“Fuzil é como sarampo”, dizia a Umm Saad, personagem do livro homônimo do escritor e ativista palestino, Ghassan Kanafani.
A Umm Saad – em árabe, “Umm” significa “mãe”, e utiliza-se como prefixo para as mães (Umm Saad é a mãe de Saad) – é uma mãe palestina, mas ela é também a própria Palestina. Em suas visitas a seu primo, o eu lírico, ele a descreve com suas mãos, seu rosto, suas rugas, sua altivez cansada. A pele seca como o solo arenoso palestino, as mãos cansadas do árduo trabalho, das batalhas pela sobrevivência. As lágrimas que brotam de cada poro de seu corpo, exceto de seus olhos. Ela é a mãe de um fedaim (فدائيين – guerrilheiro palestino), e é a mãe de todos os fedains ao mesmo tempo.
Em árabe, o nome Saad significa “boa sorte, boa fortuna”. A mãe de um guerrilheiro sente-se afortunada por seu filho estar lutando por seu país, e ainda mais orgulho ao ver seu caçula, apenas uma criança, já se transformando no irmão mais velho. Umm Saad, com suas “palmas secas como dois pedaços de pau”, “mãos duras, como a terra que cuida do talo da erva tenra”, mãos feridas que serão curadas pelo trabalho, pelo tempo, pela poeira; Umm Saad, a mãe palestina, é a mãe da Palestina e é a personificação da Palestina. Seus filhos saem do ventre materno como saem as oliveiras do ventre da terra: prontos para suportar o calor, a sede, a guerra, a fome, o trabalho.
A Umm Saad expressa seu orgulho ao seu primo pois seu filho, Saad, se juntou aos fedains nas montanhas. Os outros refugiados palestinos que vivem no campo de refugiados próximo a Beirute, no Líbano, começam aos poucos a se armar também, a carregar seus fuzis. “O fuzil é como sarampo”.
Em uma recente pesquisa feita com mais de 1200 palestinos em Gaza e na Cisjordânia Ocupada mostrou um grande apoio ao Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas. Não apenas isso, mas o apoio ao grupo cresceu em relação a setembro deste ano, antes dos ataques de 7 de outubro e da retaliação criminosa e genocida da entidade sionista. Na Cisjordânia Ocupada, apenas 12% dos palestinos apoiavam o Hamas em setembro, e hoje 44% o apoiam.
A Cisjordânia Ocupada é “governada” pela Autoridade Palestina, liderada pelo Fatah, partido que ficou mundialmente conhecido pela figura de Yasser Arafat. Historicamente o Hamas não possui grandes núcleos nem atividades na região, após ser praticamente isolado em Gaza quando venceu as eleições de 2006. Efetivamente, a Autoridade Palestina serve como um governo fantoche da entidade sionista, e utiliza suas forças policiais para reprimir o próprio povo palestino quando este se rebela. Recentemente em Ramallah, quando o povo palestino foi às ruas protestar contra o genocídio em Gaza, foi exatamente o que vimos.
A Autoridade Palestina assistiu imóvel ao crescimento cada vez maior de assentamentos, em tamanho e número, na Cisjordânia Ocupada. E enquanto a entidade sionista usava todos os meios disponíveis para marcar território e expulsar palestinos de sua terra, a Autoridade Palestina permaneceu imóvel. Neste contexto, 92% dos palestinos querem a resignação do sucessor de Yasser Arafat e presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas; e 60% pensam que a entidade deveria ser dissolvida. O fracasso da capitulação do Fatah, da Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) e de seus líderes não passou em branco nas mentes palestinas diante de tamanha agressão sionista. Sua ineficácia em ser, de fato, uma autoridade palestina para o povo palestino se tornou cada vez mais evidente com o passar dos anos.
E quando o fogo da Resistência Nacional Palestina parecia estar se apagando; quando os USA pareciam conseguir conciliar o “mundo árabe” com Israel e “pacificar” a região – tanto quanto a Polícia Militar “pacifica” as comunidades brasileiras; quando tudo parecia estar prestes a dar certo para a entidade sionista e o furor da luta de um povo nativo colonizado parecia arrefecer, então o Hamas mostra a Israel, aos USA e ao mundo todo que o “fuzil é como sarampo”. A agressão sionista desmedida é um ataque de fúria perante uma derrota militar catastrófica sofrida em 7 de outubro, e que continua se transformando em uma vitória ainda mais retumbante enquanto combatentes de calças jeans e armamentos caseiros fazem o “exército mais moral do mundo” lutar por cada escombro de uma Stalingrado palestina. Os números desinflados que a entidade sionista divulga de suas baixas não conseguem ocultar suas falhas e seu fracasso em destruir um povo que nunca se rende.
“Antigamente, na roça, diziam que a vida de um menino começa depois de ele pegar sarampo”, diz a Umm Saad ao seu primo. Duro como a terra onde pisa e forte como as oliveiras que planta, o povo palestino dá o exemplo ao mundo e inspira a compaixão e solidariedade de todos. Inspiram os iemenitas, um dos povos mais miseráveis do mundo, a também erguer-se e enfrentar os gigantes globais. “Fuzil é como sarampo”, dizia a Umm Saad, uma mãe palestina como as tantas mães de mártires e combatentes que hoje lutam. “Fuzil é como sarampo… infesta”.
Este texto expressa a opinião do autor.