O indígena do povo Ka’apor, Kwaxipuhu Ka’apor, 32 anos, morador da Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu (Norte do Maranhão), foi encontrado morto, no dia 3 de julho. Seu corpo foi abandonado e encontrado por indígenas apenas no início da noite em um ramal (estrada vicinal) com vários sinais de espancamento. O crime brutal aconteceu no município de Centro do Guilherme, distante cerca de 300 quilômetros de São Luís, Maranhão. A motivação, segundo suspeitam os indígenas, é a disputa pelo território e a ganância do latifúndio e de grileiros.
Povo Ka’apor leva corpo de ‘parente’ assassinado. Foto: Comitê AND Manaus
Em nota a Associação Indígena Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi relata a morte de mais um “parente”, afirma que não pôde nem mesmo ser socorrido e denuncia a negligência do velho Estado e todos seus órgãos com o longo histórico de conflitos na TI Alto Turiaçu. Ao final da nota, a Associação exige não apenas a investigação e punição aos responsáveis pelo assassinato, mas medidas no combate aos madeireiros, latifundiários e ao tráfico de entorpecentes na região que continuam atuando na pandemia de Covid-19.
A TI Alto Turiaçu teve sua demarcação homologada em 1982 pela Fundação Nacional do Índio (Funai), contudo, alguns estudos apontam que o povo Ka’apor vive na região desde 1870 e sempre foi considerado pelo velho Estado brasileiro como um dos povos mais hostis devido às suas ações de resistência. A região é atualmente a maior TI demarcada do Maranhão, além disso faz fronteira com a Reserva Gurupi, TI Alto Rio Guamá no Pará e com a TI Awá no Maranhão.
A partir da década de 1980, as invasões da TI se intensificam. Entre os invasores estão madeireiros em busca da chamada “madeira de lei”, espécies com alto valor de mercado exportadas principalmente para o Estados Unidos (USA), Europa e Ásia. O latifúndio também atua na região por meio da produção de arroz e, mais recentemente, da soja, assim como o próprio Estado que, além da negligência, realiza também a transformação de algumas áreas no entorno da TI em cidades, fomentando o conflito com os povos indígenas.
Kwaxipuhu Ka’apor, 32 anos, morador da Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu, encontrado morto com sinais de espancamento. Foto: Comitê AND Manaus
Caixão com corpo de Kwaxipuhu Ka’apor. Foto: Comitê AND Manaus
FUNAI trabalha a serviço do latifúndio
O povo Ka’apor denuncia que, por volta dos anos 1980, funcionários da Funai começaram a incentivar a venda de madeira da TI Alto Turiaçu, principalmente ipê, maçaranduba e jatobá que possuem alto valor de mercado. “A Funai falou que não tinha recurso também, e que nós tinha madeira muito apreendida. ‘Vamos vender essa madeira pra conseguir um dinheiro pra doar pra vocês.’ Então assim começou. Muitos indígenas não queriam, só os caciques queriam negociar a venda de madeira” (sic), afirmou Osmar Ka’apor, integrante do Conselho de Gestão Ka’apor que atua na TI, em entrevista ao portal Agência Pública.
Diante desse cenário, o povo Ka’apor se organizou e, desde então, avança no seu plano de defesa do seu território e, concomitante a isso, rapidamente os casos de mortes violentas aumentaram.
Em 2010, o jovem Hubinet Ka’apor foi espancado com pauladas até a morte em Centro do Guilherme. Em 2011, Tazirã Ka’apor foi assassinado por um caminhão madeireiro. O boletim de ocorrência policial registrado por um enfermeiro da saúde indígena no município de Zé Doca foi alterado para afirmar que ocorreu “latrocínio”, roubo seguido de morte.
Os povos indígenas denunciam que poucos meses depois desse assassinato a aldeia Turizinho foi invadida por cerca de 60 madeireiros, que agiam principalmente em Centro do Guilherme, outro município próximo da TI. Nessa invasão eles sequestraram a adolescente Iraúna Ka’apor. Ainda de acordo com a reportagem ao portal, até 2018 ela ainda não havia sido encontrada.
Em abril de 2015, o agente indígena de saneamento, Eusébio Ka’apor, da aldeia Xiborendá, localizada na TI Alto Turiaçu também foi assassinado de maneira covarde. Dois homens encapuzados abordaram seu veículo e o alvejaram com um tiro nas costas. Já em 2016, Sairá Ka’apor foi assassinado em um bar durante um discussão envolvendo madeireiros e indígenas. De acordo com Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o indígena foi enterrado sem a realização da perícia.
Mesmo diante desse cenário os povos indígenas continuam resistindo. “Ali no Maranhão, o problema é a invasão das terras indígenas feita pelos madeireiros. As terras dos Ka’apor já estão demarcadas e homologadas. A briga ali é com os madeireiros, que tentam invadir o espaço demarcado para explorar o local. O ambiente é de conflito ali e os povos estão fazendo a resistência”, afirma Osmar Ka’apor.
Ka’apor em ações de resistência contra invasores. Foto: Lunaé Parracho
Cansados das promessas do Velho Estado povos indígenas se organizam
No ano de 2013 o povo Ka’apor formou um conselho de gestão com seus membros escolhidos apenas entre o povo. Em conjunto foi criado outro conselho com lideranças para atuar na educação, saúde, assistência social e segurança. O povo denuncia que a organização política em cacicados foi uma imposição da Funai, ou seja, nunca fez parte da sua cultura.
Inicialmente os indígenas identificaram e mapearam todos os pontos de invasão. Em reunião com vários órgãos do velho Estado, foi realizada a entrega desse levantamento. Ao final da reunião os diversos órgãos federais e estaduais assinaram um termo de compromisso.
Contudo, as invasões continuaram acontecendo, assim como os assassinatos dos indígenas; até hoje nenhum dos assassinatos teve investigação concluída, muito menos seus mandantes presos. Em apenas 3 anos da organização do conselho gestor, no período entre 2013 e 2016, foram fechados 14 ramais antes abertos pelos madeireiros, e cerca de 100 caminhões utilizados no transporte de madeira foram presos e incendiados pela comissão de segurança da TI.
Também no ano de 2013 o povo Ka’apor realizou ações de identificação e reavivamento dos limites da TI e, durante essa ação, houve a expulsão de invasores e a prisão por três dias na TI de um madeireiro influente da região. Houve também apreensão por parte dos indígenas de armas, tratores e caminhões nas proximidades da divisa com o Pará. Após esse período, o madeireiro foi entregue aos órgãos de segurança do velho Estado. Rapidamente ele foi solto pelo delegado de polícia, que também contou com a colaboração dos servidores da Funai do município de Santa Luzia do Paruám, no Maranhão, apesar de todas as provas da invasão ilegal da TI.
Foram realizadas também ações contra o consumo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas que chegavam principalmente por meio dos madeireiros como uma ferramenta para facilitar ainda mais a invasão da TI.
No mesmo ano alguns dos ramais que foram fechados se tornaram aldeias para a formação de um “cinturão” de proteção da TI, relata Sarapó Ka’apor, um dos fundadores da aldeia Ywyãhurenda. “Área de proteção a gente fez porque a gente não quer acabar com a nossa floresta, né? A gente reuniu tudinho, junto com o conselho. Aí a gente juntou tudinho e tirou os madeireiros tudinho. Ninguém esperou a Funai, só nós mesmo.”
Assista aos vídeos: