Santos Dumont e Landell de Moura (ver Parte 1) não são casos únicos de inventividade brasileira que mereceria destaque mundial. Muitos outros nomes podem ser citados, como se verá a seguir.
Mas o silêncio frente aos talentos científicos e tecnológicos do país não é fortuito ou fruto de “azar”. Tem relação direta com o sistema imperialista (USA e União Europeia), baseado na exploração de povos oprimidos na busca do lucro máximo.
Isso envolve também diferentes tipos de guerra/ataque aos países-colônias e semicolônias, como o Brasil, para sufocar competidores, mantê-los em situação de atraso e sugar mais facilmente suas riquezas. Portanto não é à toa que o fascismo do bolsonarismo americanófilo e pró-imperialismo fez crescer no Brasil uma onda contra a Ciência.
Importante lembrar que o regime militar decorrente de um golpe de Estado, em 1964, também agiu contra a fama dos grandes cérebros científicos do país.
‘Roubam’ Nobel do gênio atômico
O prêmio Nobel de Física de 1950 foi dado ao britânico Cecil Powell por desenvolver um método fotográfico que permitiu as descobertas sobre os mésons, partículas atômicas. Porém ocorre que o descobrimento do método (o mais eficiente entre eles)não foi do professor inglês e sim do cientista brasileiro César Lattes, que aliás recebeu 7 indicações para o Nobel e nunca ganhou nenhum.
A honraria foi “roubada” do brasileiro com uma justificativa burocrática afrontosa: a de que Lattes, embora tenha sido o autor do método fotográfico mais eficaz que outros anteriores, fazia parte de uma equipe da universidade de Bristol (Inglaterra), a qual teve como representante escolhido à premiação o seu professor-chefe, Cacil Frank Powell.
Cascata com bilhões de partículas
Em 11 de julho passado AND publicou uma reportagem de Frank Calafate lembrando que Cesar Lattes completaria 100 anos naquela data.
A seguir, um resumo adaptado do texto (em formato itálico).
A Física é a ciência que estuda as leis do Universo, as interações da matéria e energia e as formas como essas se manifestam. Portanto, não é exagerado dizer que a Física está em tudo.
Uma de suas áreas é chamada de Física de Altas Energias, dentro da qual são estudados os chamados raios cósmicos que são partículas dotadas de muita energia que atingem a Terra advindas de todas as partes do Universo.
Quando essas partículas penetram na atmosfera e se chocam com os núcleos atômicos dos gases produzem uma cascata com bilhões de partículas e radiação que podem chegar ao solo.Esse fenômeno aguçou a curiosidade de vários cientistas que, a partir da década de 1930, tinham por objetivo descobrir a origem dos raios cósmicos e utilizar a energia que eles carregavam para descobrir do que a matéria era formada.
O curitibano sobe os Pirineus
Um dos cientistas que se dedicou ao estudo dos raios cósmicos foi o brasileiro César Lattes. Nascido em Curitiba em 1924, obteve o bacharelado em Física e Matemática em 1943 na USP.
No início de 1946 chegou à Universidade de Bristol, Inglaterra, para trabalhar no grupo de pesquisas sobre raios cósmicos com o britânico Cecil Powell e o italiano Giuseppe Occhialini, este último foi seu professor na USP.
A equipe de Bristol estudava a desintegração de partículas subatômicas utilizando placas fotográficas (mas se deparava com problemas).
(Foi então que) Lattes solicitou ao fabricante que introduzisse o elemento químico boro na composição das placas e as levou até os Pirineus franceses a 2,5 mil metros de altitude.
(Aí sim os problemas foram superados. Ao revelar as chapas fotográficas, não só particulas mésons ficaram plenamente visíveis, como também foram verificadas as primeiras evidências da existência de uma novidade, as mésons pi.)
Descoberta gerou maior divulgação
A méson pi é uma partícula que compõe o núcleo do átomo, sendo responsável por manter os prótons e nêutrons grudados, impedindo que o núcleo se desintegre.
Essa descoberta gerou um artigo publicado em 1947 na Revista Nature,cujos autores foram Lattes, Muirhead, Occhialini e Powell. O brasileiro concluiu que a exposição de chapas fotográficas em grandes altitudes era a chave para detecção de mesóns pi e, colocando em prática as palavras do grande Karl Marx, não temeu o cansaço.
Decidiu escalar as veredas escarpadas do Monte Chacaltaya na Bolívia (5.300 m) para alcançar os cumes luminosos da ciência. Os resultados obtidos na Bolívia originaram mais dois artigos científicos com grande repercussão internacional assinados por Lattes, Occhialini e Powell.
Câncer e Raio X
Além das aplicações na área de altas energias, a tecnologia da méson pi pode ser utilizada no tratamento radioterápico contra o câncer. Os raios gama usados atualmente causam muito dano na região ao redor do tumor e a radiação da méson pi se concentraria somente sobre as células doentes. Outra aplicação seria a produção de raios-X de maior precisão para análise de ligas metálicas.
Os feitos de César Lattes tiveram grande repercussão no Brasil. Iniciou-se uma campanha que culminou com a fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949, bem como foi criado o Conselho Nacional de Pesquisa, que mais tarde se transformou no CNPq (atual).
Domínio nuclear ou corrida de cavalo?
Acreditou-se que o efeito Lattes motivaria a construção de um “projeto de nação” a partir da ciência, visando o domínio do ciclo completo da energia nuclear. Mas essa ideia não combinava com os interesses do imperialismo ianque, que após a 2ª Guerra Mundial intensificou o processo de subjugação e espoliação do Brasil.
A intervenção estrangeira aliada a governantes submissos e o mau-caratismo dos responsáveis por esse “projeto” (Álvaro Difini, então Diretor do CNPq, “torrou” o dinheiro da construção do acelerador de partículas brasileiro em corridas de cavalo) fizeram com que o mesmo naufragasse.
‘Não sou mercenário’
Esses fatos ratificam o caráter semicolonial e semifeudal do Brasil que investe, atualmente, somente 1,28% do seu PIB em Ciência e Tecnologia. A ingenuidade e a falta de traquejo de Lattes para lidar com episódios como esse o levou a um surto psicológico, viajando ao exterior em busca de tratamento.
César Lattes poderia ter construído sua carreira científica no exterior, mas optou pelo Brasil. Numa entrevista de agosto de 1996 ao jornal Diário do Povo (Campinas) disse: “Não sou mercenário. Não me vendo, ainda mais para fazer guerra”.
Talvez referia-se à recusa do convite para ocupar a (cobiçada)cátedra de Enrico Fermi na Universidade de Michigan/USA.
(Fermi, que na década de1920 filiou-se ao fascismo italiano e contava com a simpatia de Mussolini, participou, com cargo milionário, do projeto da primeira bomba atômica ianque no laboratório de Los Alamos).
Ditadura ameaçou Lattes e outro gênio
Após 1964 César Lattes foi perseguido pelo regime militar reacionário brasileiro, pois era comunista.
Outro comunista que mereceria destaque internacional na área científica é Samuel Pessoa, tido como um dos maiores parasitologistas e sanitaristas mundiais, por ter criado métodos inovadores/revolucionários no combate a doenças presentes nas áreas rurais. A ditadura igualmente o ameaçou.
Sobre Samuel AND publicou, em janeiro de 2008, a reportagem O médico dos camponeses a qual teve trecho do conteúdo escrito por meu pai, jornalista Rosnel Bond, que foi amigo pessoal do cientista. A seguir resumimos e adaptamos o texto (em formato itálico) :
Um dos maiores cientistas que o mundo já teve nas áreas da Saúde Pública e da Parasitologia foi um médico brasileiro. Seu nome? Samuel Pessoa. Autor de mais de 300 trabalhos científicos, ele foi um dedicado pioneiro nos estudos epidemiológicos das doenças endêmicas das comunidades rurais brasileiras.
A figura de Samuel Pessoa foi citada em recente edição de AND, (2007/2008) em reportagem que falava do professor Wilson Mayrink, o criador da vacina contra a leishmaniose.
Nascido em São Paulo em 1898, filho de um médico paraibano e de mãe inglesa, Anna Barnsley, Samuel B. Pessoa foi médico sanitarista e parasitologista, tendo dedicado sua vida a uma incessante batalha para a solução de questões de saúde pública, um problema da mais alta gravidade no Brasil até os dias atuais.
‘Pé sujo’
Formado em 1922 pela Faculdade de Medicina de SP, desfrutou do convívio de cientistas como Oscar Freire e Rubião Meira, tendo ainda sido influenciado, na faculdade, por Wilson Smile, professor da Universidade de Harvard (USA), que na época vinha passar férias no interior do Brasil.
Ele transmitiu a Samuel o gosto — que manteve pelo resto da sua vida— pelos estudos epidemiológicos de campo (os apelidados “pesquisadores de pé sujo”).
A convite da Sociedade das Nações foi para a Europa em 1927, onde percorreu os serviços antimaláricos da Iugoslávia e frequentou institutos científicos da Itália e Espanha. Em 1928 trabalhou no Laboratório de Parasitologia da Universidade de Paris.
Junto ao povo
De volta ao Brasil, em 1929, continuou na sua faina incansável, até que em 1931 inscreveu-se no concurso para professor de Medicina da USP. É aprovado depois de apresentar uma bagagem de 51 trabalhos versando sobre Protozoologia, Malariologia, Helmintologia, Entomologia, Micologia e Bacteorologia, Higiene e Patologia Geral. É então nomeado professor de Parasitologia, em abril de 1931.
Era pragmático e trabalhava sem parar. Gostava de estar entre o povo pobre, principalmente os camponeses, que sofriam as enfermidades que ele sonhava extinguir.Sua atividade intelectual foi ininterrupta por mais de 50 anos. Dentro desse período publicou mais de 300 trabalhos, artigos em jornais e livros, destacando-se o mais famoso—Parasitologia Médica— do qual houve 11 edições e é adotado até hoje (2008) em faculdades do Brasil e do exterior.
Bom humor e desinteresse de lucro
Segundo seus biógrafos, Samuel era possuidor de atributos muito importantes ao verdadeiro pesquisador: “Tenacidade, desinteresse de lucro, operosidade e amor à ciência”.
Aos 57 anos, incomodado pela ditadura militar, requereu sua aposentadoria na faculdade em SP e passou a levar seus conhecimentos a diversas escolas de Medicina do país, como Londrina, João Pessoa, Aracaju, Florianópolis, Salvador, Goiânia, Itajubá e muitas outras.
Muito bem humorado, ficou conhecida nos meios intelectuais a sua espirituosidade na classificação dos animais que capturava para estudo: “bicho bão” era o que transmitia doença; “bicho bobo” o que não transmitia; “bichídeo”, aquele cujo papel ainda era incerto como vetor de doenças.
Nosso amigo Samuel
Depoimento do jornalista Rosnel Bond:
“No início dos intermináveis anos de chumbo da ditadura militar, lá por 1967/68, trabalhava eu na sucursal do jornal O Estado do Paraná, na cidade de Londrina (PR), época coincidente com o início do funcionamento do curso de Medicina da Universidade Estadual local.”
“Na ocasião, fazia parte de um pequeno grupo de jornalistas, professores universitários e jovens estudantes que nos reuníamos em prolongadas discussões, noites adentro, sobre a situação política do país, preocupados que estávamos — assim como boa parte do povo brasileiro — com o futuro da nação, caída recentemente nas mãos dos golpistas, fardados e não-fardados.”
“Em meio ao ambiente sombrio criado pelos militares e seus sócios norte-americanos e brasileiros, que se traduzia em perseguições políticas, assassinatos de trabalhadores, intelectuais e estudantes, a Universidade de Londrina teve a feliz oportunidade de contratar para seu quadro docente um dos maiores cientistas que já se conheceu.”
“Tratava-se da figura notável do professor Samuel Barnsley Pessoa, o qual tive o privilégio e a honra de conhecer e a felicidade de usufruir sua amizade, assim como de sua esposa, Jovina. Esta também uma valorosa mulher, que apesar de descender de quatrocentona família paulistana, possuía uma formação ideológica de esquerda e foi companheira inseparável e incansável nas lutas de seu marido.”
“Embora tenha eu privado da amizade dessas duas pessoas maravilhosas por pouco tempo, ainda recordo os felizes e proveitosos momentos em que, juntos, ríamos das situações tragicômicas resultantes das trapalhadas infelizes criadas por aqueles que tomaram o poder à força e à revelia do povo brasileiro.”
“Assim como lembro do saboroso bom humor do professor Samuel, uma marca de sua personalidade.
Houve, por exemplo, uma ocasião em que comentávamos os graves problemas da esquistossomose e da malária no norte do Paraná, que na época se alastrava de forma assustadora.
Disse ele que tinha apresentado às autoridades, algum tempo atrás, um projeto para ‘segurar’ certas doenças que entravam do norte para o sul do país. E que consistia, basicamente, de instalar um extenso cordão de defesa contra os vetores, nos principais rios de divisa nos estados de SP e PR.”
“A estratégia era muito simples e necessitaria somente de muita mão de obra não-qualificada (o que daria emprego para centenas de pessoas) e óleo cru queimado, cujo custo era mínimo, praticamente se resumindo ao preço do transporte.
Perguntei-lhe, então, por que o projeto não fora aceito pelo governo. Ele respondeu com um sorriso debochado e ao mesmo tempo melancólico:
— Ah, meu filho, era barato demais…”
O cientista faleceu em 1976, aos 78 anos de idade.
Farmacêutica contra descoberta de cura
O médico ganhador do Nobel de Medicina 2007, Richard J. Roberts, denunciou em 2017, que “medicamentos que curam não são rentáveis”, apontando a prática antiética/criminosa /capitalista de indústrias farmacêuticas de boicotar descobertas de cura para certas enfermidades.
O Brasil tem uma boa lista de descobridores de medicamentos e doenças:
- Bradicinina por Mauricio Rocha e Silva, Wilson Teixeira Beraldo e Gastão Rosenfeld.
- Doença de Chagas, patógeno, vetor, hospedeiro, manifestações clínicas e descoberta epidemiológica, por Carlos Chagas.
- Tifo epidêmico, descoberta do patógeno, por Henrique da Rocha Lima.
- Esquistossomose, descoberta do ciclo da doença, por Pirajá da Silva.
Procedimentos, técnicas ou medicamentos criados por brasileiros:
- Fotofluorografia de tórax por Manuel Dias de Abreu.
- Procedimento de Jatene por Adib Jatene.
- Soro antiofídico de Vital Brazil, também é creditado como o primeiro a desenvolver soros antiescorpião e antiaranha, em 1908 e 1925, respectivamente.