Foto: Chico Ribeiro /Governo MT
Desde julho, o Pantanal enfrenta o seu pior desastre socioambiental, superando a cada dia o recorde de focos de incêndio mensal desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) deu início a essa série histórica, em 1998. Durante o mês de setembro, houve 8.106 focos de queimada registrados no bioma, dispersos pelos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, onde foram destruídos, respectivamente, pelo menos 117 mil e 25 mil hectares do bioma.
Segundo investigações realizadas por agências de jornalismo investigativo e pela Polícia Federal (PF), em ambos os estados os responsáveis apontados pelo início dos incêndios criminosos foram latifundiários, a maioria ligada à pecuária, com o intuito de abrir caminho para a grilagem e roubo de terras públicas, de camponeses em luta pela terra, camponeses pobres e de indígenas.
No MS, investigações conduzidas pela PF concluíram que os incêndios foram provocados com o objetivo de abrir áreas de pastagem a partir da destruição da vegetação. Segundo elas, as queimadas tiveram início em quatro latifúndios no município de Corumbá (MS): Califórnia, que pertence a Hussein Ghandour Neto e tem mais de 1,7 mil hectares; Campo Dania, pertencente a Pery Miranda Filho e sua mãe, Dania Tereza Sulzer Miranda, que tem mais de 3 mil hectares; São Miguel, de posse titular de Antônio Carlos Leite de Barros e que tem mais de 33,8 mil hectares; e Bonsucesso, de Ivanildo da Cunha Miranda, com mais de 32,1 mil hectares.
No dia 14/09, quando dez mandados de busca e apreensão foram cumpridos pela Operação “Matáá” da PF, o latifundiário Pery Miranda Filho foi preso em flagrante, após armas e munições serem encontrados na sua casa, em Corumbá: duas pistolas, um revólver, 108 munições de uso permitido e 44 de uso restrito. No entanto, ele logo foi liberado após pagar a fiança.
Já no MT, informações veiculadas pela Repórter Brasil evidenciam que os incêndios no estado tiveram início em cinco latifúndios localizados no município de Poconé, a 104 quilômetros da capital Cuiabá. Duas das propriedades identificadas pertencem a pecuaristas que vendem gado para empresas da linhagem de latifundiários Maggi (Amaggi e Bom Futuro), que fornecem para multinacionais como a JBS, Marfrig e Minerva.
A Amaggi pertence a Blairo Maggi (PP), ex-ministro da Agricultura na gerência de Michel Temer e ex-governador do MT, enquanto o grupo Bom Futuro é de Eraí Maggi, considerado o maior produtor de soja do mundo. A família possui ao menos dez propriedades de grande porte no MT e fez fortuna com a produção de soja dentro de área de Amazônia Legal, além de outros commodities, energia e logística.
Dentre essas cinco grandes fazendas identificadas pela Repórter Brasil, uma delas é a fazenda Comitiva, de propriedade do paulista Raimundo Cardoso Costa, onde foram registrados 171 focos de queimada e uma área superior a 25,1 mil hectares de destruição. Esse mesmo latifundiário é dono de outra fazenda, vizinha à Comitiva, a Recanto das Onças, de onde foram vendidas cabeças de gado para o grupo Bom Futuro, dos Maggi.
Outra fazenda localizada no mesmo município de onde também tiveram início os incêndios pantaneiros se chama Espírito Santo, de José Sebastião Gomes da Silva, onde foram identificados pelo menos 73 focos de incêndio, responsáveis por queimar mais de 14,2 mil hectares. Gomes da Silva também é proprietário da fazenda Formosa, outra fornecedora da Amaggi Pecuária, do grupo Amaggi.
INDÍGENAS E CAMPONESES DENUNCIAM AMEAÇAS DE GRILAGEM CONTRA SUAS TERRAS
Os mais prejudicados pelos incêndios foram as famílias de camponeses pobres, os pequenos produtores, as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas que vivem na região, que são os principais alvos dos latifundiários responsáveis pelo início do fogo, visando arrasar terras públicas, em sua maioria devolutas e historicamente ocupadas, para consolidar processos de roubo e grilagem. Em centenas de casos relatados, eles viram suas casas e plantações serem cercadas e destruídas pelo fogo, e muitos adoeceram e tiveram problemas respiratórios em decorrência da fumaça tóxica.
No dia 18/09, por exemplo, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e o Fórum de Direitos Humanos e da Terra, ambos do MT, publicaram uma nota em que denunciam o grileiro Marcello Bassan de ter provocado um incêndio em terras da União em busca de expulsar famílias de camponeses pobres do Acampamento Boa Esperança, um pré-Assentamento localizado na Gleba Nhandú, no município de Novo Mundo (MT), onde mais de 100 famílias vivem e resistem há quase duas décadas.
A nota afirma que, segundo os camponeses, o fogo “veio da sede da Fazenda Araúna em direção ao pré-Assentamento e queimou praticamente tudo”, referindo-se ao terreno ocupado por Bassan, que, segundo os camponeses, já perpetrou ataques similares “com apoio e conivência do Estado”, como em 2015, quando ateou fogo em 80 casas das famílias.
Outro grupo profundamente impactado pelo fogo foram os residentes das Terras Indígenas (TI), nas quais mais de metade do território já foi tomado pelos incêndios, segundo um levantamento feito pela Agência Pública. Tendo como base dados do Inpe, ele expôs que, seguindo a lógica das queimadas anteriores, as que atingiram as TIs também começaram em grandes propriedades privadas.
De acordo com a Pública, os indígenas Bororo da TI Tereza Cristina, onde os incêndios cercaram três aldeias e levaram uma liderança para o hospital, contam que o fogo começou fora do Pantanal, próximo ao município de Rondonópolis (MT), uma região de intensiva produção de soja, algodão e milho. A TI do Xingu, no nordeste de MT, onde vivem mais de 7 mil pessoas de 16 etnias diferentes, é a que mais sofreu com as queimadas até o momento, tendo mais de 102,9 mil hectares destruídos pelas chamas, segundo o Instituto Centro de Vida (ICV).
latifúndio prepara novos ataques contra a região
A partir de tudo isso exposto, fica evidente que, como de praxe, os incêndios que vêm devastando os biomas e meios de vida e subsistência do povo brasileiro são obra dessa instituição que forma a base do atraso do Brasil, o latifúndio, e não dos “caboclos e índios” em busca de “ampliar seus roçados”, como disse o fascista Bolsonaro no seu discurso de abertura da Assembleia Geral da “Organização das Nações Unidas” (ONU).
Agora, no dia 5 de novembro, dando continuidade ao projeto de “passar a boiada” referido pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, Bolsonaro decretou que a mesma região afetada pelos incêndios no Centro-Oeste, incluindo o Pantanal e a Bacia do Alto Paraguai, está liberada para o plantio de cana-de-açúcar.
Essa decisão revoga o Decreto 6.961, de setembro de 2009, em que fora instituído um zoneamento para o plantio da cana e as operações de financiamento ao setor sucroalcooleiro no Brasil, criado para limitar a expansão da fronteira agrícola sobre o Pantanal, a Amazônia e áreas voltadas para a produção alimentícia.
Junto de Bolsonaro, assinaram o decreto a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, a “musa do veneno”, e o ministro da Economia, banqueiro Paulo Guedes.
A liberação do plantio de cana nas bordas da Amazônia é uma antiga cobiça do latifúndio no Brasil. Com a expansão da lavoura de cana, a pecuária, que é a ocupação tradicionalmente utilizada na fronteira, forçando-a a avançar, será empurrada para novas áreas, estimulando a devastação da floresta e a violência contra as populações locais, incluindo os milhares de camponeses pobres e sem-terra na região, que possui um histórico sangrento de luta pela terra. Isso também fará atiçar os camponeses a resistir e impulsionar ainda mais a luta pela terra e contra o latifúndio na região.
Brigadistas tentam combater as chamas na região de Sorriso no Norte do Mato Grosso. Foto: Mayke Toscano / Secom-MT