O Ministério dos Transportes de Luiz Inácio (PT), administrado por Renan Filho (MDB), está planejando a construção de uma ferrovia de 495 quilômetros (km) que vai do Espírito Santo até Itaguaí, no Rio de Janeiro, passando pelo Porto do Açu – uma região no Norte Fluminense (NF) administrada por uma empresa não-estatal (“privada”) com um longo histórico de violência contra camponeses.
O plano é contratar uma empresa também privada para construir a ferrovia, batizada de Estrada de Ferro 118, ou Anel Ferroviário do Sudeste. A primeira fase da construção vai concentrar-se na construção de 170 km de trilhos entre o Porto de Ubu, em Anchieta (ES), e o do Açu, em São João da Barra (RJ), atravessando 13 municípios ao todo.
Depois, a construção vai revitalizar a Ferrovia Centro Atlântica, de Campos dos Goytacazes a Nova Iguaçu, e permitir uma conexão com os portos do Rio e de Itaguaí. Pelo menos na teoria.
A ferrovia vai beneficiar os imperialistas britânicos, franceses, belgas e principalmente chineses que administram o Porto do Açu e os campos de exploração, porque atualmente o porto está no que é chamado de “cerco logístico”: a região é rica em recursos naturais, muito explorada, mas não tem uma via efetiva de escoamento. Normalmente, o transporte é todo feito por caminhões, o que gera um caos generalizado nas cidades das redondezas.
“Na prática, esse trecho de 170 km que vão construir vai beneficiar a Vale, porque os portos são dessa empresa, não são portos para transportar mercadorias em geral ou para servir de transporte”, diz o geógrafo Marcos Pedlowski, da Universidade do Norte Fluminense (UENF), ao AND. “Fora que é uma forma de financiar as operações com dinheiro público, porque o investimento vai custar R$ 4,5 bilhões”, continua ele.
Com a ferrovia, os magnatas pretendem escoar 8 milhões de toneladas de carga por ano, dentre minérios, grãos e fertilizantes, principalmente do Porto do Açu para o Centro-Oeste, segundo estimativas da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Uma espoliação das riquezas nacionais por empresas como a AngloAmerican diretamente para a exportação.
Para Pedlowski, a ferrovia vai cumprir um plano antigo para o Porto: facilitar que os investimentos chineses entrem no empreendimento. “O Eike Batista, que ajudou a criar o Porto, sempre quis que a China entrasse no negócio. Mas os chineses nunca compraram porque aquilo é um enclave”, conta ele. “Acontece, mesmo com a ferrovia, não é o modelo chinês que está sendo implementado aqui, com trens que cortam regiões distantes em quatro horas. É um modelo colonial, uma ferrovia que vai servir para escoar os minérios para fora”.
‘Desenvolvimento regional’
Os grupos poderosos por trás do Porto do Açu e da ferrovia dizem que a obra vai servir ao desenvolvimento regional, mas esse não é o histórico dos megaempreendimentos na região. “Esse porto foi inaugurado durante a gestão dos Garotinho, primeiro com Anthony Garotinho e depois com a Rosinha Garotinho. Depois, o Sérgio Cabral continua com o projeto e o Eike Batista se junta à ideia, com a proposta de um porto industrial”, conta o geógrafo.
Segundo ele, é nessa proposta de Porto Industrial que começam as desapropriações de camponeses na região. “Entre 2009 e 2011, a gestão da Carla Machado (PT) fez uma lei para transformar 7,5 mil hectares de área agrícola em área industrial. Depois, veio um decreto de 2009 falando da desapropriação dessa área. O decreto atingiu cerca de 1,5 mil famílias camponesas de 500 propriedades rurais. E essas famílias não receberam até hoje, muitas pessoas chegaram a morrer sem receber”, conta Pedlowski. “É um esculacho completo à revelia do governo federal e estadual”.
Um artigo científico publicado na revista Sociedade e Natureza em fevereiro de 2021 mostra que 51% dos camponeses do município de Água Preta e 30% de Mato Escuro afirmam ter sofrido despejo pela Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (Codin), a serviço do Grupo EBX, administrado por Eike Batista.
Até hoje, esses camponeses são vítimas da violência policial a serviço das empresas, como mostrou uma reportagem de AND de 2023, quando policiais militares (PMs) espancaram camponeses e destruíram roças no município de São João da Barra para que o terreno pudesse ser usado na construção de linhas de transmissão de energia da empresa Gás Natural Açú (GNA).
Catástrofe socioambiental
Além da questão camponesa, há uma catástrofe ambiental que prejudica as massas populares locais. “Há toda uma área sendo erodida e que está destruindo uma comunidade”, diz Pedlowski. Essa destruição é muito bem registrada em um outro artigo científico, publicado em 2019 no Boletim do Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego.
O Porto do Açu também é conhecido pela exploração de água na região. “O porto explora 142,4 bilhões de litros de água por ano. É o oitavo empreendimento do País que mais usa água nas suas operações”, conta Pedlowski, citando uma reportagem da Agência Pública. “Eles também exploram o aquífero Emborê, e tudo a preço de banana”.
Ao mesmo tempo, os magnatas do empreendimento causaram destruição aos camponeses de São João da Barra quando dragaram areia das áreas oceânicas para construir um aterro hidráulico no município onde fica o porto. O resultado final foi a salinização de corpos de água doce usados pelos camponeses, algo que já era previsto por um Estudo de Impacto Ambiental realizado pela empresa de consultoria Ecologus.
O impacto na área foi estudado por um terceiro artigo científico sobre os danos causados pelo porto, dessa vez publicado na revista Ambiente e Sociedade em 2021. De acordo com artigo, “desde o início da salinização eclodiu um forte movimento de resistência dos agricultores em razão da ruptura causada aos seus meios de reprodução social”.
Falsa governança
Para completar o quebra-cabeça maligno, há registros de que os imperialistas que administram o porto possuem falsos empreendimentos de “governança”, destinados a maquiar uma imagem positiva para o Porto do Açu, conforme investigado na dissertação de mestrado “Sob a égide das corporações: uma análise dos projetos de governança sócio-corporativa desenvolvidos no entorno do Porto do Açu”.
A pesquisa mostrou como a Fazenda Palacete, localizada no V distrito de São João da Barra como um projeto de reassentamento social para as famílias expulsas de suas terras, carece de elementos básicos. “De acordo com a Porto do Açu, as residências são equipadas com eletrodomésticos e móveis, as propriedades são entregues preparadas para cultivo. Contudo, os lotes entregues aos moradores da Vila da Terra possuem um problema básico que é a ausência da regularização fundiária, na medida em que a área pertence a massa falida da Usina Baixa Grande. Com isso, os moradores não possuem títulos de propriedade”, diz a pesquisa.
Outro caso investigado é o da Reserva de Proteção do Patrimônio Natural Fazenda Caruara. Adquirida em 2012 pelo grupo EBX, a RPPN “Aquilo nunca foi reflorestado, já foi comprado com a vegetação que tinha. Além disso, eles fecharam a entrada da Lagoa de Iquipari, que era usada pelos pescadores locais. Então essas pessoas passaram a ser proibidas de acessar o que era seu meio de sustento”, diz Padlowski, que orientou a autora da dissertação.
Omissão
“Agora, essa ferrovia não vai beneficiar ninguém de fora do enclave. Todas as promessas de desenvolvimento e bonança do Porto para o povo nunca saíram do PowerPoint do Eike Batista. É uma ferrovia do Porto, para o Porto, pelo Porto”, defende Pedlowski. “Só que tudo, como sempre foi nesse empreendimento, com dinheiro público. Ainda dizem que é o maior porto privado do Brasil”, ironiza ele. “O que nós nos perguntamos vendo isso é quantas pessoas serão despejadas pela obra da ferrovia”.
O conjunto de questões levantadas há anos pelos camponeses pobres, pescadores e pesquisadores é ignorado pelo governo de Luiz Inácio. Além de planejar a ferrovia, Luiz Inácio inseriu uma obra de expansão da usina de gás UTE GNA II no Novo Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC).
O projeto também é defendido pelos governos estadual e municipal do estado e cidade do Rio de Janeiro. O governador Claudio Castro (PL) fez da ferrovia um tema prioritário em uma reunião com Luiz Inácio em Brasília logo no início do mandato do petista. Já o prefeito Eduardo Paes (PSD) publicou um vídeo no dia 31 de janeiro de 2025 no qual defendia a ampliação da ferrovia.