josué de Castro. Nesse texto, o colaborador de AND, Luiz Messeder, retoma a obra "Geopolítica da Fome", do grande cientista.
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Fome, Latifúndio e Colonialismo: comentários acerca da ‘Geopolítica da Fome’ de Josué de Castro

Esse mês, se celebra 115 anos do natalício de Josué de Castro. Nesse texto, o colaborador de AND, Luiz Messeder, retoma a obra "Geopolítica da Fome", do grande cientista.

Neste mês em que se celebra os 115 anos do natalício do grande cientista brasileiro Josué Apolônio de Castro (1908-1971), imortalizado nas bibliografias como Josué de Castro, se pretende com este artigo realizar o tributo à seu vasto acervo através do tecimento de comentários ao seu “Geopolítica da Fome”(1951). Obra em que o autor pernambucano de forma quase enciclopédica ilustra o panorama mundial da fome ao seu tempo, que infelizmente contêm atualidades, identificando as carências nutricionais de cada povo e as relacionando com as condições sociais e, secundariamente, ecológicas de cada espaço, como também apontando as consequências no desenvolvimento fisiológico e psicológico das populações. Em que pese qualquer imprecisão acerca de conhecimentos intrinsecamente nutricionais, fisiológicos ou mesmo agronômicos/pedológicos que porventura possam contestar tal ou qual análise isolada, não custa lembrar que a obra foi escrita há mais de setenta anos com base em dados ainda mais antigos (décadas de 1930 ao princípio da 1950), e que, ainda assim, não invalidam o conjunto que aponta para o maior contributo de Josué de Castro ao entendimento da fome, a “desnaturalização” da mesma. 

Médico de formação, Josué de Castro, criado na Zona da Mata pernambucana cujos massapês adoçaram os lábios de meio mundo por séculos à revelia da fome de seus habitantes, iniciou sua carreira ao atendimento ao povo pobre e logo viu nos limites da atuação médica uma ação paliativa frente à realidade nutricional do povo, assim seus estudos o redirecionaram para nutrição e, por fim, a geografia, enquanto parte da ciência social, em última instância, política. Caminho o qual, também foi encontrado, quase paralelamente através de vias distintas, dois médicos de formação: Frantz Fanon (1925-1961) e Che Guevara (1928-1967) que devotaram seus anos derradeiros a curar uma doença ainda maior que aquelas que o seu curso os havia habilitado. Decorrência coerente, decerto, a se levar a termo os votos do Juramento de Hipócrates. 

A Geopolítica de Josué de Castro

Sendo escrita em 1951, a obra “Geopolítica da Fome” já traz consigo o impacto de trazer o nome de uma ciência maldita, cuja culminância de seu desenvolvimento teórico havia sido a recém encerrada Segunda Guerra Mundial (1939-1945), deflagrada pelo anseio expansionista alemão justificado nos conceitos de Ratzel, Kjellen e Haushofer. Ao retomar o termo “Geopolítica”, no prefácio do autor, este demarca claramente uma linha divisória com os autores supracitados e defende uma concepção diferente de geopolítica: 

 “é o de uma disciplina científica, que busca estabelecer as correlações existente entre os fatores geográficos e os fenômenos de categoria política, a fim de demonstrar que as diretrizes política não tem sentido fora dos quadros geográficos […] E claro que a Geopolítica, assim compreendida não tem nada haver com a “Geopolitik’ germânica […] que não passava de uma nebulosa mistura de princípios contraditórios concebida com a finalidade única de justificar as aspirações expansionistas do Terceiro Reich”  (p. 13). 

Atualmente diante de uma ressurreição da geopolítica no debate público – instigada pela preparação de uma nova guerra interimperialista – pela pena de Dugin e da escola anglo-estadunidense, ambas “nebulosas misturas de princípios contraditórios concebidos com a finalidade única de justificar as aspirações expansionistas” de suas respectivas superpotências, a abordagem de Josué de Castro sobre esta ciência possíveis paradigmas para sua redenção científica.

Assim, ao propor sistematizar uma “Geopolítica da Fome”, Josué de Castro não busca apenas classificar espacialmente a fome, como primeiramente pode indicar o prefixo “Geo”, mas trazer o assunto fome definitivamente para a esfera social e das relações de dominação que cindem e costuram essa contingência física que é o espaço. Afirmar a natureza geopolítica da fome permite o reconhecimento da responsabilidade social sobre a existência da fome.

Desnaturalização da Fome

A restrição alimentar é uma realidade natural existente em várias espécies, servindo de limitante ecológico para sua proliferação, contudo, com o avanço das forças produtivas da sociedade, não se pode naturalizar a fome para o homem. Segundo Josué de Castro, a fome não é decorrente da natureza, mas criação humana: “O problema da fome mundial não é, por conseguinte, um problema de limitação da produção por coerção das forças naturais; é antes um problema de distribuição […] A fome e a guerra não obedecem a qualquer lei natural” (p.27). Corrobora sua afirmação de descobertas arqueológicas e antropológicas que evidenciam a superioridade da constituição física dos povos primitivos (pré-históricos ou, cada vez mais raros, isolados) aos civilizados. 

Josué de Castro, apesar de entender as limitações planetárias para o progresso produtivo da humanidade, reconhece que essas estão muito distantes de serem alcançadas. Cada introdução de novo insumo agrícola de origem industrial, cada seleção de variedades mais produtivas e cada avanço social na estrutura fundiária conjura para mais distante o discurso escatológico neomalthusiano. Inclusive, cita o exemplo do desenvolvimento soviético e das democracias populares do Leste Europeu – áreas de grande fome no início do século XX – que elevou a produtividade da agricultura a níveis superiores pré-Segunda Guerra Mundial até a coleta dos dados usados no livro (fim da década de 1940 e início da década de 1950):

“Através de seus planos trienais e quinquenais, a economia dirigida vem, nestes países, obtendo resultados que surpreenderam os economistas do Ocidente[…] O que não se pode negar é que esses países atravessam hoje uma era de relativa prosperidade, com suas populações trabalhadoras, tanto urbanas quanto rurais, começando a dispor de suficientes recursos de base, essenciais para a vida” (p. 254) 

Dessa forma, se a natureza dispõe de recursos e a produtividade agrícola é crescente, por que há fome? Cada classe (e setor de classe) enxergará a fome através do seu prisma. Por muito tempo no mundo civilizado, a fome era vista como episódica ou pertencente à esfera teológica. Neste caso, inevitável por se tratar dos desígnios divinos, que usa a fome para punir a degradação moral e ferramenta de mortificação da carne para elevação espiritual (não custa lembrar que os três pastorinhos místicos de Fátima, morreram dois de doenças evitáveis relacionadas à fome). Foi apenas no período ascendente da burguesia (século XVIII), através da Economia Política Inglesa (Malthus, principalmente), que a fome começou a ser estudada como um acontecimento com causas objetivas. Entretanto, tendo de justificar um novo regime de exploração e desigualdade, repetiu os antigos preceitos: a responsabilização do famélico pela sua desgraça e a mistificação da Natureza, que assumiu o lugar de Deus na concessão de infortúnios à espécie.

Visão esta, que encontrou eco desde a metade do século XX quando alguma melhoria no padrão de vida dos mais pobres levou ao crescimento populacional mais rápido. Josué de Castro compara essas teorias à espantalhos, cuja função é espantar as pestes do pomar, no caso a peste dos pobres: “Contra essa praga humana que ameaça a segurança alimentar e o nível geral da vida das populações mais ricas se levantam aos neomalthusianos, nos quatro cantos do mundo, os espantalhos de suas teorias do excesso de população” (p.18)

Latifúndio, colonialismo e fome

Entre as inúmeras áreas de fome identificadas pelo autor, podem se atribuir pontos comuns a todas de maior gravidade. São eles a economia colonial e o latifúndio, que de forma associada colaboram a empobrecer e dificultar a alimentação dos povos do mundo. Seja no modelo de monocultura voltada à exportação como nas zonas tropicais da América Latina e costa da África, como nas pequenas explorações camponeses tributárias (em espécie, serviço ou moeda) aos seus proprietários na China(pré-1949), o latifúndio serviu ao empobrecimento e à fome dos camponeses em particular como da nação em geral: “A exploração latifundiária a monocultura à base dos salários baixos, apresentada em suas variantes nas áreas coloniais do mundo inteiro, constitui, pois, o caldo de cultura ideal para o desenvolvimento do pauperismo, da miséria e da fome” (p.278)

Segundo, Josué de Castro é a condição de produtor de “um ou dois produtos de exportação” (p. 278) que caracteriza a condição colonial, compartilhada seja pelas “colônias políticas” (como a África e Caribe quando o livro foi escrito), como as “colônias econômicas” (América Latina, Índia, China até 1949). Sem produtos de valor agregado e se dedicando a produzir bens com valor determinado fora de suas fronteiras: “[…] os habitantes das áreas coloniais não conseguirão libertar-se da escravidão da fome, porque o jogo da economia mundial tende sempre a desvalorizar o seu trabalho, em proveito dos lucros da indústria (p.277)”. Não basta produzir, é necessário que a maioria do povo tenha condição de adquirir os bens.

Outro problema do latifúndio exportador é a redução da diversidade dos cultivos em uma dada região que dedica a maior quantidade e qualidade de solos a um ou dois produtos, que por sua vez reduz a oferta de nutrientes na alimentação do povo, empobrecendo-a. Também empobrece o solo que, em situação distinta de uma vegetação natural, sofrerá com o esgotamento dos nutrientes consumidos por determinada cultura sem que existam outros seres vivos que os reponha. Isso sem desconsiderar o processo de erosão ao qual o solo fica mais evidente e os efeitos nocivos de determinados insumos agrícolas, que desconsideram outras variáveis que não a produção imediata de grandes quantidades por área cultivada. 

Apesar de não ter vivido para assistir os resultados da aplicação da Revolução Verde, cujos prenúncios seu livro já mencionava: inovações técnicas, mecanização, uso de fertilizantes industriais, melhoria genética, entre outros, Josué de Castro não se iludiu quanto às suas limitações. Entusiasta do progresso da ciência aplicado à agricultura sabia claramente dos limites técnicos se não acompanhados de progresso social: “Não se deve, porém, limitar essa assistência técnica ao fornecimento de recursos que permitam produzir com mais eficiência e maior rendimento as matérias primas ora produzidas nas áreas coloniais. Esse tipo limitante de assistência técnica já foi adotado pela Inglaterra no tocante a várias de suas colônias africana e, em lugar de melhorar, muito contribuiu para piorar as condições de alimentação naquelas áreas (p.281)”. Hoje, vendo países como Brasil que produzem grãos e proteína animal para mais de um bilhão de humanos e convivendo com a fome em seu próprio interior, parece se confirmarem com vigor profético. Lastimosamente, sabemos a dificuldade dos profetas em sua própria terra.


Esse texto expressa a opinião do autor.

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