Jogo de empurra de quem responde pelos mortos por Covid é tradição da República brasileira

Jogo de empurra de quem responde pelos mortos por Covid é tradição da República brasileira

Vista aérea de funcionários cavando túmulos no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo.Foto: Andre Penner/AP

Em 23 de abril de 2020 uma figura a quem não se pode chamar de desinformada, ex-ministro da Saúde, atual senador por SP dizia: “É verdade que os testes e os EPIs (equipamentos de proteção individual) estão faltando no mundo inteiro. Mas, aqui no Brasil, a cada dia há promessa de que chegarão testes, máscaras, luvas e não se vê isso na prática. Até hoje não se teve uma explicação do que de fato aconteceu com a carga de equipamentos chineses que deveria vir para o Brasil e que, dizem, foi interceptada pelos EUA. Não há explicação”  (Entrevista com José Serra, O Globo, 24/04/2020).

Chama a atenção duas questões. A primeira são as respostas que o governo brasileiro dá frente a epidemia de coronavirus, caracterizada por muitas promessas – testes, respiradores – e pouca ação. E nenhuma transparência. A segunda, é a mão dura do imperialismo ianque, que tem sequestrado, como seus bandoleiros dos faroestes, equipamentos e insumos. Comentaremos aqui a primeira questão, deixando para próximo artigo a segunda. 

Fica claro que o governo federal não se preparou para a epidemia. Foi tardio o planejamento do reforço necessário da rede de saúde e da compra de equipamentos e insumos mesmo sabendo das dificuldades de acesso aos mesmos. Dificuldade essa derivada da opção política da oligarquia dominante de permitir que houvesse a desindustrialização do país desde, ao menos, os anos 1990, onde muitos insumos que poderiam ser produzidos internamente passaram a ser comprados no mercado internacional, em especial, da China. E da ganância da indústria da saúde, dominada pelos monopólios que, aproveitando a necessidade urgente de seus produtos, aumentaram criminosamente os preços. Mas se sabia que era necessário a ampliação dos leitos e hospitais de campanha foram planejados. Ressalta-se que uma opção mais inteligente seria primeiro aproveitar a capacidade ociosa de hospitais públicos e estatizar hospitais privados inativos, ampliando e equipando leitos e reforçando pessoal. Fruto de pressão do Judiciário, foi informado em 30 de abril que o Rio de Janeiro dispunha de 1840 leitos de hospitais públicos desativados, principalmente por falta de pessoal. Ao invés de dizer “E daÍ” frente aos mortos, o governo de Bolsonaro poderia ter contratado pessoas para ativar esses leitos.  O descaso com que o ex-ministro Mandetta tratou a rede de hospitais federais do Rio, fingindo não saber de sua existência, só pode significar que não queria se meter com uma área de interesse do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01, que tem usado sua influência política na indicação de diretores para destruir os hospitais, sabe-se lá com que escusos Interesses. 

Hospitais de campanha foram oportunidades de negócios para a rede privada como por exemplo os que estão em fase de conclusão no Rio de Janeiro, envolvendo a Rede dOr e em São Paulo, em parceria com o Einstein. 

É sabido que a epidemia de coronavirus assumiu caráter dramático em alguns lugares. O primeiro deles foi Manaus. Era esperado, pois desde março, o número de casos diagnosticados em Manaus era expressivo e a rede de saúde sabidamente já insuficiente para a população. Manaus, cuja Região Metropolitana tem mais de 2.500.000 habitantes, possui somente cerca de 1.4 leitos por 1000 habitantes, a metade do considerado um mínimo aceitável. Até a rede privada é insuficiente. A resposta do governo municipal, do PSDB, foi ampliar um hospital que estava inoperante a partir de convênio com Organizações Sociais. O estado, do PSL, recebeu recursos, prometeu hospitais de campanha, mas foi acusado de embolsar o dinheiro e até agora nada foi concluído. Pessoas morrem em casa, coisa admitida pela própria Secretaria Estadual de Saúde, na porta das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) ou nos corredores das unidades de saúde. Profissionais de saúde se queixam da falta de EPIs. A população se revolta e quebra portas de UPAs. Na rede privada, que também está superlotada, denúncias surgem de cobrança por fora para internação (até de 10.000 reais de ágio), mostrando claramente o que é a lei do mercado, aplicada à saúde das pessoas, para quem ainda tem ilusões.

O governo Bolsonaro/generais admite que a situação é crítica mas lava as mãos. O que poderia fazer as Forças Armadas, particularmente o Exército que, como se sabe, precisa ter tecnologia para montar rapidamente hospitais de campanha em situações de guerra? 

Hospital de Campanha é uma unidade hospitalar móvel, que temporariamente cuida de pessoas atingidas por situações de emergências e calamidades públicas. Oferta serviços de atenção à saúde, com apoio de equipes multiprofissionais, em atendimentos de urgência e emergência, atendimento ambulatorial, internações, remoções, realização de procedimentos cirúrgicos, exames laboratoriais e de imagem. As Forças Armadas já utilizaram Hospitais de Campanha em situações de enchentes, terremotos no Haiti e no Chile e diz compartilhar a expertise com outras instituições Montagem de hospitais de campanha reforça o enfrentamento à Covid-19. Segundo o Ministério da Defesa há alguns hospitais de campanha funcionando como o de Boavista (RR) e o Exército apoia com instalação de tendas de triagem para atender pacientes com sintomas gripais, no Sul e interior de São Paulo, regiões que ainda não chegaram a um ponto crítico. Segunda ainda essa fonte, a Operação Covid-19 envolve a participação de mais de 5,5 mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Por iniciativa do próprio Exército, por exemplo, em Suzano (SP). A montagem do hospital de campanha é feita em 24 horas pelo Exército segundo a Agencia Brasil em 20/03/2020. Na experiência chinesa pioneira, havia uma hierarquia de unidades de saúde para combater o coronavirus: hospitais de campanha menos e mais complexos, estes com UTIs. Os menos complexos, como podem ser os do Exército que se montam rapidamente, atenderiam casos mais leves que precisam de monitoramento permanente para não morrerem em casa que é o que está ocorrendo. Pois, tem se verificado que a pneumonia causada pelo vírus, muitas vezes, se agrava subitamente levando a óbito sem chance de atendimento. Isto tem ocorrido principalmente com as pessoas mais pobres, pois o SAMU demora, muitas vezes, horas para chegar aos domicílios.

Porque o Exército não apoia Manaus, uma clara emergência de saúde pública hoje, é a pergunta a se fazer. Ao invés de assediar camponeses em lugares onde não houve queimadas, na operação de Garantia da Lei e da Ordem, a presença do Exército em Manaus faria diferença em termos de possibilitar quiçá que doentes possam sobreviver. Além de ser opção mais barata e rápida do que os contratos que estão sendo feitos com a rede privada sem licitação, pois assim a legislação da emergência permite.

A Marinha possui navios com estrutura hospitalar que atuam em áreas remotas da Amazônia. Não seriam esses navios mais úteis hoje redirecionados para atender Manaus? 

Em 13 de abril, de 63 hospitais de campanha anunciados em todo o Brasil, só 9 estavam funcionando. No Rio de Janeiro onde havia, em 22/04/2020, 237 pacientes esperando uma vaga na rede pública e desses, 84 aguardam um posto em unidade de terapia intensiva, foi preciso mandato judicial nessa data para o governo federal responder que ações planeja para colocar a rede federal de hospitais operante com pessoal e equipamentos. E, que a União esclareça quais são as unidades hospitalares móveis que o Exército montará para o combate ao coronavírus, bem como o prazo de conclusão das obras.

A quarentena se tornou a única opção de enfrentamento da pandemia, quando ela tem a função primordial de alongar a curva de contágio para que todos os doentes não usem o sistema de saúde ao mesmo tempo. A expansão desse sistema é necessária aproveitando o isolamento. Em torno dele surgiram as controvérsias no seio dos governos. Bolsonaro faz a propaganda ideológica do fim do confinamento jogando a culpa nos governadores. Na prática, a quarentena foi flexibilizada, inclusive por falta de apoio do governo federal a sobrevivência das pessoas. A ajuda de 600 é tão difícil ser recebida que as filas se tornam focos de COVID-19. Os países que começaram a flexibilizar a quarentena apresentam várias condicionalidades, nenhuma delas existentes no Brasil: total informação da circulação do vírus na população, testes em massa e estrutura hospitalar. 

Tudo leva a crer que os governos empurrarão os problemas e as culpas uns para os outros, minimizarão as mortes classificando-as como indeterminadas, pois não há diagnósticos, pessoas morrerão em casa porque o próprio sistema de saúde está rechaçando os casos. Isso não é natural, isso não está acontecendo no resto do mundo como o governo federal quer fazer as pessoas crerem. Embora haja muita incerteza na dinâmica do vírus, há conhecimento científico acumulado de prevenção e tratamento para as pessoas terem alguma chance de sobreviver, mesmo adquirindo formas graves da doença. Há países que estão controlando mais a doença, há países em que a rede de saúde não foi tão sucateada por anos e anos, em que se estimulou a privatização da saúde. A variável decisiva para que isso ocorra é o temor dos governos da justa revolta da população pois o imperialismo e os governos lacaios não tem respeito com a vida das pessoas principalmente nesse caso que afeta mais a população que já não tem importância como força-de-trabalho, ou seja, idosos e doentes. No Brasil, é como se fosse uma reforma da previdência, ato 2, o que se revela na fala aberta do fascista Bolsonaro, mas também na boca pequena da direita e centro, todos defensores do Deus mercado e do assalto às aposentadorias e pensões. Respeitado as regras de cuidado com si próprio e as pessoas em volta, é preciso se rebelar contra esta situação.

Nota:

*Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi é Presidente do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos, Professora Adjunta da Faculdade de Medicina e do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da UFRJ

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