Barricadas foram erguidas pelas massas em rebelião. Foto: AP
As forças de repressão do Haiti abriram fogo contra milhares de manifestantes que, em protesto, exigiam a renúncia do Primeiro-Ministro, Ariel Henry, e uma solução para a profunda crise no país, especialmente a carestia geral e os altos custos de vida. Os protestos ocorreram no dia 22 de agosto nas cidades de Port-au-Prince, capital do país, Cap-Haitien, Petit-Goave, Grand-Goâve e nas cidades e distritos camponeses de Petion-ville, Delmas, Jacmel, Cabaret e Les Cayes. Dois manifestantes foram assassinados e cinco ficaram feridos pelos disparos da polícia.
Milhares de massas protestaram em diversas cidades contra a fome, a inflação e a miséria. Foto: Captura de tela/People’s Dispatch
Em Port-au-Prince, os manifestantes levantaram barricadas com pneus em chamas para bloquear uma rua da cidade. As massas em fúria caminharam até a casa do primeiro-ministro, onde exigiram sua renúncia brandindo panelas e pratos de comida vazios. A polícia reprimiu o protesto com o uso de bombas de gás lacrimogêneo. Em Jacmel, o povo haitiano demonstrou revolta contra a fome, com gritos de ordem como Estamos morrendo de fome! Estamos marchando à noite!. Em Grand-Goâve, os manifestantes denunciaram os altos custos das instituições de ensino privadas, como as escolas congregacionais, que cobram valores exorbitantes pela educação. Eles denunciaram que as aulas retornarão no dia 05/09, mas os diretores aumentaram a mensalidade e agora eles não conseguem mais pagar. Em Cap-Haitien, os manifestantes denunciaram a atuação dos bancos e ameaçaram incendiá-los. Ariel, não brincamos quando estamos com fome!, entoaram as massas, em repúdio ao primeiro-ministro reacionário.
Massas tomam rua de Port-au-Prince. Foto: Captura de tela/People’s Dispatch
As forças de repressão, em sua função de guardiãs do velho Estado haitiano, desencadearam brutal e covarde repressão contra as massas populares. Em Port-au-Prince, os policiais dispararam com armas de fogo para o céu e contra os manifestantes, deixando um jovem morto. Em Jacmel, no sudeste do Haiti, cinco pessoas foram alvejadas pela polícia. Dois manifestantes foram assassinados em Delmas pelas forças de repressão do país.
Polícia haitiana dispara bombas de gás contra manifestantes. Foto: Captura de tela/People`s Dispatch
Os manifestantes afirmaram que, caso medidas não sejam tomadas até o dia 26/08, novos protestos ocorrerão, dessa vez com ações contra lojas, bancos e estabelecimentos comerciais.
Semicolonialidade e semifeudalidade sufocam povo haitiano
Imperialismo ianque saqueia riquezas da Nação haitiana. Foto: Charge Latuff
O povo haitiano está sendo esmagado por uma crise brutal que assola o país. A fome no país já atinge em torno de 4,5 milhões de pessoas, isto é, em torno de 45% da população do país. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas estão em situação de pobreza, principalmente no campo. A inflação no país está em torno de 29%, a mais alta em dez anos.
A situação semicolonial do país, que depende da importação de muitos produtos industrializados, agrava ainda mais a crise, aumentando as taxas de inflação conforme o preço do dólar e da importação aumenta. Em 2020, o produto mais importado pelo país foi o arroz. As importações vieram em sua grande maioria (83,8%) do Estados Unidos (USA) e totalizaram um valor de 292 milhões de dólares (R$ 1,4 bilhão).
Já a economia interna do país é majoritariamente voltada para exportação. Como um país de capitalismo burocrático, impera no país a subjugação do povo pelos grandes burgueses e latifundiários, que impoẽ aos camponeses relações pré-capitalistas de produção, base a dominação semicolonial. A indústria haitiana é dominada pela manufatura e produtos semi-industriais do ramo têxtil, destinados à exportação. Em 2020, esses produtos foram responsáveis por em torno de 80% das exportações do país, 83% delas destinadas ao USA. Sendo um país predominantemente agrário, 2/3 da mão de obra haitiana e 1/4 do Produto Interno Bruto (PIB) do país provêm da agricultura, destinada à exportação. A economia agrária haitiana é baseada principalmente na economia camponesa, permanentemente arruinada. Devido à condição semicolonial haitiana, os camponeses são explorados por empresas imperialistas do agronegócio, principalmente ianque, que avançam sobre o campo haitiano e submetem os camponeses a relações semifeudais de produção. Essas empresas, junto à United States Agency for International Development (Usaid), atuam por meio de projetos “beneficentes” que logo se tornam em contratos que amarram os camponeses à sucessivas dívidas com as corporações.
Foi o caso do projeto Winner, realizado pela Usaid e pela empresa imperialista ianque Monsanto após o terremoto de 2010 no país. A empresa, que estava com baixa nos lucros em 2010 e precisava aumentar seus mercados, forneceu ao velho Estado haitiano. sementes híbridas de milho. Essas sementes foram, então, vendidas aos camponeses haitianos com a promessa de “maior produtividade”. As sementes, contudo, para conseguir alcançar os padrões de produtividade prometidos, devem ser tratadas com pesticidas e fertilizantes produzidos pela própria Monsanto. Ademais, as sementes só são adequadas para um único plantio. As sementes extraídas dos milhos que nasceram do primeiro plantio não servem para uma nova plantação. Assim, para uma segunda temporada, os camponeses precisam comprar novas sementes da empresa imperialista ianque. Em 2010, uma marcha que reuniu cerca de dez mil camponeses protestou contra as ações da Monsanto no país.
Tarefa pendente da revolução haitiana deve ser cumprida
Primeira tentativa de revolução democrática no Haiti ocorreu 231 anos antes da manifestação do dia 22. Foto: Pintura de Ulrick Jean Pierre
A manifestação do dia 22/08 ocorreu 231 anos após de, no dia 22 de agosto de 1791, os escravos e alforriados do Haiti, sob a liderança de Toussaint-Louverture e Jean-Jacques Dessantines, empreenderem a primeira tentativa de uma revolução democrática no país. Em torno de 100 milhaitianos escravizados e ex-escravizados participaram da revolta, que destruiu engenhos de açúcar, tomou a terra dos latifundiários e aniquilou os senhores escravocratas na justiça popular. Em 1792, a rebelião popular havia colocado 1/ 3 do país sob seu domínio.
Nos anos seguintes, Toussaint-Louverture, em aliança com os jacobinos franceses, que haviam concordado em abolir a escravidão nas colônias, expulsou dois dos mais poderosos exércitos da Europa da ilha: o espanhol e o inglês. A escravidão foi abolida no país e, em 1801, a primeira constituição do novo regime foi declarada. Nesse período, na França, Napoleão Bonaparte já havia afogado em sangue a revolução jacobina e restaurado o poder monárquico no país europeu. Em fúria contra a revolução haitiana, o reacionário Bonaparte ordenou, em fevereiro de 1802, uma invasão à ilha. Os franceses enfrentaram dura resistência dos haitianos. “O solo banhado com o nosso suor não deve fornecer aos nossos inimigos o menor sustento. Rasgar as estradas com tiros; atirar cadáveres e cavalos em todas as fundações, queimar e aniquilar tudo para que aqueles que vieram para nos reduzir à escravatura possam ter diante dos seus olhos a imagem do inferno que merecem”, declarou Toussaint-Louverture.
Plantações foram queimadas e latifundiários foram justiçados na revolução haitiana. Foto: Universal History Archive
Em abril de 1802, Henri-Christophe, um importante comandante haitiano, traiu seu povo e somou-se às forças do exército francês. No mesmo mês, Toussaint-Louverture foi capturado pelos seus algozes. Sob falsas promessas de que os haitianos não seriam mais escravizados, Toussaint-Louverture concordou, também, em se juntar às forças francesas, levando consigo seus homens. Dessalines, por sua vez, também se rendeu aos franceses. A resistência armada ficou restrita ao campo do Haiti, onde combatentes camponeses da revolução democrática ainda desatavam guerras de guerrilhas. Esses combatentes foram, pouco a pouco, massacrados pelo colonial exército francês de Bonaparte.
Em meados de 1802, quando Bonaparte deixou claro que suas promessas de abolição da escravidão eram falsas, a revolta recomeçou. Milhares de camponeses somaram-se novamente às fileiras da luta armada, enquanto Napoleão mobilizou suas próprias tropas reacionárias para combater o povo haitiano. Soldados poloneses foram levados ao Haiti por Bonaparte, sob a justificativa de que iriam combater uma rebelião de presos. Ao se depararem com a guerra anti-colonial do povo haitiano, os poloneses, que travavam sua própria guerra contra forças coloniais (Rússia, Prússia e Áustria) em seu país de origem, uniram-se às fileiras haitianas.
Em outubro, Dessalines retornou às fileiras da revolução. Contra as forças nativas da revolução haitiana, os soldados poloneses e a febre amarela que os assolava, os franceses foram derrotados de maneira avassaladora em novembro de 1803, na Batalha de Vertières. No dia 30 de novembro, o comandante do exército francês, Donatien-Marie-Joseph, abandonou o país junto de 8 mil soldados. Em janeiro de 1804, Dessalines declarou a independência da ilha e renomeou-a Haiti, nome proveniente da língua indígena Arawak.
Batalha de Vertières expulsou franceses do Haiti. Foto: Pintura de Ulrick Jean Pierre
Apesar de sua independência formal, o Haiti continuou subjugado pela França economicamente. O país europeu impôs à ilha uma dívida pela independência, que comprometeu 2/3 da produção do país até o início do século XX. Durante esse período, a situação semicolonial do Haiti agravara-se: além da dívida com o imperialismo francês, a ilha havia contraído dívidas com o imperialismo germânico e ianque.
No início do século XX, a semicolônia insular passou por um grande período de instabilidade. Conflitos entre diferentes milícias civis levavam a golpes e assassinatos de presidentes. Aproveitando-se da instabilidade política no país, o imperialismo ianque iniciou, no ano de 1915, uma intervenção no país, isolando o imperialismo germânico e garantindo uma ocupação colonial na ilha. O Banco Nacional do Haiti teve 500 mil dólares confiscados pela Marinha ianque e foi colocado sob controle do USA. A ocupação subjugou completamente a economia do país ao imperialismo ianque e levou ao genocídio de milhares de haitianos que se opunham à ocupação. No ano de 1934, sob o regime presidencial do lacaio ianque Sténio Vincent, as tropas ianques saíram do país. O USA manteve controle fiscal direto no país até o ano de 1941, e a dominação econômica semicolonial segue até hoje.
Entre os anos de 1957 e 1986, o Haiti passou por um regime militar conduzido por François Duvalier (1957-1971) e seu filho, Jean-Claude Duvalier (1971-1986). O regime, apoiado pelo imperialismo ianque, foi responsável pela criação dos esquadrões da morte (conhecidos por tontons macoutes) e pelo aprofundamento da dominação semicolonial ianque no país, com privatização das empresas e subjugação da economia agrária. Foi nesse período que a produção de arroz do país foi completamente arruinada pelo imperialismo. Na época, 90% do arroz consumido no Haiti era produzido pelos camponeses do país. O USA passou a abolir as taxações de importação de arroz e a criar subsídios para as suas próprias plantações de arroz no país semicolonial. Hoje, o arroz é o produto mais importado pelo Haiti.
O regime de Papa Doc e Baby Doc (como eram conhecidos, respectivamente, o pai e filho Duvalier) terminou em 1986, em meio à uma brutal crise no país e à fuga de Baby Doc, que saiu do Haiti levando consigo milhões de dólares depositados em bancos suíços. O que se sucedeu no país foi uma sequência de golpes militares apoiados pelo imperialismo ianque, como os governos de Henri Namphy, e regimes presidenciais civis de lacaios do imperialismo ianque. Soma-se à esses regimes militares e civis lacaios a ocupação militar ianque no país entre os anos de 2004 e 2017, pelo organismo imperialista Organização das Nações Unidas (ONU). Nessa ocupação, chamada infamemente de “Missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti”, os militares de diversas nações, comandados por militares brasileiros subservientes ao imperialismo ianque, realizaram verdadeiros atos de terrorismo de Estado contra o povo haitiano, como o Massacre em Cité Soleil, favela da cidade Port-au-Prince. A ocupação foi cabalmente rechaçada pelo povo haitiano, que se levantou diversas vezes em protesto pela saída das tropas imperialistas.
Nessa semana, mais uma vez, o povo haitiano se levanta. Dessa vez, contra a inflação, a fome, a miséria, a privatização da educação e o infame papel dos bancos. Em última instância, contra as mazelas decorrentes das três montanhas que esmagam o povo haitiano: o imperialismo, o latifúndio e o capitalismo burocrático. Mazelas essas que só podem ser resolvidas com o cumprimento da tarefa pendente iniciada há 231 anos, com a primeira tentativa de uma revolução democrática no país. Agora, sob forma de uma revolução agrária, democrática e anti-imperialista, que estabeleça no país uma Nova Democracia e que siga de maneira ininterrupta ao socialismo.