Segundo o Instituto Trata Brasil, a Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda que uma pessoa necessita de 110 litros de água diários para suas necessidades básicas: como tomar banho, lavar roupas, lavar pratos e beber. Este é o volume mínimo diário para manter a saúde e a dignidade da pessoa, segundo esta organização. Segundo o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), por sua vez, a Transposição do Rio São Francisco visa levar água para cerca de 12 milhões de pessoas na porção setentrional do Nordeste, no Semiárido brasileiro.
Caso fosse garantir 110 litros de água diários para 12 milhões de pessoas, o volume de água necessário aduzido nos canais da Transposição deveria ser de 1.320.000 metros cúbicos de água por dia. Todavia, a vazão máxima da Transposição do Rio São Francisco está dimensionada em 10.972.800 metros cúbicos por dia. Assim, o volume de água necessário para abastecer 12 milhões de pessoas representa apenas 12,03% da vazão diária máxima da Transposição. Isto significa que os canais da Transposição foram dimensionados para aduzir um volume de água cerca de 8 vezes maior do que a demanda efetiva da população beneficiada.
Fica então a pergunta: quem está sendo beneficiado com o volume de água excedente da Transposição? As evidências apontam que há um beneficiário oculto, que não foi revelado publicamente no discurso do governo, mas que se beneficia diretamente do projeto. Este beneficiário se aproveitou da justa demanda da população sertaneja para atender aos seus próprios interesses. Quem é ele? É o latifúndio. Sim, o latifúndio é o principal beneficiário da Transposição. Ele se beneficia tanto da garantia hídrica para a realização da agricultura irrigada nas bacias receptoras do Projeto, quanto do uso direto da água aduzida.
Em uma entrevista dada ainda em 2010, para o Instituto Humanitas Unisinos (IHU), João Suassuna, reconhecido pesquisador sobre o rio São Francisco, diz que: “Do jeito que está sendo construída, ela [a Transposição] está sendo orientada ou divulgada para resolver o problema de abastecimento do povo. Futuramente, quando o povo começar a raciocinar no sentido de as águas do São Francisco estarem sendo utilizadas para o agronegócio, e não para o abastecimento, haverá uma espécie de revolta popular no nordeste.” Nesta mesma linha, o já falecido Aziz Ab’Saber, outro grande pesquisador da temática, em um artigo de análise crítica da Transposição do São Francisco, publicado na Revista da USP, em 2006, revelou que: “Tudo [estava] levando a crer que [a Transposição é] um projeto certamente eleitoreiro e desenvolvimentista [que] somente vai atender a fazendeiros […] da beira alta de alguns vales […]”.
E isto se confirma plenamente hoje em dia, pois a Transposição do Rio São Francisco tem beneficiado grandes propriedades rurais, isto é, o dito agronegócio no Nordeste setentrional, conforme previram os pesquisadores citados. Embora o projeto tenha sido justificado como uma solução para a escassez hídrica que afeta a população do Semiárido, na prática, boa parte da água aduzida tem sido utilizada para irrigação em latifúndios e empreendimentos agrícolas da região. Sem o aporte das águas da Transposição, a realização desta produção seria inviável, isto porque não haveria garantia de suprimento hídrico para tal produção.
No Rio Grande do Norte, no vale do rio Piranhas-Açu, rio receptor do eixo norte da Transposição, existe uma forte produção de frutas irrigadas para exportação, como a produção de melões e bananas. No Ceará, por sua vez, as águas do Projeto beneficiam a produção latifundiária, como a produção de milho e até mesmo de soja irrigados, na chapada do Apodi. Na Paraíba, o latifúndio realiza uma agricultura irrigada em nível comercial viabilizada pelo aporte das águas da Transposição no sistema Acauã-Araçagi. Segundo o monopólio de imprensa G1, este sistema permite a irrigação de 16 mil hectares.
Usando como justificativa a justa demanda por água dos sertanejos, os governos de turno que se seguiram desde 2007 – ano do início das obras da Transposição -, como os governos de Luiz Inácio e Dilma, além de Temer e Bolsonaro, construíram a Transposição em benefício do latifúndio, embora usando o argumento da escassez de água na região. Este projeto serve, principalmente, à classe dos latifundiários, ao contrário do que diz a propaganda governamental, que propala que a obra visa garantir segurança hídrica para a população sertaneja, isto porque a maior parte da água aduzida nos canais vai para o latifúndio, não para o abastecimento da população local.