Força Nacional em TIs: Governo Luiz Inácio/Flavio Dino segue com a militarização da questão agrária

Nos dias 5, 6 e 13 de setembro, o governo de Luiz Inácio – por meio do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino – autorizou o novos envios e prorrogou antigas permanências de tropas da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) em áreas indígenas.
Luiz Inácio amplia presença de FN em TIs. Foto: Reprodução/RBS TV

Força Nacional em TIs: Governo Luiz Inácio/Flavio Dino segue com a militarização da questão agrária

Nos dias 5, 6 e 13 de setembro, o governo de Luiz Inácio – por meio do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino – autorizou o novos envios e prorrogou antigas permanências de tropas da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) em áreas indígenas.

Nos dias 5, 6 e 13 de setembro, o governo de Luiz Inácio – por meio do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino – autorizou novos envios e prorrogou antigas permanências de tropas da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) em áreas indígenas. Por meio das portarias 471, 473, 474, 476 e 483, estendeu-se, novamente, a estada da FNSP na região do cone sul do Mato Grosso do Sul (MS) – que lá vem intervindo há 12 anos, conforme já noticiou o AND; prolongou-se também a utilização da tropa nas Terras Indígenas (TI) Uru-Eu-Wau-Wau (RO) e Apyterewa (PA); e iniciou-se a intervenção nas TIs Pirititi (RR) e Alto Rio Guamá (PA).

Em todos os casos, os textos oficiais dizem que a finalidade da FNSP é a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, em caráter episódico e planejado”. A “ordem pública”, claro, é o atual estado de coisas em que os latifundiários violam planejadamente a incolumidade dos indígenas com a proteção de seu patrimônio garantido pelas polícias. O caráter “episódico” também se demonstra falso: a atuação no território Uru-Eu-Wau-Wau chegará a um semestre em dezembro, ao prorrogar-se aquela anunciada em 7 de junho (portaria 391); e o caso das sucessivas prorrogações no MS demonstram que a tendência para a militarização da questão agrária está se agudizando cada vez mais no que tange aos povos indígenas. 

MS: Retomadas avançam apesar de aumento de assassinatos e 12 anos de intervenção

No estado do Centro-Oeste, a intervenção foi iniciada ainda no governo militar de Bolsonaro, via seu ministro golpista Anderson Torres. A intervenção foi planejada até 31 de dezembro de 2022 (portaria 136). Ele mesmo prorrogou, no começo de dezembro, o prazo até 30 de abril (portaria 239) – ainda que, nesse caso, tenha alegado combate ao narcotráfico. 

Faltando mais de um mês para data prevista, em 9 de março de 2023 (portaria 318), Luiz Inácio/Dino autorizaram o emprego da FNSP “nas aldeias indígenas do cone sul” do MS e também na fronteira Brasil-Paraguai por 90 dias. Em 14 de junho, uma nova portaria (401) estendeu por mais 30 dias. O fato se repetiu novamente em agosto (portaria 441). Na portaria de setembro, o governo escancarou o propósito da militarização e retirou a FNSP das fronteiras, sobrando somente os efetivos direcionados contra os indígenas.

O caso do Mato Grosso do Sul escancara a falência da via militar para solução dos problemas dos povos indígenas aos quais é negado o direito à terra. Desde a primeira ida da FNSP até a região, os assassinatos de indígenas só aumentaram. A média de 30,87 mortes na gestão Lula (2003-2010) atingiu seu recorde (até então) de 35,8 mortes nos cinco primeiros anos (2011-2015) do governo Dilma. Apesar da breve queda nos assassinatos em MS em 2016-2017 (18 e 17, respectivamente – ainda acima dos 13 e 16 de 2003-2004), o número chegou a 38 em 2018 e uma média 36,5 no último período (2019-2022) [1].

Como resposta, desde então, a luta, principalmente dos Guarani-Kaiowá, tem aumentado, mesmo sob a crescente repressão direcionada pelo velho Estado e latifundiários. Não à toa, a data da primeira intervenção de 2023 corresponde ao dia seguinte do avanço dos indígenas em Laranjeira Nhanderu e a segunda ocorreu uma semana depois dos massivos protestos contra o Marco Temporal.

Alex Lopes, Marcio Fernandes e Vitorino Sanches, todos Guarani-Kaiowá
assassinados em 2022, são provas de que a Força Nacional não está no estado para
proteger os povos indígenas. Foto: Reprodução

RO: FN atua com latifundiários de extrema-direita contra indígenas e chacina camponeses pobres

Em Rondônia, a TI Uru-Eu-Wau-Wau vem sendo alvo de ataques de grileiros e latifundiários principalmente desde 2017. As raízes desse conflito datam desde o regime militar fascista de 1964-1985, segundo dados do InfoAmazonia e do Mapa de Conflitos da Fiocruz [2]. A partir do Plano de Integração Nacional (1970), o general Castelo Branco estimula a expansão da “fronteira agrícola” para a Amazônia. 

Nesse mesmo período, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) distribuiu 122 títulos no território desse povo amazônico, estimulando, assim, o conflito entre indígenas e camponeses pobres, na velha estratégia de lançar massas contra massas. O resultado é descrito em 1983 pelos antropólogos Betty Mindlin e Mauro Leonel: “Pelo menos há duas décadas estas comunidades confrontam-se esporadicamente com os seringueiros, mateiros, colonos, garimpeiros e pesquisadores de minério que perambulam pela região” [3]. 

Embora oficialmente homologada em 1991, a terra, que abriga pelo menos seis etnias, não cessou de ser alvo. Em 2007, já haviam denúncias do avanço de grandes madeireiras e “diversas violações às fronteiras da TI Uru-Eu-Wau-Wau” [4]. Nos anos seguintes, a construção das usinas Santo Antônio e Jirau – obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de Luiz Inácio – aumentou as invasões na TI [5]. Tanto o Projeto Básico Ambiental (2008) quanto o Estudo de Impacto Ambiental (2010) das obras foram criticados por ignorarem os efeitos para os Uru-Eu-Wau-Wau e outros povos da região [6]. Em 2017, um membro da “Associação Curupira”, acusada de grilagem no território indígena, disse que contava com o apoio do ex-senador e ex-governador de Rondônia Ivo Cassol (PP) e do deputado federal Coronel Chrisóstomo (PSL)[7].

Ivo Cassol (dir.) e Coronel Chrisóstomo (esq.), acusados de apoiarem
atividades de grilagem no território Uru-Eu-Wau-Wau, são conhecidos por suas
posições reacionárias e ataques à luta pela terra. Foto: Reprodução

O vínculo entre latifúndio, velho Estado, militares e extrema-direita fica então patente. Governador de 2003 a 2010, Cassol é acusado de manter trabalho escravo em suas fazendas e de se apoderar de 80% do território do povo Wayurú. Tendo chegado em 1976 na região, sua família é uma oligarquia latifundiária escancaradamente defensora do regime militar. O escancaro é tanto que o parlamentar chegou a defender na Comissão de Agricultura do Senado, em 2018, que se deveria “agir a favor dos agricultores do estado, levados pelo regime militar para ocupar a região”[3]. Por sua vez, Chrisóstomo, ele mesmo um militar, já defendera a mineração em terras indígenas, em 2019, ao lado do coronel da PM e governador Marcos Rocha. Atualmente, tem sido um dos reacionários que mais esbravejam durante a ‘‘CPI do MST’’, constantemente atacando a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) em suas falas.

Por fim, há que se notar que a Força Nacional chamada para supostamente resolver o conflito dos Uru-Eu-Wau-Wau, é a mesma das campanhas de cerco e chacinas em Rondônia contra camponeses pobres em 2021. Sob o gerenciamento do representante puro-sangue do latifúndio Marcos Rocha (eleito em 2019 e no poder até hoje), a FNSP, ao lado da PM/RO, começando em maio, sitiou os acampamentos Manoel Ribeiro, Tiago dos Santos, Ademar Ferreira e 2 Amigos. A Força Nacional teve ainda participação na execução de Amarildo, Amaral e Kevin, em agosto e continuou suas injustas e ilegais operações nos meses seguintes até serem derrotados pelos camponeses organizados pela LCP. 

Em meio a essa situação, os povos da Uru-Eu-Wau-Wau vem resistindo. Um ano após a execução de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, em Tarilândia, distrito de Jaru, em 2020, o povo protestou em frente ao prédio da Justiça Federal na capital de Rondônia. Ari atuava no grupo “Guardiões da Floresta”, na defesa do território de seu povo, denunciando e monitorando (via GPS) invasões em sua terra. Mantendo esse legado e sem esperar dos órgãos do velho Estado, o povo Uru-Eu-Wau-Wau se organizou para expulsar os grileiros. Eles queimaram cabanas que abrigavam os grileiros e eles mesmo realizaram detenções dentro da sua TI, conforme pode se ver no filme O Território de 2022 [8].

Os Uru-Eu-Wau-Wau conformaram uma “equipe de vigilância” para
proteger seu território de invasores, dando mostras da capacidade de se auto-organizar. Foto: Reprodução/Captura de tela/Mongabay

Luiz Inácio aumentou a utilização da Força Nacional em TIs

Luiz Inácio tem sido mais contundente que o próprio Bolsonaro no envio de tropas para territórios indígenas. Segundo a revista Crusoé, até junho de 2023, o governo Luiz Inácio havia destinado a Força Nacional para atuar em 10 TIs, o que equivalia a 66% das 15 operações dessa polícia especial. Em comparação, no ano anterior, Bolsonaro acionou 51 vezes a FNSP, destinando-a para áreas indígenas em 45,09% dos casos (23) [9]. 

Crescimento do uso da Força Nacional nos últimos anos indica a tendência
de militarização questão indígena. Foto: Reprodução

Oficialmente, segundo dados de junho de 2023 obtidos pela Folha, essa força militar atuava em 17 municípios de 7 estados (Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Sul, Rondônia e Roraima) em que há TIs [10]. Na área mais antiga em atuação consecutiva*, a Apyterewa (PA) vê se que a FNSP – lá desde janeiro de 2016 – não cumpre aquilo que promete. 

A chegada da FNSP precedeu por quatro meses a inauguração oficial da usina hidrelétrica (UHE) de Belo Monte. Na sequência, o desmatamento da região aumentou: 237% em 2017-2018 e 350% em 2018-2019, segundo o site Sumaúma [11]. Por quatro anos seguidos (2019 a 2022), a TI Apyterewa bateu o recorde de desmatamento na Amazônia, segundo dados do Imazon, perdendo 324 km² de floresta. A relação é clara, visto que o próprio Ibama afirmou que 40% (1018) de todas suas ações fiscalizatórias concentram-se na região de Altamira e São Félix do Xingu [12]. Enquanto isso, a FNSP assiste “sem qualquer reação, como cada vez mais garimpeiros entram no território em busca de ouro”, como denuncia o monopólio alemão Deutsch Welle [13], e são militares aqueles que incentivam a destruição do território tradicional.

O problema no território dos Parakanã não é recente, no entanto. Homologado em 2007, o território tinha, no biênio seguinte (2008-09), mais de 1200 fazendeiros e madeireiros no local e 80% de sua área ocupada por não-indígenas. Na sequência, a construção e instalação da usina, em Altamira – defendida por Luiz Inácio e implantada por Dilma Roussef – fomentaria as invasões. Em 2009, como condição do licenciamento da UHE, prometeu-se uma “desintrusão” do território, o que não foi cumprido até hoje por nenhum dos governos de turno, mesmo após ordem do STF em 2015 [14]. Depois de sucessivas ocupações de canteiros da UHE em 2012 e em 2013, os indígenas chegaram a seguinte conclusão: “O governo não quer paz, o governo quer guerra com os povos indígenas”.

Povos indígenas do Xingu protestam contra Belo Monte, que foi inaugurada quatro meses após o envio da FNSP para o TI Apyterewa, em janeiro de 2016. Foto: Antonio Cruz/Arquivo ABr

O fracasso da intervenção militar para a questão é patente em todos os âmbitos: não impede os assassinatos de indígenas, tampouco impede o avanço de grileiros ou ajuda a minimizar o desmatamento. Mesmo um defensor da necessidade do emprego da FNSP, como Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, admite que é “um recurso caro e aplicado como band-aid, porque não resolve”.

A realidade demonstra que não se tratam de conflitos momentâneos visto que sua base social – o latifúndio – é uma chaga que persiste. Assim, de um lado, para garantir os superlucros dos latifundiários, o velho Estado tem militarizado cada vez mais a questão agrária e, de outro, os indígenas – seja os Guarani-Kaiowá, os Uru-Eu-Awu-Awu ou os Parakanã – tem visto na luta a única alternativa para manterem-se donos de seus territórios.


Notas:

* Embora haja atuação da FNSP no MS desde 2011, de forma sequencial, as portarias
não são sempre para o mesmo território, geralmente nem indicando um território
específico, mas uma região (como “cone sul”) ou algumas cidades. Assim, pelo menos
oficialmente, não há uma intervenção consecutiva em nenhuma área específica.

1 – Informações do período 2003-2017: CIMI. Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2017, p. 84; do ano de 2018: CIMI. Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2018, p. 81; e do quadriênio 2019-2022: CIMI. Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2022, p. 169.

2 – Fiocruz. “RO – TI Uru-Eu-Wau-Wau sofre constantemente com grandes obras públicas e ações do agronegócio.”

3 – Peres, Christiane. “Da Ditadura aos dias de hoje, o permanente cerco autoritário contra a TI Uru-Eu-Wau-Wau”. InfoAmazonia, 10/11/2022.

4 – Taitson, Bruno. “Terras indígenas e unidades de conservação sob ameaça”. WWF-Brasil, 19/04/2007.

5 – “Autogoverno: Pressão dos Uru-Eu-Wau-Wau resulta na prisão de grileiros”. Mídia Ninja, 30/07/2022.

6 – Monteiro, Telma. “Indígenas isolados ameaçados pelas hidrelétricas na Amazônia: Santo Antônio, Jirau e Belo Monte”. 27/05/2010; Lacerda, Rosane F. “Avatar é aqui! Povos indígenas, grandes obras e conflitos em 2010”. CIMI, 08/12/2010.

7 – Fellet, João. “Investigação revela terras protegidas da Amazônia à venda no Facebook”. BBC News Brasil, 26/02/2021.

8 – Esteves, Bernardo. “Jornada do herói”. Piauí, 03/2022.

9 – Mendes, Gui. “Dino já mandou Força Nacional dez vezes para terras indígenas”. Crusoé, 13/06/2023.

10 – Lopes, Raquel. “Cresce atuação da Força Nacional em territórios indígenas por causa de conflitos”. Folha de S.Paulo, 12/06/2023.

11 – Palmquist, Helena. “A hora é agora: Lula terá que decidir sobre Belo Monte”. Sumaúma, 06/03/2023.

12 – Carneiro, Taymã. “Terra indígena com maior desmatamento por 4 anos seguidos, TI Apyretewa, no Pará, perdeu área maior do que Fortaleza, diz estudo”. G1, 03/02/2023.

13 – “O ‘belo monstro’ do Xingu”. Deutsche Welle, 13/05/2019.

14 – Fiocruz. “PA – Enquanto aguarda por desintrusão, povo Parakanã luta contra invasores, desmatamento e queimadas na terra indígena Apyterewa”. 

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