Nota da Redação: O jornal A Nova Democracia noticiou recentemente neste portal o protesto das “Guerreiras do Rio” na Central do Brasil. Publicamos a seguir matéria que trata mais a fundo da luta dessas mulheres do povo nas batalhas pelos direitos seus, de seus familiares e contra as mazelas do sistema penitenciário brasileiro.
“Guerreiras do Rio” protestam contra o descaso do Velho Estado com as penitenciárias
Não há meios de pensar o sistema penitenciário brasileiro sem considerar as pessoas que lá frequentam na condição de visitantes. Condição exercida em sua imensa maioria por mulheres, que enfrentam situações das mais adversas para suprirem os presos de condições mínimas de sobrevivência, responsabilidade que o velho Estado não cumpre.
Com capacidade para 27 mil detentos, o sistema penitenciário fluminense abriga cerca de 51 mil, 23 mil a mais que o limite suportado¹ . Segundo a mesma fonte, consta que há aproximadamente 80 mil pessoas cadastradas como visitantes oriundas de 92 municípios, apesar dos presídios estarem distribuídos entre apenas 10. No Rio de Janeiro, muitas dessas mulheres se auto intitulam “Guerreiras do Rio” e constroem a cada dia uma rede de solidariedade, troca de informações e denúncias relacionadas aos presídios que visitam.
Com a crise cada vez mais aguda enfrentada no Rio de Janeiro, é de se esperar que a situação dos presídios, verdadeiros campos de concentração legalmente instituídos, que aprisionam principalmente pessoas pobres e negras, esteja beirando a barbárie. Devido a sucessivas mortes de presidiários causadas por falta de atendimento médico e insalubridade das próprias instalações das celas, parte das Guerreiras têm se organizado para protestar e exigir melhorias no sistema penitenciário como um todo.
O estopim para que elas realizassem uma manifestação no centro da cidade no mês passado foi a morte de Weverton do Nascimento Souza por falta de atendimento médico adequado, na Cadeia Pública Cotrim Neto, em Japeri. Tal presídio é conhecido por ser um dos mais precários no Estado, e também sofre com superlotação, instalações precárias, falta de fornecimento de água potável contínua e banho de sol diário, entre outros, sendo observado, inclusive, ocorrência de sarnas e infestações de percevejos no local.
População carcerária sofre com infestações de diversos tipos de insetos e falta de tratamento médico
Detentos exibem marcas de picadas de insetos que os afligem dia e noite, de percevejos à mosquitos.
Segundo a Defensoria Pública² “A direção da unidade prisional informou que a capacidade total do estabelecimento é de 750 vagas, no entanto, havia 1650 internos na unidade” em julho de 2015 e conclui que essa lotação “configura um percentual de 220 por cento em relação a sua capacidade”. Sobre o péssimo estado de conservação das celas, encontrou- se inúmeras marcas de sangue nas paredes em decorrência da presença dos percevejos-de-cama. Há também imagens chocantes dos detentos apresentando reações dermatológicas devido às picadas e dos banheiros, que possuem apenas duas latrinas para cerca de 150 presos que cada cela abriga.
‘Guerreiras do Rio’ exigem justiça
Muitas mulheres, durante os depoimentos, preferem ocultar seus nomes com medo de represálias contra seus familiares ou elas próprias. A mãe de Weverton, Sabrina do Nascimento Menezes, estava presente na manifestação e relatou a respeito da precariedade do sistema público de saúde nos presídios e lentidão na burocracia para se conseguir uma consulta através da VEP (Vara de Execuções Penais). O seu filho, mesmo após apresentar quadro de saúde piorado, chegou a ir para UPA de Bangu, mas o médico de plantão alegou que não o atenderia porque havia muitos detentos na fila:
“O meu filho há mais de 20 dias estava debilitado, sendo cuidado por amigos detentos, ao ponto de receber alimento via oral por amigos. Banho foi (sic) os amigos que deram, fizeram soro com água podre que (sic) a água é contaminada naquele lugar. Precisava até que alguém fosse lá fazer uma análise naquela água que eles bebem como se fossem porcos. Além da comida ser podre, estragada. “
Sabrina alega que apesar de Weverton nunca mais voltar, ela luta pelos que ainda estão encarcerados e suas famílias. A respeito das causas da morte de seu filho, ela conta que o laudo médico aponta para enfisema pulmonar, isquemia cardíaca e infecção do fígado em decorrência de uma hepatite.
A “Guerreira” Camila, de 22 anos, relata que já viu de tudo no sistema penitenciário. Ela visita o presídio João Carlos, em Japeri, seu marido que está com sarna e pneumonia: “Primeiro, o pior é a corrupção dentro dos presídios, porque você com dinheiro consegue tudo e quem é pobre não consegue nada (…). Essa é a pior parte, quem tem dinheiro na cadeia tem tudo, e quem não tem, não tem nada. A alimentação deles vem estragada, não tem um legume, não tem uma verdura, e tem um comércio lá dentro, uma coisa que não deveria ter, porque a gente já paga tanto imposto, o mínimo era uma alimentação. Não tem”.(sic)
Para tentar resolver os problemas de saúde enfrentados pelo seu familiar, visto que não há médicos o suficiente na unidade, Camila teve que pagar por fora para conseguir uma receita que a permitisse comprar alguns remédios. Ela denuncia que não são todos os tipos de medicamentos que são aceitos na custódia e muitos que ela já tentou mandar por SEDEX nunca chegaram ao seu destino. Além do seu marido que está doente, Camila já perdeu dois primos que estavam sob responsabilidade do Estado: um devido à tuberculose (doença infectocontagiosa séria que se alastra cada vez mais entre os presídios e chegam a contaminar também as visitantes) e outro eletrocutado quando foi tomar banho, por conta de fios desencapados no local, fato que comprova a precariedade das instalações.
Cadeia Pública Cotrim Neto, Japeri – RJ / Estado em que se encontram os banheiros das celas
A visitante Bianca, de 21 anos, relata que o presídio mais precário que frequentou foi o Ary Franco, no Méier. Ela conta que:“Eu passei por situações lá bastante difíceis, porque a gente que é visitante tem que dormir de um dia pro outro. Tipo assim: se você visita numa quinta-feira, você tem que chegar lá quarta-feira, umas cinco horas, pra poder colocar o seu nome na lista e tem que dormir lá. Você não pode sair porque se não perde o lugar na fila. E lá também é um lugar muito precário porque é subterrâneo. Lá dentro tem encanação quebrada, eles convivem com baratas, rato (…)”.
Bianca focou seu relato na condição dos familiares que visitam, e disse que é proibido entrar com comida para obriga-los a gastar dinheiro na cantina e que as visitas ocorrem de nove da manhã ao meio dia. Porém, por causa da demora em conseguir entrar, devido ao tamanho das filas e as revistas obrigatórias, esse tempo é reduzido significativamente.
Sobre essa questão, ela conta que já passou por humilhações ainda na época em que revistas vexatórias eram legais, fatos que ocorriam com frequência. Fazia parte do procedimento sentar em um banquinho onde as agentes passavam um detector de metal pelo corpo da revistada. Certa vez, apesar do detector de metal não ter apitado, uma inspetora pediu para que ela virasse a calcinha para um lado e para o outro várias vezes, revirasse o sutiã e batesse os cabelos. Por conta disso ela conseguiu entrar no pátio de visitas quando já era mais de onze horas, sendo obrigada a sair meio dia, como era determinado pela direção.
Falácia da ‘ressocialização’
Há muito que se debater e lutar ainda, não apenas no que diz respeito às visitantes, mas ao sistema prisional como um todo e seu caráter de classe. Mas, detendo-se primeiramente à questão dos familiares, fica evidente que os mesmos também passam por uma espécie de aprisionamento e são submetidos às mais diversas humilhações e privações quando entram em contato com o cotidiano carcerário do velho Estado. Fica evidente, também, que a “ressocialização” prometida pelo sistema penal não passa de mais uma falácia inventada pelo legislativo em conluio com os demais podres poderes, tanto em relação à massa carcerária comum como a seus visitantes. Políticos e grandes empresários, presos ou processados em operações recentes, seguem com seus privilégios, como prova o caso do ex-governador Sérgio Cabral/PMDB.
Reproduzo, para finalizar, um texto divulgado nas redes sociais escrito por uma guerreira que preferiu não se identificar.
DIÁRIO DE UMA GUERREIRA:
— Um dia antes da visita a gente vai no mercado, compra as coisas que eles gostam, faz comida com maior carinho e capricho, arruma tudo na vasilha e coloca na sacola. Acorda na madruga, o dia nem amanheceu ainda. Mas a gente levanta cheia de sono porque dormiu pouco, quando consegue dormir, ansiosa pra ver nosso amor. Arrumamos as coisas na sacola e vamos ao encontro. Chegando lá, enfrentamos a fila longa e a revista demorada. Cansa né? Mas nada melhor que ver o sorriso no rosto do nosso guerreiro, quando vê a gente sentada esperando ele. Deu 12:00, vamos almoçar? Vamos sim. Bom é ver ele comendo com satisfação nossa comida feita com carinho e comendo com vontade porque tá cheio daquela comida horrível. A conversa nunca tem fim, você abraça, beija, conversa novamente e quando dá 15:00, contagem regressiva. Às 16:00 o coração dispara, é hora de ir embora. Você abraça forte sem querer largar, dá um beijo, e diz te amo, fica com Deus! É um dos momentos mais tristes, você com o coração chorando ter que ir embora e deixar ele lá , cheia de saudades, ansiosa, esperando a próxima visita!
“#QUEMINVENTOUASGRADESNUNCACONHECEUADORDASAUDADE“.
Notas:
¹ Estudo publicado na internet por Ana Paula Pellegrino, do Instituto Igarapé. https://public.tableau.com/profile/ana.paula.pellegrino#!/vizhome/SistemaPenitencirioFluminense-InstitutoIgarap/AnliseSistemaPenitencirioFluminense
² Relatório de visita publicado no dia 1 de julho de 2015: http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/e3815df457fd45a2bf482ef8215e58b1.pdf