Luta pela terra avança no Sertão Pernambucano-Paraibano contra a pistolagem e o latifúndio

Camponeses reocupam área improdutiva no sertão pernambucano no abril vermelho de 2024. Foto: MST/PE

Luta pela terra avança no Sertão Pernambucano-Paraibano contra a pistolagem e o latifúndio

O sertão entre Pernambuco e Paraíba é um dos grandes palcos da luta pela terra no País. Neste ano, 11 ocupações, que mobilizaram cerca de 5 mil famílias, foram realizadas em Pernambuco durante o Abril Vermelho promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Um mês antes, no dia 24 de março de 2024, o corpo de José Roberto da Rocha foi encontrado carbonizado próximo a uma área do acampamento Orlando Bernardino, configurando assim o quarto ativista do MST assassinado na região, em crimes muito possivelmente vinculados aos latifundiários que atuam pela grilagem e pela pistolagem na região. 

Essa violência na região, típica de um conflito armado não declarado, não é de hoje, e tem raízes profundas que datam da origem do latifúndio e da grilagem na região. De acordo com dados de geoprocessamento do Incra, essa região possui vastas áreas em situação de grandes posses autodeclaradas. Todo esse território sob o impasse da autodeclaração cria um ambiente com todas as condições para o latifúndio e seus grupos paramilitares investirem na violência característica de um dos muitos aspectos da semifeudalidade. 

É possível perceber também que a maior parte dos territórios da região são caracterizadas por esse tipo de posse, demonstrando o avanço da grilagem de terras na Zona da Mata e que, boa parte dessas terras, destinam-se ao monocultivo da cana-de-açúcar. Essa região é dominada pelo latifúndio da sua forma mais atrasada possível, no mesmo molde de produção importado pela invasão européia. Sendo uma das principais produtoras de cana-de-açúcar do Nordeste e utilizando-se de um sistema de exploração do trabalho camponês característico da face mais escancarada da semifeudalidade.  

Essas terras da Zona da Mata da Paraíba e de Pernambuco são em grande parte fruto da expansão da fronteira agrícola latifundiária (na grande maioria dos casos de maneira ilegal) com o patrocínio ou conivência do velho Estado burocrático-latifundiário. São territórios tão imensos que um único latifúndio supera o tamanho em km² da metade dos municípios dos dois Estados. 

Dentro de toda essa região, o município de Alhandra, na Paraíba, é característico do processo, e tem nos últimos anos concentrado lutas camponesas e crimes de pistolagem em acampamentos como o Acampamento Dom José Maria Pires, erguido no latifúndio improdutivo da Fazenda Garapú. 

A origem do latifúndio em Alhandra

A violência como forma de dominação no território de Alhandra, na Zona da Mata paraibana, tem origem no ato de sua “fundação”, que foi a partir do aldeamento jesuíta de “Arataguy”, com várias etnias indígenas sequestradas pelos invasores e submetidos ao processo de aculturamento contra os povos originários, negando-lhe a liberdade, religiosidade, seus nomes, línguas, etc.

Com o fim da podridão dos aldeamentos, o território de Alhandra, categorizado pelo império escravocrata-feudal como Vila, tinha uma população predominantemente indígena ou descendente dos povos indígenas. Alhandra é ainda um dos berços da religião de matriz afro-indígena Jurema Sagrada, que considera a cidade como um dos “portais encantados”.

A fazenda Garapú tem sua origem ainda na época do Império escravocrata-feudal brasileiro. Em 1866 a fazenda já se evidenciava como um dos maiores latifúndios da região, impulsionado pela lei de terras de 1850, enquanto tinha (e tem) em sua vizinhança diversos territórios quilombolas e indígenas, povos guerreiros que não se curvaram à exploração do latifúndio.

Esse histórico de grilagem com patrocínio do Estado às custas dos camponeses e povos indígenas segue até hoje. Originalmente a área de 10,2 mil hectares da fazenda Garapu havia sido destinada para a reforma agrária na década de 1970, mas grandes empresários e latifundiários responsáveis pelo atraso como o “Grupo João Santos”, de Pernambuco, representado por empresas como a Cimentos Nassau e a Agrimex (e mais 45 outras grandes empresas)  passaram a invadir e grilar as terras da reforma agrária para o monocultivo de bambu. 

Em julho de 2017, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou uma jornada de ocupações no município de Alhandra com o objetivo de retomar as terras invadidas pelo latifúndio. Em uma das primeiras áreas ocupadas formou-se o Acampamento Dom José Maria Pires. Atualmente o acampamento conta com 350 famílias em luta pela Reforma Agrária.

Um ano e quatro meses depois, o latifúndio deu uma resposta clara: Orlando da Silva, dirigente do MST na região e Rodrigo Celestino, coordenador do acampamento, foram assassinados no dia 8 de dezembro de 2018 por pistoleiros do latifúndio encapuzados e fortemente armados. Tudo isso enquanto Orlando e Rodrigo jantavam no acampamento. Orlando não foi o primeiro da sua família a ser vítima do latifúndio. O seu irmão, Odilon Bernardo da Silva, que era militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) foi assassinado em uma emboscada no ano de 2009 na cidade de Aroeiras (PB).

O modus operandi da ação que matou Orlando e Rodrigo foi típico da pistolagem que atua com vínculo estreito da Polícia Militar (PM). Quando os quatro assassinos chegaram no acampamento, já durante a noite, pegaram várias famílias de surpresa e anunciaram que se tratava de uma “operação da polícia”. 

E como é recorrente em casos como esse, a polícia nunca se prestou a resolver o caso. Na época, os inquéritos policiais afirmam que a motivação foi uma disputa entre os camponeses do MST e empresários da construção civil que estavam extraindo terra na área do acampamento de forma ilegal. Após quase sete anos o inquérito está inconcluso. 

Há lacunas que ficam explícitas no processo e não foram devidamente explicadas. Por exemplo, o crime foi cometido por quatro homens encapuzados que não foram identificados. Entre os presos estão Rawlinson Bezerra de Lima, apontado como mandante intelectual, além de Maria de Fátima Santos Freitas e Leandro Soares da Silva. Até hoje não está claro o papel dos dois últimos no assassinato.

As investigações também tentaram tergiversar a natureza do crime como algo associado à pistolagem e aos conflitos pela terra: a delegada da Polícia Civil, Roberta Neiva chegou a afirmar que o crime não teria nenhuma ligação com a atuação dos militantes do movimento, que a motivação teria sido meramente pessoal entre os assassinos e as lideranças do movimento. A afirmação contradiz completamente o que dizem familiares das vítimas e acampados do MST e serve apenas para alimentar ainda mais a impunidade a favor daqueles que violentam quem luta pela terra no Brasil.

De acordo com uma matéria do Repórter Brasil, o irmão de Orlando e seu filho relatam que, antes do crime, já havia o temor sobre o assassinado dos companheiros e afirmam que a motivação é política, principalmente pela atuação dos dois na defesa da luta pela terra.

Se o caso deixou claro para os camponeses que os crimes da pistolagem não seriam punidos, o recado para o latifúndio foi o inverso: os crimes dos grandes fazendeiros podem ocorrer livremente. E assim foi, não só com os assassinatos. Em 2021, o MPF apresentou cinco denúncias contra o Grupo João Santos, mas somente três anos depois 26 integrantes do conglomerado viriam a tornar-se réus soba a cusação de lavagem de dinheiro e organização criminosa. Acontece que já estavam basicamente inocentados: o Estado brasileiro fechou em 2023 o maior acordo de recuperação judicial da história deste velho Estado, com o objetivo de “regularizar” R$10,7 bilhões em dívidas tributárias e trabalhistas.

O aumento da violência contra camponeses na Paraíba e Pernambuco

Um outro acampamento, nomeado em homenagem a Orlando Bernardino, faz parte da expansão das ocupações de terras no Estado da Paraíba nos últimos anos. A área é um pré-assentamento e também está localizada em Alhandra, em uma área próxima do Acampamento Dom José Maria Pires. 

Contra esses acampamentos, a violência reacionária do latifúndio é feroz. Além do assassinato de José Roberto da Rocha em março desse ano, e de Orlando e Rodrigo em 2018, outros crimes da pistolagem acumulam-se pela região. Em 2022 o camponês Severino Bernardo da Silva, conhecido como Suzy, foi torturado e assassinado no Acampamento Wanderley Caixe, em Pedras de Fogo, vizinho ao município de Alhandra. Já no final de 2023, dois militantes do Movimento foram assassinados em Princesa Isabel, cidade do sertão paraibano. 

Aldecy Viturino Barros e Ana Paula estavam fazendo reparos no telhado de uma casa do acampamento quando foram alvejados por dois homens armados. Dias antes havia sido registrado o assasinato do camponês Josimar da Silva Pereira, em Vitória de Santo Antão, zona da mata pernambucana, enquanto o mesmo se dirigia à plantação de arroz para cumprir a tarefa de irrigação.

Apesar das tentativas de intimidação, a luta pela terra avança na região

Mesmo com as diversas tentativas de intimidar os camponeses organizados em Pernambuco e na Paraíba, a luta pela terra segue avançando nesses Estados. De 2017 para cá, diversas áreas improdutivas em todas as regiões dos Estados têm sido ocupadas por camponeses.

O surgimento de novos acampamentos vem sendo impulsionada desde então. Os camponeses não estão se intimidando e vem ampliando a luta pela terra e enfrentando o latifúndio, se organizando e buscando formas de se protegerem.

Na madrugada do dia 19 de abril, cerca de 100 famílias camponesas organizadas pelo MST ocuparam uma área de 500 hectares da Embrapa em Patos, no alto sertão paraibano, sendo uma das 11 ocupações que ocorreram no mês na região, associadas ao Abril Vermelho. 

Enquanto isso, destaca-se o aumento da combatividade das organizações camponesas que atuam na região, sinal dos ecos dos chamados de organizações como a Liga dos Camponeses Pobres, que convocam os camponeses a organizarem-se de forma cada vez mais elevada no combate aos bandos pistoleiros e ao latifúndio, como parte da Revolução Agrária em curso no País. 

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