‘Juventude’ (2017), ou o Ouro de Tolo Chinês

Filme explora contradição individuais da juventude, mas também (e indiretamente) a juventude abnegada da época de Mao com a luta pela sobrevivência individual e pequenos luxos da era de Deng Xiaoping.
Foto: Juventude (2017)

‘Juventude’ (2017), ou o Ouro de Tolo Chinês

Filme explora contradição individuais da juventude, mas também (e indiretamente) a juventude abnegada da época de Mao com a luta pela sobrevivência individual e pequenos luxos da era de Deng Xiaoping.

Via o crescente trabalho de tradução de obras políticas, científicas e artísticas de países socialistas e democracias populares e sua divulgação na Internet através de coletivos e influenciadores digitais de formação e propaganda, é cada vez mais acessível ao público brasileiro consumir obras históricas do cinema e literatura legados pelas experiências socialistas e democráticas do século XX. Para além de representações mais vivas daquilo que geralmente o ativista ou o estudioso é acostumado a ler em livros e artigos, tais obras costumam ser uma boa fonte de entretenimento como também uma expressão da subjetividade de uma sociedade e é sobre isso o artigo.

Antes, contudo, se faz necessário divulgar a página onde tive acesso ao filme: Comunaflix. Página esta que dispõe de links para o YouTube e Google Drive de filmes e suas respectivas legendas produzidos na China, RPDC, URSS e França – neste caso o “Le Chinoise” (1968) de Goddard. 

Juventude

O filme Juventude é um drama juvenil que narra a história de jovens artistas que serviam à Brigada Artística do Exército Popular de Libertação na China durante o período conturbado de 1976 a 1980. Nele, através da narração de Xiao Suizi, personagem coadjuvante e narradora, acompanhamos a história da Xiaoping, uma jovem recém-chegada do interior da China em Pequim para compor a Brigada Artística se defrontando com questões de amadurecimento, bullying, sentimentos e família. Temas muito populares nas produções culturais do Leste Asiático, diga-se de passagem. 

Oriunda de uma família cujo pai se encontrava preso há 10 anos num campo de reeducação, ou seja, desde o início da Revolução Cultural (não se fala o motivo), Xiaoping He logo no início da história trás o medo da infâmia que a levou a utilizar o nome do padrasto para se alistar na Brigada Artística. Contudo, ainda assim, devido a sua origem camponesa ela enfrenta o bullying de suas colegas de dormitório e de palco que a desprezam pela sua origem camponesa e seus modos atrapalhados. Se contrapõe ao tratamento dado por suas colegas, o personagem Feng Liu, soldado modelo, de grande reputação na tropa e entre as garotas que sempre se esforça por enturmá-la e agradá-la. Em determinado momento, quando todos os rapazes se recusam a dançar com Xiaoping He, ele mesmo com sua coluna ferida, se propõe a fazer par com ela. Novamente um enredo muito comum nos doramas e k-dramas, mas a relação entre os dois será mais complexa que o pastelão da menina atrapalhada e o rapaz cobiçado.

Abertura

Foto: Juventude (2017)

Os anos vão se passando e China ao redor da Brigada Artística de Pequim vai se transformando: em 1976 Mao Tsetung morre, alguns tempos depois o Grupo dos Quatro é derrotado – sobre isso o filme apenas menciona o acontecimento e diz que neste processo de “luta” Feng Liu feriu a coluna não podendo mais dançar -, as fitas cassetes de Hong Kong e as calças jeans “que marcam a bunda” surgem nos pertences das garotas e os romances entre os jovens começam a aparecer. Apesar das mudanças, o pai de Xiaoping He, de saúde debilitada, não sobrevive a tempo de ser libertado como o pai das outras garotas.

Em determinado momento a narradora deixa transparecer que Feng Liu não entendia os novos tempos, continuando seu estilo de “Servir ao Povo”: trabalha duro, mesmo fora do seu expediente, exerce o ofício de carpinteiro aprendido com seu pai para fazer cadeiras de madeira para o casamento de uma de suas colegas, exala otimismo e luta contra o preconceito sofrido por Xiaoping He. 

A Guerra

Com o estourar da Guerra Sino-Vietnamita de 19791, o Grupo Artístico do Exército acompanha os combatentes, dentre os quais Feng Liu, agora na linha de frente. Xiaoping He, que havia simulado doença para sair do quadro artístico, se integra aos hospitais de campanha como enfermeira. É nesta guerra que, já em crise devido a frustrações sentimentais, reflexo indireto da mudança dos tempos, eles alcançam a condição de heróis.

Feng Liu, mesmo com o braço gravemente ferido, recusa a oferta de socorro e sustenta sua posição no combate. Xiaoping He, já abalada pelos traumas anteriores, em meio ao bombardeio vietnamita sobre o hospital de campanha, se joga sobre o corpo do paciente para tentar salvar sua vida. Incompatíveis com o novo mundo que surgia, ambos preferiram a morte em glória ao mundo em que não se adequaram, mas não conseguiram. Nenhum dos jovens morreu, apesar de ambos ficarem com graves sequelas pelos anos seguintes.

Xiaoping enlouqueceu e ficou internada em um hospital militar psiquiátrico e Feng Liu perdeu o braço. Em 1980, como sintoma das reformas denguistas, a Brigada Artística é fechada, tendo como último número a apresentação para as pacientes do hospital psiquiátrico, entre elas Xiaoping.

‘Nova China’

1991, na Pequim de Deng Xiaoping: no lugar de marchas e ciclistas, a rua está cheia de automóveis e o som dos hinos é substituído pelas buzinas e gritos de transeuntes. Liu Feng, sem sua habitual farda bege, mas roupas civis maltrapilhas, discute com policiais, os acusando de cometer extorsão para liberação de seu caminhão apreendido em razão de uma multa de trânsito não paga. Os policiais perdem a paciência e o empurram para fora da delegacia, caindo na calçada. Neste momento acontece o inesperado encontro com Xiao Suizi, a personagem narradora que neste momento se encontra madura, bem sucedida e mãe de uma criança mimada que ambiciona um Transformers de plástico.

Mais que o reencontro de duas personagens, nessa calçada se dá um encontro de duas Chinas. De um lado a bem sucedida Xiao Suizi, que conseguiu lugar na crescente “classe média” consumidora da China. Talvez essa seja uma das cenas mais emblemáticas do filme e que denuncia a mudança dos tempos já pronunciada desde a morte do Presidente Mao. Liu Feng, o soldado modelo do passado cujo lema era “Servir ao Povo” e herói de guerra, agora empobrecido e humilhado por não se adequar ao “Enriquecer é glorioso”. Infelizmente na “nova” China, o culto ao heroísmo/martírio e ao testemunho da ideologia dava lugar ao culto à prosperidade, transformação similar à sofrida pelo cristianismo no Ocidente nos últimos séculos.

Ouro de Tolo Chinês

Foto: Juventude (2017)

Uma das músicas mais emblemáticas de Raul Seixas é “Ouro de Tolo”, onde ele questiona a ascensão do poder de compra da classe média em meio ao Milagre Econômico Brasileiro do Regime Militar (1969-1975). “Eu devia estar contente” repete em todas as estrofes em que reconhece o acesso à remuneração e bens de consumo, a despeito do sentimento de incômodo não especificado pela música. Apenas uma sensação de vazio.

“Juventude” de certa forma evoca o mesmo sentimento. Em alguns sites especializados, li que o filme pretendia desconstruir a noção de extrema inocência e devoção absoluta dos jovens chineses da década de 1970 inserindo questões juvenis na trama: bullying, romance e inseguranças geralmente ausentes nas produções culturais da época. Noção, aliás, que não apenas choca na China contemporânea, como igualmente os viajantes brasileiros menos politizados que a visitaram na década de 1970 (Henfil e Heloneida Studart)2. Contudo, ao mesmo tempo que o filme explora a contradição entre o ambiente ultrapolitizado da juventude chinesa às “questões juvenis atemporais” – individuais -, ele também, ao longo da passagem de tempo, explora, ainda que indiretamente, a contradição entre a juventude abnegada e frugal no período de Mao com a luta pela sobrevivência individual e os pequenos luxos da era de Deng Xiaoping.

Apesar de todo “progresso” do presente e todo sofrimento passado pelas personagens no passado, parece faltar algo. O enriquecer, antes glorioso, parece fútil e desprovido de espírito. O filme não critica diretamente o Partido Comunista Chinês, mas é evidente o desentusiasmo com que mostra as roupas de estilo ocidentais e os ”transformers” nas mãos da criança e ultrajante – mesmo para o espectador ocidental –  a cena em que Feng Liu, herói de guerra, ex-”soldado modelo” e inválido é enxotado como um cão pelos policiais na delegacia, que destoam daquilo que a propaganda oficial e oficiosa trás das “Reformas Chinesas”.


Esse texto expressa a opinião do autor.

Notas:

  1.  Guerra entre a República Popular da China e a República Socialista do Vietnã em 1979 que tem sua causa no alinhamento vietnamita à URSS após o fim da sua guerra contra os EUA. Enquanto no período do Grande Debate, Ho Chi Minh e seus sucessores haviam manifestado uma política centrista, “lamentado a desunião” no Bloco Socialista e recebendo apoio de ambas as potências contra a invasão ianque, após sua derrota o Vietnã não apenas pende ao lado da URSS, importando seus produtos industrializados e exportando bens primários (café, arroz), como passou a atuar em defesa de seus interesses no Sudeste Asiático. Como reflexo deste alinhamento em dezembro de 1978 os vietnamitas invadem o Kampuchea Democrático, que desenvolvia uma revolução, em que pese vários desvios e idiossincrasias que não são assunto deste artigo, não alinhada à URSS e com alguma inspiração na experiência chinesa, e no mês seguinte, janeiro de 1979, conquistam sua capital Phnom Penh, instituindo o regime títere de da República Popular do Kampuchea, enquanto nas selvas e montanhas no Exército Nacional do Kampuchea Democrático se manteve fazendo guerrilhas.  Em resposta, a China – no momento em que Deng Xiaoping já se consolidava no poder, mas ainda não havia começado a maior parte de suas reformas – declarou guerra ao Vietnã buscando dissuadir o governo vietnamita assim como o da URSS de agirem no Sudeste Asiático. A guerra durou um mês entre janeiro e fevereiro. Sem nenhum resultado conclusivo para ambos os lados, a China recuou suas forças do território vietnamita – mantendo algum apoio aos guerrilheiros de Pol Pot por mais alguns anos. ↩︎
  2. Não apenas na China da década de 1970, como na Coreia do Norte, e em menor intensidade, nas obras da China contemporânea e Coreia do Sul, é perceptível para nós Latino-Americanos (ou ocidentais) uma incômoda inocência e entusiasmo por parte de seus jovens. Heloneida Studart e suas companheiras de viagem bem que tentaram arrancar dos chineses narrações suas de peripécias sexuais e Henfil ficava bastante incomodado com as manifestações de devoção na arte e jornalismo chineses, contrapondo o jornalismo à propaganda – ignorando que o jornalismo ocidental é bem propagandístico também. Partindo apenas de minha experiência com a cultura oriental, creio que tal pureza seja característica de sua cultura, evidente também romances água-com-açúcar do K-Drama. elevada pelo entusiasmo das experiências de libertação nacional e socialista. ↩︎
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