Rodolfo Walsh foi oficial de inteligência, e um dos responsáveis pelo setor de imprensa, da organização político-militar Montoneros entre 1973 e 1977. Havia militado anteriormente na FAP (Forças Armadas Peronistas) – que veio a se fundir com Montoneros ao final de 72. Eram organizações políticas que reivindicavam o peronismo combatente atrelado às bases sindicais e, de forma mais ampla, às lutas políticas e sociais das camadas populares. Anteriormente, ao final dos anos 60, Rodolfo foi o responsável pela organização do Semanário da CGT de los Argentinos, central sindical combatente que rechaçava os acordos de cúpula da burocracia sindical que se ocupava das outras centrais de organização dos trabalhadores. Eram os anos do Vandorismo, como mais tarde, serão os anos do Ruccismo, modo de expressar o peleguismo sindical atrelado às políticas de Estado e aos seus governos de turno, inclusive aos projetos da ditadura de segurança nacional entre os anos de 1966-73 que massacrava os trabalhadores para dar prosseguimento às políticas de transferência de recursos, os ajustes fiscais, ao setor financeiro e exportador, ao grande Capital monopolista internacional/nacional, assim como a incipiente industrialização mantida sob o regime da hiper exploração das relações de trabalho.
Rodolfo Walsh era escritor e periodista. Foi com seu livro-reportagem Operação Massacre que se criou o gênero de não-ficção (ficção periodística) atribuído, por ignorância e desfaçatez disseminadas pelas trampas culturais, a Truman Capote com seu A Sangue Frio, publicado uma década depois do livro de Rodolfo W. Operação Massacre foi publicado em 1957 e A Sangue Frio, em 1966. Rodolfo escreveu outros dois livros de periodismo combativo e militante: Caso Satanowski e Quien Mató a Rosendo? (este último a denunciar as patotas assassinas a serviço dos interesses espúrios da burocracia sindical argentina aos anos 60). Escreveu também livros de contos policiais (e é uma das referências no que diz respeito ao tema em América Latina): Variacciones en Rojo; Un Kilo de Oro; Los Ofícios Terrestres e Un Oscuro día de justicia. Seu conto Esa Mujer é considerado o melhor conto da literatura argentina.
Em tempos de inverno – no que se experimenta a miséria sórdida e vendilhona do que se autointitula como ‘Imprensa livre’, refiro-me de forma mais extensa ao lobismo dos grandes meios de comunicação (empresariais, publicitários, cartelistas), e ao padrão de jornalismo (sic) que desde aí se referência como paradigma de formação e atuação, ter acesso à obra de Rodolfo Walsh é como um bálsamo revitalizante, no que a força expressiva da palavra se entrelaça com sua função militante, combativa, revolucionária. Rodolfo é expressão viva de que o jornalismo caminha a léguas e léguas, a distância infinita, e sobretudo, na contramão dos que, comumente, e de forma torpe, se autodefendem sob o preceito da liberdade de imprensa – por trás do qual, fazem operar a máquina preventiva, regular e contínua dos golpes de Estado, ou a desfaçatez publicitária que justifica e referenda as tramoias do capitalismo de saqueio.
As duas cartas abaixo, traduzidas por mim são cartas de 1976, uma, CARTA a VICKI, escrita sob o impacto da morte de Maria Victoria Walsh, sua filha e Oficial militante na Organização Político-militar Montoneros, em setembro daquele ano, e outra, CARTA a MEUS AMIGOS, escrita três meses depois, em dezembro, na qual se dirige aos seus amigos, ou aos companheiros que são – em última instância – todos aqueles que de algum modo inscrevem-se às lutas na que Walsh esteve. Lutas que remontam àqueles anos, lutas que remetem aos anos de depois, aos dias do agora, e aos que virão.
Em 25 de março de 1977, Rodolfo Walsh foi assassinado em um confronto com um Grupo de Tarefas da Escuela Mecánica de la Armada (ESMA), um dos principais campos de concentração e extermínio da última das ditaduras civis (empresariais) militares na Argentina, de onde desapareceram cerca de 5.000 pessoas. Rodolfo morreu em combate. Trazia consigo algumas cópias de sua Carta de um escritor a Junta Militar, documento analítico-crítico-denunciador das violações dos direitos fundamentais e do projeto econômico levado a cabo pelos que tomaram a si, sob pretexto de ordenamento, os rumos da Argentina em 24 de março de 76. Depois, sabemos, será o claustro de larga noite. Noite larguíssima que sabemos, ou deveríamos saber, experimentamos. Num anteontem de décadas a um agora agorinha que se alastra.
São palavras de Rodolfo: “O campo do intelectual é por definição a consciência. Um intelectual que não compreende o que passa em seu tempo e em seu país é uma contradição andante, e o que compreendendo não atua terá um lugar na antologia do pranto, porém não na história viva de sua terra”
Carta a Vicki
Querida Vicki. A notícia de tua morte me chegou hoje às 3 da tarde. Estávamos em reunião… quando começaram a transmitir o comunicado. Escutei teu nome, mal pronunciado, e demorei um segundo em assimilá-lo. Maquinalmente comecei a benzer-me como quando era criança. Não terminei este gesto. O mundo esteve parado este segundo. Depois disse a Mariana e a Pablo: Era minha filha. Suspendi a reunião.
Estou aturdido. Muitas vezes o temia. Pensava que era excessiva sorte o não ser golpeado quando tantos outros o são. Sim, tive medo por ti, como tiveste medo por mim, ainda que não disséssemos. Agora o medo é aflição. Sei muito bem por que coisas tens vivido, combatido. Estou orgulhoso dessas coisas. Me quiseste, te quis. O dia que te mataram completavas 26 anos. Os últimos foram muito duros para ti. Gostaria de ver-te sorrir uma vez mais.
Não poderei despedir-me, tu sabes o porquê. Nós morremos perseguidos, na obscuridade. O verdadeiro cemitério é a memória. Aí te guardo, te embalo, te celebro e, talvez, te inveje, querida minha.
————-
Falei com tua mãe. Está orgulhosa em sua dor, segura de ter entendido tua curta, dura e maravilhosa vida.
Ontem, tive um pesadelo torrencial no que havia uma coluna de fogo, poderosa, porém contida em seus limites, que brotava de alguma profundidade.
Hoje, no trem, um homem dizia: Sofro muito. Quisera deitar-me a dormir e despertar dentro de um ano.
Falava por ele, porém também por mim.
Carta aos meus amigos
Hoje completam três meses da morte de minha filha. Maria Victoria, depois de um combate com as forças do Exército. Sei que a maioria daqueles que a conheceram a choraram. Outros, que me tem sido amigos ou que me conhecem há muito, quiseram me fazer chegar uma voz de consolo. Dirijo-me a eles para agradecer-lhes, porém também para explicar-lhes como morreu Vicki e pelo que morreu.
O comunicado do Exército que publicaram os diários não difere demasiado, neste caso, dos fatos. Efetivamente, Vicki era oficial 2º da Organização Montoneros, responsável da imprensa sindical, e seu nome de guerra era Hilda. Efetivamente estava reunida nesse dia com quatro membros da Secretaria Política que combateram e morreram com ela.
A forma em que ingressou a Montoneros não a conheço em detalhe. À idade de 22 anos, idade de seu provável ingresso, se distinguia por suas decisões firmes e claras. Por essa época começou a trabalhar no diário La Opinión e em um tempo muito curto se converteu em periodista. O periodismo em si não lhe interessava. Seus companheiros a elegeram delegada sindical. Como tal, teve que enfrentar um conflito difícil com o diretor do diário, Jacob Timerman, a quem desprezava profundamente. O conflito foi superado, porém, quando Timerman começou a denunciar como guerrilheiros a seus próprios periodistas, ela pediu licença e não voltou mais.
Foi militar em uma favela. Era seu primeiro contato com a pobreza extrema em cujo nome combatia. Saiu desta experiência convertida a um ascetismo que impressionava. Seu marido, Emiliano Costa, foi detido no início de 1975 e não o viu mais. A filha de ambos nasceu pouco depois. O último ano de minha filha foi muito duro. O sentido do dever a levou a relegar toda gratificação individual, a empenhar-se muito além de suas forças físicas. Como tantos jovens que num repente se tornaram adultos, andou aos saltos, mudando de casa em casa. Não se queixava. Apenas seu sorriso é que se tornara mais raro. Nas últimas semanas, vários de seus companheiros foram mortos; não pode se deter a chorá-los. Embargava-lhe uma terrível urgência em criar meios de comunicação na frente sindical, que era sua responsabilidade. Nos víamos uma vez por semana; cada quinze dias. Eram encontros curtos, caminhando, pelas ruas, talvez dez minutos em um banco de uma praça. Fazíamos planos de viver juntos, para ter uma casa onde falar, recordar, estar juntos em silêncio. Pressentíamos, todavia, que isso não ia acontecer, que um desses fugazes encontros ia ser o último, e nos despedíamos simulando valentia, consolando-nos da antecipada perda.
Minha filha estava disposta a não se entregar com vida. Era uma decisão pensada, refletida. Conhecia, através de uma infinidade de testemunhos, o trato que dispensam os militares àqueles que tem a desgraça de cair prisioneiros: o esfolamento em vida, a mutilação dos membros, a tortura sem limites no tempo e no método, que procura ao mesmo tempo a degradação moral e a delação. Sabia perfeitamente que a uma guerra com estas características, o pecado não era falar, senão ser capturado. Levava sempre consigo uma pastilha de cianureto – a mesma com a que se matou nosso amigo Paco Urondo – com a que tantos outros tem obtido uma última vitória sobre a barbárie.
Em 28 de setembro, quando entrou na casa da Rua Corro, completava 26 anos. Levava em seus braços sua filha porque, a um último instante, não encontrou com quem deixá-la. Se deitou com ela, vestida somente com um camisão. Usava uns absurdos camisões brancos que lhe pareciam imensos.
Às 7 horas do dia 29, despertou-se com os megafones do Exército, os primeiros tiros. Seguindo o plano de defesa combinado, subiu ao terraço com o Secretário Político (de Montoneros) Molina, enquanto Coronel, Salame e Beltrán respondiam ao fogo no primeiro andar. Vi a cena com seus olhos: o terraço sobre as casas de apenas um andar, o céu amanhecendo, e o cerco. O cerco de 150 homens, a brigada posicionada, o tanque. Chegou-me o testemunho de um desses homens, um alistado.
“O combate durou mais de uma hora e meia. Um homem e uma moça atiravam de cima. Nos chamou atenção a moça, porque a cada vez que atirava uma rajada e nos abaixávamos, ela ria”.
Busquei compreender este riso. A metralhadora era uma Fálcon e minha filha nunca havia atirado com ela embora conhecesse o seu manejo das aulas de instrução. As coisas novas, surpreendentes, sempre a fizeram rir. Sem dúvida era novo e surpreendente para ela que ante um simples toque de dedo brotasse uma rajada, e que ante essa rajada 150 homens se jogassem no chão, começando pelo Coronel Roualdes, chefe da Operação.
Aos caminhões e ao tanque, somou-se um helicóptero que girava ao redor do terraço, contido pelo fogo.
“Logo – disse o soldado – se fez silêncio. A moça largou a metralhadora, se colocou de pé sobre o parapeito e abriu os braços. Paramos de atirar sem que ninguém o ordenasse e podemos vê-la bem. Era magrinha, tinha o cabelo curto e estava vestida de camisão. Começou a nos falar em voz alta, porém muito tranquila. Não recordo tudo o que disse. Porém recordo a última frase; em realidade não me deixa dormir. Disse: ‘Vocês não nos matam. Nós escolhemos morrer‘. Então ela e o homem levaram uma pistola à têmpora e se mataram diante de todos nós”.
No andar de baixo, já não havia resistência. O Coronel abriu a porta e lançou uma granada. Depois entraram os oficiais. Encontraram um bebê de algo mais do que um ano sentadinha na cama, e cinco cadáveres.
No tempo transcorrido tenho refletido sobre essa morte. Me tenho perguntado se minha filha, se todos os que morrem como ela, teriam outro caminho. A resposta brota desde o mais profundo de meu coração e quero que meus amigos a conheça. Vicky podia escolher outros caminhos que eram distintos sem ser desonrosos, porém o que elegeu era o mais justo, o mais generoso, o mais razoável. Sua lúcida morte é uma síntese da sua curta e bela vida. Não viveu para si, viveu para outros, e esses outros são milhares.
Sua morte sim, sua morte foi gloriosamente sua, e nesse orgulho me afirmo e sou quem renasce dela.
Isto é o que eu queria dizer aos meus amigos e o que eu desejaria que eles transmitissem a outros pelos meios e modos que sua bondade lhes dispuser.
Rodolfo Walsh