O grupo de resistência libanês Hezbollah lançou, no dia 16 de julho, um vídeo sobre uma base militar subterrânea com capacidades impressionantes: na filmagem, combatentes circulam, a pé, em motos e caminhões abastecidos com foguetes, pelos túneis cuidadosamente escavados. Em câmaras amplas, combatentes planejam operações militares cotidianas, enquanto outros dirigem vários caminhões até portões que, quando abertos, permitem disparos de mísseis diretamente contra o território israelense.
Em outros locais da mesma base, soldados trabalham e são atendidos em um hospital de campanha e abastecem suprimentos que permitem a sobrevivência durante um ano embaixo da terra, segundo informações do jornal Al-Mayadeen. Tudo ocorre em segredo. Equipamentos de alta tecnologia garantem criptografia absoluta das informações, transmitidas em uma combinação de rapidez e clandestinidade.
O vídeo demonstra um desenvolvimento notável da guerra de túneis pelos povos oprimidos, particularmente os povos árabes, cerca de 50 anos depois de experiências como a Guerra do Vietnã (1955-1975), conflito que foi um dos responsáveis por tornar essa tática guerrilheira famosa pelo mundo.
Iniciada depois da saída dos franceses e chegada dos norte-americanos (ianques) no país, a Guerra do Vietnã foi um caso emblemático de vitória de forças revolucionárias apoiadas pelo povo contra um Exército inicialmente mais forte e preparado.
Foi um conflito em que os mais débeis empregaram técnicas da guerra de guerrilhas, dentre elas a guerra de túneis, para contornar as condições adversas. As zonas guerrilheiras do Vietnã eram tomadas por redes de caminhos subterrâneos como a dos túneis Cu Chi, que tinha cerca de 250 quilômetros (km) de passagens interconectadas e intercaladas por pequenas câmaras usadas como salas de aula e ambulatórios e entradas e saídas espalhadas pela floresta tropical.
Dessa forma, os túneis serviam ao mesmo tempo para operações militares e para aprofundar o trabalho das forças revolucionárias com o povo, uma vez que as massas também se abrigavam dos bombardeios no subsolo e recebiam tratamento médico e aulas junto aos soldados.
O emprego dessa tática no Vietnã, por sua vez, também foi inspirada em outras experiências, particularmente na Guerra de Resistência Antijaponesa do povo chinês (1937-1945). Durante esse conflito, o Exército Vermelho, dirigido pelo Partido Comunista da China (PCCh) sob a chefatura do Presidente Mao Tsetung, construiu, em um raio de aproximadamente 250 km ao redor de Pequim, diferentes redes de túneis para resistir à ofensiva imperialista do Japão.
Os túneis eram rudimentares, com cerca de 1 a 1,5 metro (m) de altura e 70 a 80 centímetros (cm) de largura, mas muito efetivos: dentro deles funcionavam postos de comando, armazéns, cantinas e banheiros. Toda a rede era protegida com armaduras e portas especiais que bloqueavam a entrada de água e gases tóxicos. As entradas de acesso eram muito bem camufladas em todo o tipo de estrutura: fogueiras, pilhas de feno e poços podiam esconder, em algum ponto, pequenas portinholas para os quarteis subterrâneos.
O filme Guerra de Túneis (1965) retrata as diferentes artimanhas inventadas pelas massas nos túneis, como um sistema que captava a água enviada pelos japoneses nas tentativas de inundação e as redirecionava para os vilarejos, de forma a reutilizá-las nas operações básicas do dia a dia.
Da China à Palestina
Especialistas apontam que há uma relação de influência entre as táticas usadas na Ásia e as empregadas pelos povos árabes. “Os túneis são usados há milhares de anos, mas os vietnamitas e os chineses os usaram de forma especialmente exitosa. Há várias referências diretas a essas experiências nos materiais do Fatah e FPLP. A influência geral do contexto da época, em que havia um campo socialista, as conexões diretas e o reconhecimento desta inspiração constatam esse diálogo direto e indireto entre os diferentes cenários”, defende o pesquisador Alberto García Molinero, da Universidade de Granada.
Ele explica que essa inspiração deu um salto nos anos de 1960, quando os palestinos passaram a aplicar técnicas de guerrilha na luta armada antissionista depois das derrotas de exércitos convencionais árabes contra Israel. Os resultados foram quase imediatos: centenas de militares israelenses passaram a ser mortos em meses ou semanas em ações dirigidas pela Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e o Fatah.
Ver a vitória dos chineses e vietnamitas, nesse sentido, foi um exemplo para as organizações palestinas, que passaram a estudar as teorias militares aplicadas naquelas partes da Ásia para replicar, de forma criadora, em seus próprios países.
“O êxito da estratégia da luta guerrilheira estava muito inspirado na China e Vietnã. Ambos os países asiáticos eram uma grande inspiração global para os revolucionários do mundo, muito mais que a União Soviética. Isso se deve a vários fatores, entre eles a essência do maoísmo”, complementa Molinero. “Tanto Mao com sua concepção de Guerra Popular quanto os vietnamitas demonstraram que era possível derrotar um inimigo infinitamente superior, como o imperialismo, desde que se mobilize o povo para a causa”.
Os túneis começaram a ser construídos em Gaza ao redor da década de 1980. “As construções começaram depois que o Egito e Israel terminaram o acordo de divisão de Rafah entre a Rafah egípcia e a palestina, o que levou à separação de muitas famílias palestinas. Depois, com o aumento do cerco israelense contra Gaza, os túneis começaram a crescer, inicialmente mais por razões econômicas, de comércio, do que militares”, explica o jornalista estadunidense-palestino, Dr. Ramzy Baroud, Editor do portal Palestine Chronicle e Conselheiro Editorial de AND.
Os palestinos começaram a usar os túneis de forma militar em torno de 2006. Uma operação emblemática dessa época foi quando combatentes das Brigadas Al-Qassam, dos Comitês de Resistência Popular e do Exército do Islã atravessaram, por túneis, a fronteira israelense até a cidade Keret Shalom e atacaram um posto de comando israelense. Dois soldados israelenses foram mortos e um deles, Gilad Shalit, foi capturado. Shalit ficou cinco anos preso na Faixa de Gaza, até que foi trocado por mil prisioneiros palestinos em 2011.
“A captura de Shalit foi um dos mais exitosos usos militares dos túneis palestinos no início desse processo. Foi o momento em que a semente do uso de túneis foi plantada no panorama palestino de resistência. Depois desse episódio, as guerras de 2008-09 e 2012 foram novos pontos de viragem no uso dos túneis para funções principalmente militares”, defende Baroud.
Túneis libaneses e cavernas iemenitas
Além dos palestinos, outros povos árabes lançaram-se na escavação de túneis para derrotar forças inimigas. A guerra de 2006 entre o Hezbollah e Israel no Líbano, encerrada com a vitória da resistência libanesa, teve seu curso determinado em grande parte por conta dos túneis, usados para armazenar armas, produzir e guardar mísseis, sediar bases de comando e, claro, servir de meio de locomoção de tropas.
A construção dos túneis pelo Hezbollah começou aproximadamente em 2000, quando Israel recuou da ocupação que mantinha no Líbano desde 1985. Os combatentes do Hezbollah, sabendo da possibilidade de uma nova ocupação, iniciaram as construções de forma preventiva, como revela o relatório Ambiente Subterrâneo: Túneis para a vitória, a Guerra do Líbano de 2006. A estratégia se mostrou acertada quando, de fato, os sionistas voltaram a invadir o país na nova guerra.
Já no Iêmen, o movimento Ansar Allah (por vezes chamado de Houthi) também tem aprimorado suas técnicas subterrâneas. O grupo usa cavernas como bases desde os primórdios de sua atuação, em 1994, quando ainda lutava contra o governo reacionário de Ali Abdullah Saleh, deposto em 2011, mas passou a desenvolver ainda mais a tática em 2014, ano em que o Iêmen foi invadido pela Arábia Saudita em uma guerra coordenada com o Estados Unidos para tentar frear o avanço Ansar Allah.
Após esse desenvolvimento, os anti-imperialistas iemenitas ampliaram a construção de túneis, com o uso de cavernas já mapeadas por antigas células do Ansar Allah ou mesmo do ex-governo e escavação de novos túneis. Em anos recentes, imagens de satélite registraram novas construções desse tipo em al-Hafa, al-Dabr e na capital Sana’a.
Atualidade da guerra de guerrilhas
Hoje em dia, não há quem negue que os túneis cumprem um papel fundamental na guerra anti-imperialista travada pelas diferentes organizações árabes.
A proporção que essas estruturas atingiram é impressionante: em 2016, o antigo chefe do Birô Político do Hamas, Ismail Haniyeh (assassinado por Israel em julho de 2024), garantiu que a rede de túneis em Gaza tem o dobro do tamanho dos túneis Cu Chi. Estimativas de janeiro deste ano calculam que a rede pode ter entre 563 a 724 m de extensão (cerca de duas vezes o comprimento da Faixa de Gaza) e de 50 a 70 m de profundidade.
Enquanto algumas partes dos túneis palestinos podem lembrar as versões chinesas e vietcongues na sua estreiteza, outras partes do “Metrô de Gaza” são embolsadas com cimento e, em determinadas partes, amplas o suficiente para o deslocamento de combatentes totalmente em pé ou mesmo em camionetes. “Há diferentes tipos de túneis em Gaza. Os mais comuns são usados para defesa, ataques e armazenamento. Mas há alguns que são usados como centros de comando, e que oscilam entre a natureza defensiva e ofensiva”, explica Baroud.
A profundidade dos túneis escavados garante uma forte segurança às forças da resistência. Analistas como o professor Zoran Kusovac defendem que armas como bombas de ferro comuns, bombas aceleradas por foguete, ogivas tandem e bombas especiais do tipo bunker buster são todas ineficazes para destruir os túneis do Hamas.
As bombas de ferro penetram até, no máximo, 3 m de profundidade, mal arranhando a superfície dos túneis do Hamas. Bombas aceleradas por foguetes funcionam bem em terreno abertos, e não em áreas tomadas por prédios, construções e escombros como a Faixa de Gaza, empecilho que também impede o uso das ogivas tandem. As bunker buster, por outro lado (usadas para assassinar destruir bunkers na guerra de agressão ao Iraque) poderiam funcionar melhor, mas Israel não tem o nível de conhecimento necessário sobre a localização dos túneis do Hamas para utilizá-la.
Essas estruturas, conhecidas há décadas, se provaram como fundamentais na guerra de guerrilhas travada pela Resistência Nacional Palestina desde o 7 de outubro. Mesmo antes da invasão terrestre em Gaza por Israel, os túneis serviram como elemento de dissuasão para Israel, uma vez que a cúpula militar sionista sabia que sofreria dificuldades no terreno inimigo.
O Ansar Allah também tem ostentado suas bases ocultas nos últimos anos. Depois da divulgação de fotos dos túneis por satélite, o vice-secretário de Informação dos Ansar Allah afirmou que “o que foi apresentado é insignificante diante da infraestrutura que possuímos, porque são apenas pequenos túneis para indivíduos”. O Hezbollah, por sua vez, usa os vídeos de seus túneis como elemento de dissuasão na guerra, revelador por si só da capacidade das estruturas.
Mais de oitenta anos depois que os comunistas chineses lançaram-se à construção de túneis para resistir à invasão japonesa de seu país, essa tática da guerra do povo, derivada de uma teoria militar mais ampla, segue atual e em desenvolvimento, resultado das novas aplicações dessa tática em diferentes situações concretas.
E a luta revolucionária palestina, particularmente depois do Dilúvio de Al-Aqsa, escancarou ao mundo, mais do que qualquer outra experiência revolucionária no século XXI até hoje, a incrível atualidade da luta armada e da doutrina militar desenvolvida na China e aplicada, mesmo que parcialmente, pelos povos árabes.