Sem mencionar a greve nacional dos motoristas de aplicativo entre os dias 31 de março e 1° de abril e nem as exigências da mobilização, o presidente Luiz Inácio (PT), propôs, em reunião com o reacionário presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), que está pensando em criar uma linha de financiamento para que os entregadores consigam comprar motocicletas. A medida, se concretizada, não tocará nem na superfície da exploração que esses trabalhadores passam.
Durante a mobilização nacional que atingiu pelo menos 58 cidades, os motoristas de aplicativo denunciaram o modelo de trabalho para as plataformas como iFood, 99 Entrega e Uber como “escravidão moderna” e exigiram o pagamento mínimo de R$ 10 por entrega e de R$ 2,50 por quilômetro (km) rodado, o estabelecimento de um limite de 3 kms para entregas e bicicleta e o fim do agrupamento de entregas sem a devida compensação. O agrupamento é quando o motorista realiza mais de uma entrega na mesma via, mas só recebe por uma delas.
Exploração ignorada
A proposta de Luiz Inácio, além de não tocar em nenhum desses pontos, ignora o modelo de violenta exploração ao qual os motoristas de aplicativo são submetidos. O caso dos motoristas que alugam veículos em vez de terem motos ou bicicletas próprias é só um adendo nessa exploração. Os motoristas que têm automóveis possuem, concretamente, um instrumento de trabalho que não é o mais importante deste modelo, visto que são os softwares das grandes empresas e o capital neles investido os instrumentos centrais do serviço. Afinal, um motorista com um veículo alugado pode, ao entrar na cadeia de distribuição do iFood, gerar tanta renda quanto um motorista que tem a própria moto; contudo, um motorista com automóvel próprio não pode, sem acesso ao software das empresas monopolistas, fazer o mesmo.
O que ocorre é que, uma vez submetidos ao regime de trabalho das megaempresas, os motoristas trabalham de forma que a maior taxa do produto por corrida é apropriada pelo monopólio como um trabalho excedente. Os custos do burguês com a manutenção do aplicativo são mínimos quando comparados ao lucro total extraído da exploração alheia. No caso dos motoristas, contudo, eles precisam dividir a pequeníssima parte que lhes é entregue entre a manutenção de um dos instrumentos de trabalho (o automóvel) e até de aspectos da sua reprodução que em outros modelos são arcados pela empresa (a alimentação, já que não há vale-refeição).
Sob o tacão das grandes empresas, os motoristas de aplicativo cumprem uma jornada exaustiva dentro de um quadro horário estipulado pelas grandes empresas por meio de “bônus” e “recompensas” em determinadas horas do dia. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicada em outubro de 2023 comprovou que os motoristas de aplicativo trabalham 46 horas por semana, acima da jornada média de 39,5 horas semanais dos trabalhadores em geral. Além disso, a pesquisa revelou que os trabalhadores de aplicativo recebem R$ 13,30 por hora de trabalho, abaixo da média de R$ 14,60 por hora trabalhada.
Eles não podem confrontar esse modelo pela própria “autonomia”, uma vez que a empresa tem todo o direito de rebaixá-los no sistema de notas, ou entregar-lhes menos corridas, caso não se sujeitem ao que é imposto. A mesma pesquisa do IBGE registrou que 63,2% dos trabalhadores escolhem seus horários de acordo com incentivos, bônus e promoções da empresa, e 42,3% destes dizem escolher esses horários por razões de ameaças de punições ou bloqueios por parte das megaempresas.
Assim, a compra do automóvel mantém toda essa exploração e, no máximo, substitui o custo do aluguel do veículo pelo custo de reprodução do veículo (avarias, manutenção, IPVA e outros). Isso, fora os juros do parcelamento, visto que atualmente a taxa básica de juros no País está em exorbitantes 14,25%.
‘Fracasso retumbante’
A medida cosmética não é uma grande surpresa. Em 2023, o grupo de trabalho montado por Luiz Inácio também ignorou exigências dos trabalhadores, não previu vínculo trabalhista, não regularizou o vale-refeição e não resolveu questões básicas para os motoristas de entrega de alimentos, pois concentrou-se no transporte de pessoas.
Por isso, lideranças como Nicolas Souza Santos, da Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora, descrevem o grupo de trabalho como um “fracasso retumbante”, conforme falado a uma entrevista ao Intercept publicada no dia 31/3. A entrevista levanta pontos interessantes: segundo Santos, os motoristas levaram “12 pontos para serem discutidos”, mas “não passamos do primeiro”. Ele comenta ainda que a proposta das empresas foi enviada “meia hora antes, cinco minutos antes de eles distribuírem as propostas deles. Como que isso permitia uma análise séria para que a gente pudesse colocar nossas posições? E tudo isso o governo deixando”.
Criticando a lógica de “regularização” da precarização que foi emplacada pelo governo, Souza questiona: “Que diabos seria um autônomo com direitos? Direito à previdência? Isso não é direito, eu estou pagando. Qual o sentido? E como é que isso é colocado como questão prioritária? Pode ser para o governo, mas para mim não é.“
Apesar de revoltante, a postura do governo não decepcionou Santos, que já não esperava nada da atual gestão. “O Jô Soares tinha uma frase muito boa nesse sentido que era: de onde não se espera nada, daí é que não sai nada mesmo. Decepcionado, eu não estou.”
Por outro lado, as greves e as mobilizações combativas dos motoristas de aplicativo já se mostraram como um meio concreto para conquistar vitórias. Em 2022, uma paralisação do iFood forçou a empresa a ajustar as taxas por entrega. Não houve correção depois disso, mas o caminho ficou marcado como uma forma de arrancar exigências das grandes empresas.