Mulheres que tiveram filhos mortos pela polícia desmascaram ‘autoridades’ e buscam justiça
Ainda esse ano, precisamente em 20 de junho de 2018, mais uma mãe vivenciou o assassinato do seu filho pelo braço armado do velho Estado. Marcos Vinícius, de 14 anos, estudante da rede pública de ensino foi executado por agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope) de dentro de um blindado, durante uma operação na Favela da Maré, Rio de Janeiro. Essa mãe é Bruna Silva, auxiliar de Serviços Gerais. Assim como Bruna, diversas mães partilham a comum experiência de terem seus filhos assassinados a sangue frio por agentes militares em serviço.
Gláucia dos Santos é mãe de Fabrício dos Santos, um jovem de apenas 19 anos, negro, morador da comunidade carioca Complexo do Chapadão. Fabrício foi assassinado covardemente pelo 14º Batalhão da Polícia Militar (PM) que, inclusive, não são responsáveis por aquela região. Ele foi atingido por um disparo de grosso calibre (762) na testa, sem direito a defesa. O fato ocorreu na madrugada da virada do ano de 2013 para 2014, enquanto Fabrício simplesmente calibrava o pneu de uma moto no Posto de Gasolina Camboatá, localizado no Complexo do Chapadão, Rio de Janeiro.
Segundo relatos de um funcionário que trabalhava no posto (que deseja não ser identificado) e das filmagens das câmeras de segurança do estabelecimento, um dos policiais que estava na viatura desceu e revistou Fabrício, não encontrando nada. Subitamente, o outro que estava no carro simplesmente lançou um disparo de fuzil contra a cabeça do jovem, que morreu na hora.
Em maio do mesmo ano de 2014 outra mãe vivenciou a perda de seu filho. Ana Paula teve seu filho, Johnatha Lima, um jovem negro, de 19 anos, assassinado durante uma ronda da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade em que moravam, Manguinhos, no Rio de Janeiro. Johnatha estava indo deixar sua namorada em casa e acabou passando pelo local da ronda. Segundo os populares, os policiais são conhecidos por sua truculência e agressividade contra os moradores e, quando Johnatha passou, ocorria uma acalorada discussão entre policiais e moradores que teve como resultado um tiroteio generalizado protagonizado pela PM, acertando Johnatha nas costas.
O jovem obteve hemorragia local, dando entrada na UPA de Manguinhos, porém não resistiu aos ferimentos. O fato ocorreu em 14 de maio de 2014, por volta das 15 horas e 30 minutos. Em entrevista para o jornal A Nova Democracia a mãe de Johnatha relata que os policiais se retiraram do local após o crime sem nenhum constrangimento.
Outra família atingida pela violência do Estado exige justiça em frente ao Tribunal de Justiça, no fim de outubro.
‘Auto de resistência’ forjado
No mesmo dia do crime contra a vida de Johnatha os parentes se dirigiram para a 21º Delegacia de Polícia para efetuar o boletim de ocorrência e os policiais que assassinaram o jovem já estavam no local forjando o fato para que se atribuísse um auto de resistência.
— Para esses policiais não basta apenas matar, exterminar quem eles quiserem quando entram na favela, também tem que criminalizar. O caso de Johnatha só não foi registrado como “auto de resistência” porque meu cunhado chegou a tempo para realizar a abertura do boletim de ocorrência contra o homicídio efetuado — conta Ana Paula. — É muito comum os policiais assassinarem jovens inocentes nas favelas, que não possuem passagens pela polícia e que também não resistem durante a ação policial, chegando na delegacia qualificando-o como auto de resistência. Eles fazem isso porque estão certos da impunidade — indigna-se.
Matar, ocultar e ser premiado
Rafael Camilo Neris era entregador de pizza e transportador da editora de livros Azougue, tinha 23 anos e era filho de Lúcia Neris. Rafael foi executado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) em 28 de junho de 2015, enquanto entregava pizzas na comunidade em que morava, Morro da Coroa, Rio Comprido.
Rafael, a princípio, sofreu quatro disparos, dois em cada perna. Segundo relatos de Lúcia Neris para o jornal A Nova Democracia, ele ficou deitado no chão agonizando por socorro, que lhe foi negado. Policiais não permitiram que moradores chegassem ao local para ajudá-lo. Naturalmente o povo rebelou-se, imediatamente após a ocasião, e realizou um protesto.
Em busca do filho, seu Alberto chegou ao local do crime. Lá, os policiais ocultaram a presença de qualquer ferido no local, indicando que Alberto procurasse seu filho no Hospital Souza Aguiar. Ao chegar no Hospital e aguardar um tempo considerável, seu Alberto soube pela recepção da unidade que nenhuma vítima com o nome do seu filho havia dado entrada.
— Alberto voltou para a comunidade e encontrou na viela o tênis do nosso filho sujo de sangue e os policiais insistiram em afirmar que não havia nenhum ferido no local. Os vizinhos afirmaram terem ouvido Rafael pedir socorro, por conta dos ferimentos. Os moradores tentaram novamente socorrê-lo só que os policiais os expulsaram atirando para o alto — declarou Lúcia, mãe de Rafael, ao AND.
— Testemunhas disseram que os policiais afirmaram que iriam “terminar o trabalho”, todos foram obrigados a se retirar e logo depois ouviram-se mais tiros, que foram os que executaram Rafael. Foram mais três tiros disparados à queima roupa. Em seguida, os policiais retiraram a camiseta, o tênis e o casaco de Rafael, que ficou sem suas roupas e sem seus documentos, já morto no local, com um revólver deixado ao seu lado — denuncia a mãe.
— Meu filho sempre foi um trabalhador e é muito complicado ter que lidar com a imagem negativa que tentam transparecer dele, de que era bandido. Ele foi assassinado em serviço, trabalhando honestamente — indignou-se.
Os policiais recebem ainda a conivência das diversas esferas do velho Estado ao seu modus operandi.
— No dia da reconstituição do crime, que inclusive só foi realizado três dias depois, um dos policiais acusados de cometer o crime ficou debochando, rindo de mim, disse que só estavam fazendo a reconstituição porque tinha que constar e que aquilo ali não ia dar em nada — narrou Lúcia.
— O rapaz que foi acusado de ceifar a vida de meu filho foi promovido no Bope, agora ele comanda toda a operação no Rio de Janeiro que o Bope realiza, ou seja, o rapaz mata inocente e é promovido por isso. No mesmo mês que o policial matou Rafael, ele matou um outro rapaz com condições sociais parecidas com a do meu filho na comunidade do Fallet, Rio Comprido, Rio de Janeiro. Além de outros crimes esse mesmo policial matou mais dois rapazes a pancada, batendo a cabeça destes no chão, lá no Morro da Coroa. Os policiais fazem o que querem, pois eles sabem que não vai acontecer nada com eles, o Estado é conivente com isso, premia eles por matarem os filhos do povo — protestou Lúcia.
— São poucos os casos em que policiais do Bope vão presos, foi com muita resistência e luta que foi possível colocar um policial do Bope no banco dos réus, pois a tendência do Estado e do judiciário, do Ministério Público é lavar as mãos, fazer vista grossa para esses casos, arquivando — denunciou.
Marcos Vinícius, um adolescente de 14 anos morador da comunidade da Maré e estudante da rede municipal pública de ensino, saiu de casa às 8 da manhã do dia 20 de junho de 2018 para ir a escola. Minutos após o blindado aéreo da PM sobrevoa a região iniciando sua guerra contra as massas, disparando contra a população que saía para trabalhar e estudar. Ao voltar para a casa com um amigo de escola, Marcos Vinícius foi alvejado nas costas por um disparo de fuzil do blindado.
Nesse dia, o velho Estado mobilizou o Bope, Exército, Polícia Cívil e Militar cujo saldo foi a bárbara chacina de sete pessoas que não apresentaram nenhum indício de resistência e não possuíam ligação com o tráfico de drogas, incluindo o jovem Marcos Vinícius.
Bruna Silva, mãe do estudante assassinado, denunciou que os policiais foram advertidos por moradores antes de executarem o estudante: “Uma moça me disse que gritou: ‘não atira, é uma criança, ele está com roupa de escola’. Só que eles não ligaram e atiraram”, lamentou Bruna. Policiais ainda impediram a ambulância de socorrê-lo. Segundo testemunhas, os policiais que balearam o menino nem mesmo desembarcaram do blindado após o crime.
Em entrevista ao AND, o doutor João Tancredo, que advoga em defesa da mãe de Marcos Vinícius, relata as arbitrariedades cometidas no dia da Operação.
— Marcos Vinicius foi baleado nas costas dentro da favela, o local onde ele foi morto estava fechado. O Bope fecha as vias principais para impedir a circulação e porque também não quer que os moradores fiquem filmando a truculência, não querem que vejam. No dia dessa operação foram presos quatro rapazes que estavam apenas filmando, foram presos por associação ao tráfico só porque estavam filmando uma ação de um agente público. Isso é um pesadelo completo — narrou.
No dia 7 de julho a Polícia Civil entregou um relatório para a Defensoria Pública e o Ministério Público Estadual em referência à tal Operação que resultou na chacina. No documento, os policiais civis classificaram como “exitosa” a Operação, desconsiderando o terror despejado contra moradores pelas tropas do Estado e, em especial, a letalidade da ação contra massas desarmadas.
Bruna ainda sofreu perseguição, no fim de julho deste ano, por denunciar a morte de seu filho e por resistir contra a política de extermínio dos filhos do povo. O fato ocorreu quando Bruna estava indo buscar jornalistas do El País que iam entrevistá-la em sua residência.
— No apartamento onde seis rapazes foram assassinados, todos os seis foram executados deitados de bruço, tinha tiros nos corredores, no chão. Crime típico de execução. Os militares adentraram a Maré na intenção de efetuar um mandato de prisão de 20 pessoas e dessas não encontraram nenhuma, mas resolveram matar sete — questiona Tancredo.
— Presenciei a casa de um trabalhador saqueada: comida e aparelhos eletroeletrônicos. Sua esposa estava toda machucada, pois os policiais a jogaram da escada. O Estado vê os moradores da favela como sub-cidadãos, pessoas sem direito, com apenas obrigações, sub-raça. O Estado não quer garantir a vida dessas pessoas, tratam com barbaridade, executando-as — denuncia.
Ante o extermínio, mães apontam o caminho da luta
— A resistência e a denúncia são nossas únicas vozes, porque se depender das autoridades morremos a míngua. As mães devem estar cada vez mais unidas para ecoar um só grito por justiça. Temos que resistir, pois o Estado nos trata com descaso para que desistamos. O Estado mata e quer que as famílias se calem , mas nada há de calar o meu grito por justiça — afirmou Lúcia.
— No dia do sepultamento de Rafael o governador disse que receberia a família para ouvir o que aconteceu e no dia da recepção no Palácio Guanabara o mesmo não nos atendeu. Só após muita insistência nossa o assessor do governador marcou uma nova data para um mês depois, mas chegando lá novamente o governador não nos recebeu — contou ela, indignada com o descaso.
Dentre as mães que encontraram a luta por justiça e dignidade à memória de seus filhos, Lúcia não é a única a identificar que não há justiça por parte do velho Estado.
— Eu não me conformei com a ideia de aceitar que o assassinato do meu filho não ia dar em nada e que isso deveria ficar por isso mesmo, porque para mim isso seria o mesmo que ser conivente com o crime. Eu saí do luto e fui para a luta. Busquei respostas, orientação e também a imagem do posto de gasolina onde meu filho foi morto, divulguei para a imprensa, colei cartazes, mobilizei atos, fui na delegacia, fiquei em cima do caso até que foi marcado o julgamento — contou Gláucia.
— No dia do julgamento eu encontrei outras mães e a partir dali não me senti mais sozinha, compreendi que meu filho e outros filhos mortos têm voz. E realmente se deixar para lá não dá em nada, pois nesse Estado fascista e racista o pobre não tem vez, negro não tem vez. Eles acharam que iam me calar. O Estado matou o Fabrício, mas não calou o meu filho porque eu ainda falo por ele. Só através da organização das mães podemos denunciar essa barbárie que o Estado faz contra o povo pobre, negro e favelado. Se não fosse nossos protestos, realmente não daria em nada. Esse Estado não vai me parar, eu não dou nem um passo atrás. Fabrício presente! Nossos mortos têm voz e tem mãe! — disparou Gláucia, emocionada.
Bruna, mãe de Marcos Vinícius, também encontrou seu caminho.
— A minha luta é por justiça. Eles não podem me coagir. A minha luta é pelo meu filho, minha filha, pelas crianças da minha comunidade. A minha luta é a luta de todos. Eu estou representando aquele povo da Maré que não tem voz. Foi o estado do Rio de Janeiro que assassinou meu filho com essa intervenção. Quanto mais me oprimirem, mais eu vou falar. O sangue do meu filho pede justiça. A minha luta é essa e eu não vou me calar. Eu não vou parar. A gente quer o fim dessa polícia assassina, chega desse Estado genocida! — protestou Bruna