Jovens quilombolas rurais: investigação sobre a juventude afro-brasileira camponesa de Santa Catarina

Jovens quilombolas rurais: investigação sobre a juventude afro-brasileira camponesa de Santa Catarina

Se Santa Catarina é considerado o Estado mais branco e europeu do Brasil; se até pouco tempo atrás sua história procurava negar a presença de contingentes de negros na formação da sociedade (conforme já informamos antes em AND); se os remanescentes de quilombos são tidos como os mais excluídos e um dos grupos humanos mais invisíveis do Estado, imagine-se então o papel transparente dos jovens quilombolas. E mais ainda: dos jovens quilombolas da zona rural !

Mostrar esses catarinenses menosprezados pelo preconceito (de classe e cor) por parte dos governantes e de sua aliada burguesia, revelá-los, desvelá-los, foi um dos maiores méritos da engenheira agrônoma e professora Maria Bottega, que dedicou seu mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC a investigar uma parcela importante da vida da juventude afro-brasileira da área camponesa estadual: quem é, o que faz, o ensino escolar que recebe, o que pensa do presente e o que quer do futuro.

“A pesquisa (para o mestrado) optou pelos jovens agricultores quilombolas no intuito de dar visibilidade a esse público que historicamente foi e é incluído precariamente na sociedade” – afirmou ela no texto. Foram pesquisadas 3 comunidades quilombolas inseridas nos municípios de Campos Novos (Invernada dos Negros) e Monte Carlo, na região serrana, e Garopaba (Aldeia), na região litorânea.

O resultado transformou-se na dissertação Jovens quilombolas e ocupações não agrícolas: tensões em um Programa de Educação do Campo apresentada como Pós-Graduação em Agroecossistemas, ao Centro de Ciências Agrárias da UFSC. Embora concluída em 2011, ainda é bem atual e oportuna.

Esvaziamento do campo?

Maria, que hoje está cursando Pedagogia e fazendo Especialização em Psicopedagogia, e que é também especialista em Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável (UFSC), concorda com a visão exposta em AND pelo professor Nilson Silva, de Pernambuco, na edição de março-abril passado, sobre o mito do esvaziamento demográfico do campo (segundo ele, uma ideia falsa que gera descrença na revolução agrária).

Afirmou a estudiosa:

“Abordar a definição de território urbano e rural no Brasil apresenta muitas contradições e equívocos de análise pelos órgãos estatísticos, a exemplo do IBGE, que considera como critério de classificação apenas as questões administrativas. Concordo com Nilson Silva, quando enfatiza que na caracterização populacional, a distorção maior resulta da adoção do Decreto-lei 311, de 2 de março de 1938, ao invés de se adotar a metodologia da OCDE para caracterização das populações urbana e rural.

Outro estudioso que levanta esta tese é o professor José Eli da Veiga, que defende a hipótese de que, segundo a definição do espaço rural e urbano, os municípios rurais melhoram sua posição no desenvolvimento analisado sob a ótica do PIB per capita e do Índice Social Municipal Ampliado (ISMA), apresentando melhor desempenho nestes indicadores do que quando utilizados os critérios do IBGE.

De acordo com Veiga, a ordem classificatória é a seguinte: a) regiões essencialmente urbanas; b) regiões essencialmente rurais; c) regiões intermediárias ou ambivalentes. Assim sendo, dois dos municípios focos de minha pesquisa (Garopaba e Campos Novos) são considerados pelo IBGE como urbanos, mas pelas propostas dos professores Nilson e José Eli, Campos Novos é rural, enquanto que Garopaba é ambivalente.” 

Deslocamento intenso da juventude

Conforme o texto de Maria, o avanço do capitalismo no campo brasileiro, notadamente a partir da década de 1970, que trouxe consigo “êxodo rural, miséria, conflito de sem-terra com latifundiários, analfabetismo, degradação do meio ambiente” etc, atingiu os jovens negros. “Observa-se que a juventude rural quilombola (inclusive a de SC) tem enfrentado tais problemas, aos quais somam-se as dificuldades de acesso à escolarização e à formação profissional”.

O grupo catarinense pesquisado pela professora/engenheira, com idade entre 18 e 29 anos (limitação fixada pelo programa educacional ProJovem Campo)  diante das “atuais tendências tecnológicas, de mercado, da redução do tamanho da propriedade familiar, da não qualificação profissional e da baixa escolarização” é obrigado a praticar a chamada pluriatividade. Isto é, para conseguir sobreviver esses jovens “buscam renda complementar em atividades não-agrícolas concomitantes às agropecuárias, de forma a manterem-se residindo no campo”.

Embora os afrobrasileiros dos quilombos de SC procurem ficar na terra, onde praticam a agricultura familiar de subsistência, existe “um deslocamento intenso da juventude rural quilombola”, diz a estudiosa. Dentre as causas “que estimulam esses jovens a realizarem atividades não-agrícolas para garantir sua reprodução social”, a pesquisa identificou “problemas de infraestrutura nas propriedades, baixos índices de escolaridade e baixa renda”.

Além disso Maria percebeu, na pesquisa, que os jovens afrodescendentes vivem “uma realidade contraditória entre a forma coletiva e simbólica dos quilombolas, realizando agricultura de subsistência, com a dinâmica capitalista com base no agronegócio, pois prestam serviços para fazendeiros e empresários”.

Paralelamente, conforme a engenheira/professora, “as condições de sair e ficar nos espaços campo-cidade são movimentos estratégicos dos jovens rurais quilombolas na busca de sua inserção profissional”.

Questão de sobrevivência

Dentre os entrevistados, vários inclusive já não são mais agricultores e realizam atividades não-agropecuárias na cidade/meio urbano, tais como costureira, manicure, professora, estampador, mecânico, chapeador, embora a maioria deles (delas) continue morando no meio rural.

Ao inverso, outros membros do grupo pesquisado são assalariados rurais mas moram na cidade, realizando serviços para empresas ligadas à cultura da maçã e reflorestamento de pinus/eucalipto. Por fim, outra parte dos entrevistados praticam “atividades agropecuárias em suas propriedades e/ou fora das mesmas, sendo que todas estas unidades produtivas realizam a pluriatividade para conseguirem manter a reprodução social de suas famílias”.

Informa o texto que “ao certificar-se dos depoimentos das vidas dos entrevistados, bem como das condições sócio-econômicas e de inserção profissional, considera-se que a saída do meio rural ou o abandono das atividades agropecuárias, mesmo morando no rural, é (na opinião deles), uma questão de sobrevivência”.  Disse um dos pesquisados: “Não há saída para nós, é uma questão de sobrevivência, não de escolha. A gente trabalha naquilo que aparece”.

Educação refém do capitalismo

Sobre o ensino escolar, os quilombolas de SC valorizam muito a questão educacional e aderiram fortemente ao programa federal Saberes da Terra, (iniciado em 2005) representando 44% do público-alvo (os povos do campo – que incluem também agricultores familiares, ribeirinhos, pescadores, camponeses assalariados, camponeses assentados/acampados, indígenas, caiçaras, extrativistas).

Os negros dos quilombos catarinenses, portanto, perfaziam quase metade dos alunos do Saberes. Porém no programa que o sucedeu (em 2007), o ProJovem Campo, eles quase sumiram, havendo um refluxo para apenas 8,6% do total de alunos matriculados. A evasão escolar também refletiu essa realidade: no Saberes da Terra a evasão quilombola beirou os 20%, mas no ProJovem chegou a preocupantes 61%.

Esses números revelam o nível de afinidade e articulação dos quilombolas de SC com o Movimento Negro Unificado (MNU). Este grupo incentivou/mobilizou a participação dos quilombos no Saberes, mas deixou de fazê-lo na versão ProJovem, inclusive distanciando-se enfaticamente do programa. Seu motivo de crítica foi o seguinte: o ProJovem reduziu a presença, no currículo, do conteúdo de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, descumprindo uma lei de 2003.

Outro fator que desgostou o MNU e os estudantes quilombolas foi o comportamento moroso (e descompromissado) do governo do Estado e de sua Secretaria de Educação diante de itens fundamentais ao bom funcionamento daquele programa de ensino, tais como alimentação, transporte, acompanhamento técnico-pedagógico e outros.

Maria igualmente condena, em seu mestrado, a omissão das autoridades estaduais: “O governo do Estado de S. Catarina ainda não assumiu a Educação do Campo como uma política pública de estado”. E ainda mais: “Parece-me que o movimento de Educação do Campo do Estado está refém da conjuntura do modelo capitalista vigente, que gera um sistema educacional com disfunções de origem estrutural”.              

 Sobre a falta de transporte para os estudantes quilombolas em SC: “Tu vias gente caminhando 3 horas para assistir a uma aula…” – relatou, com irritação, uma pessoa envolvida no processo educativo.

Sobre a falta de alimento: “(A alimentação demorou a chegar, apesar de o MEC ter repassado os recursos ao governo estadual)…um tempo depois veio a merenda, mas era pão com margarina, que para as pessoas não servia, pois elas estavam acostumadas a comer comida mais consistente, também porque vinham direto da roça para a aula” – relatou outra testemunha.

Perspectiva de futuro

Todos os entrevistados por Maria valorizaram a educação e disseram querer estudar com vistas ao futuro.

A resposta mais escolhida, com 18 pontos, revela que os jovens quilombolas de SC querem uma escolarização como alternativa para ir à cidade desempenhar outra profissão que não esteja relacionada à agropecuária (vista por eles como algo desgastante e que traz ganho pequeno), embora desejem seguir morando na propriedade rural.

Em seguida, com 16 pontos, a opção mostra que querem uma escolarização como oportunidade de desenvolver ocupações não-agropecuárias, morando fora da propriedade.

A outra opção, com 14 pontos, mostra que querem uma escolarização como conhecimento para desempenhar ocupações agropecuárias dentro da propriedade. A última, com 12 pontos, mostra que querem escolarização como conhecimento para desenvolver ocupações agropecuárias dentro ou fora da propriedade.

Analisando o resultado, afirmou Maria Bottega: “As respostas estão relacionadas principalmente ao fato de os jovens quilombolas não possuírem oportunidade de ganho/renda (adequada) em suas unidades produtivas, pois estas são restritas em termos de áreas (tamanho), infraestrutura e renda”.        

A EMOÇÃO DE UMA PROFESSORA

“Eu entrei de um jeito no programa (Saberes da Terra) e saí de outro jeito. Nunca dentro da Secretaria (de Educação), ninguém que tá lá tem a dimensão da riqueza que é esse contato que nós estamos tendo….pensar a educação dos afrodescendentes…então quer dizer, se eu não tivesse tido essa experiência do programa nunca eu teria esse olhar, que (mesmo estando fora da cidade, vivendo na zona rural) eles também são discriminados, (vistos como) malandros, ter que romper com tudo isso…e hoje eu tenho muito mais garra, eu tenho mais paixão de trabalhar com as relações étnicas, de pensar naquela cultura…”   

 

OS RECONHECIDOS

Atualmente, Santa Catarina tem 17 comunidades quilombolas oficialmente reconhecidas pela União (Fonte: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade- CEERT, em maio de 2019). No entanto, conforme relatório da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ) do Incra, dos 17 processos de regularização quilombola abertos em S.Catarina, apenas 3 estavam em andamento normal em 2018.
Segundo dados de 2018 da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), existem entre 5 mil e 6 mil comunidades quilombolas no Brasil, mas apenas 220 foram tituladas até agora e outras 1.675 aguardam o processo de certificação.
A Fundação Cultural Palmares estima que existam cerca de 40 grupos remanescentes de quilombos em SC. Já outras entidades (como o Movimento Negro Unificado) calculam entre 100 e 200 grupos.Em SC, muitos escravos se refugiaram no Sertão do Valongo após a abolição da escravidão em 1888. O local é uma comunidade rural adventista, no município litorâneo de Porto Belo, e sua população é de aproximadamente 34 famílias, que até hoje permanece como um dos mais preservados resquícios dos quilombos existentes no estado.

Foto: Banco de dados AND

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