110 anos de Os Sertões

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110 anos de Os Sertões

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Típica casa de pau-a-pique do arraial

I

O sertão brasileiro é tema de nossa literatura desde sempre: basta lembrarmos que grande parte da obra de José de Alencar se passa nesse mundo, e que o escritor cearense tem até um livro intitulado O Sertanejo. Já na república, outro grande escritor, o mineiro Afonso Arinos, falecido em 1916 (não confundir com o outro, Afonso Arinos de Melo Franco, seu sobrinho, político e também escritor), nos deu uma série de contos e novelas “sertanejas”. Seu livro mais conhecido intitula-se mesmo Pelo Sertão, mas há outros, inclusive um romance chamado Os Jagunços, em ele que trata de Canudos antes de Os Sertões de Euclides da Cunha, já que o romance foi publicado em 1898 e conta a história do erguimento e derrocada da cidade de Antonio Conselheiro. Ao que tudo indica Arinos, que era monarquista, usou as reportagens que Euclides da Cunha publicou no jornal O Estado de São Paulo como inspiração para sua obra.

Euclides da Cunha, porém, é a referência obrigatória quando se trata do tema. Sua obra maior, Os Sertões, é de gênero indefinível. Não é romance nem, propriamente, um ensaio histórico; trata-se, antes, de uma análise sócio-antropológica cuja grande qualidade literária a fez ser incorporada ao nosso patrimônio como um de seus pontos altos.

Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em 20 de janeiro de 1866, na Fazenda Saudade, na região serrana do vale do Paraíba do Sul, província do Rio de Janeiro. Morreu assassinado, em 15 de agosto de 1909, no Rio de Janeiro. Era o filho primogênito do contador Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e de sua esposa Eudóxia Alves Moreira. Do lado paterno, era neto de traficante de escravos, e do materno, de fazendeiro de café na região em que nasceu.

Órfão de mãe aos dois anos de idade, Euclides teve uma vida infeliz e agitada, ponteada por dissabores pessoais que culminaram em seu assassinato pelo amante de sua mulher, o cadete Dilermando de Assis. Homem franco, incapaz de ocultar suas opiniões, viveu sempre em conflito com patrões e superiores. Por isso, estava sempre de mudança, em um movimento contínuo, que culminou com a viagem para a Amazônia, onde permaneceu um ano para, na volta, encontrar a esposa grávida de Dilermando.

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Crianças e mulheres prisioneiras da guerra de Canudos

Desde jovem, Euclides demonstrou que não havia vindo ao mundo para atravessar burocraticamente a vida. Sempre defendeu suas posições com arrojo, sem se poupar e levar em conta os próprios interesses. Assim, defendeu a república no período monárquico, sendo, por isso, expulso da Escola Militar. No período republicano, já reintegrado ao exército, lutou, sempre, por uma sociedade mais justa. No episódio da Revolta da Armada apoiou Floriano Peixoto e lutou contra os revoltosos, até que se tornaram públicas as execuções sumárias de prisioneiros. Solicitou, então, uma audiência com o presidente para, destemidamente, pedir garantia de vida para seu sogro, o general Sólon, que estava preso por suspeita de apoiar a revolta. É claro que com essa atitude ganhou a antipatia do Marechal de Ferro e foi prejudicado nas suas pretensões profissionais.

No episódio de Canudos, sua atitude não foi menos corajosa. Correspondente do jornal O Estado de São Paulo, foi para a Bahia com a impressão – veiculada na imprensa e bem de acordo com os interesses dos militares, vergonhosamente derrotados nas primeiras expedições enviadas contra Canudos – de que os jagunços de Antonio Conselheiro eram mais fortes, mais bem organizados e melhor armados que o exército nacional, e representavam séria ameaça à ordem republicana, pois seriam financiados por membros da família imperial e um grupo britânico, conjuntamente interessados em restaurar a monarquia no Brasil. No teatro das operações, horrorizado com a desnecessária violência da repressão aos revoltosos e a disparidade de forças entre os sertanejos, armados com armas brancas e armas de fogo totalmente obsoletas, e as forças oficiais, que supriram sua incapacidade tática e estratégica com uma violência feroz, mudou totalmente de posição. Em sua grande obra, Os Sertões, essa mudança fica patente e o escritor faz, explicitamente, a denúncia das atrocidades.

No final de sua vida, entre 1906 e 1909, ano de sua morte, o escritor trabalhou com o barão do Rio Branco, então ministro das Relações Exteriores. Em 15 de julho de 1909, após ter sido classificado em segundo lugar no concurso para provimento da cadeira de Lógica do Colégio Pedro II, foi nomeado professor daquele estabelecimento de ensino. Nesse mesmo dia deu-se sua morte. Não pôde gozar dos benefícios de uma situação estável, rara em sua vida agitada. Sua glória apenas começava. Sua obra permanece, mais de cem anos após seu desaparecimento, como um esteio de nossa cultura.

II
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Euclides da Cunha

Euclides da Cunha viveu numa época em que profundas transformações ocorreram na sociedade brasileira. As mais importantes foram a Abolição, em 1888, e o advento da República em 1889. Seu caráter impressionável e sua personalidade flamejante não poderiam deixar de se influenciar por esses acontecimentos e pelas inflamadas discussões que os cercaram. Sua obra é, destarte, um retrato do momento perigoso em que viveu e de sua participação ativa nos acontecimentos coetâneos. Não é de se admirar, portanto, que ela tenha sido escrita, em sua maior parte, para os jornais, no calor do momento.

Gilberto Freyre, em ensaio que se tornou célebre, chamou Euclides da Cunha de “revelador da realidade brasileira”, pela sua inestimável contribuição para nossos estudos histórico-sociais. De fato, essa denominação se ajusta como uma luva ao papel que Euclides teve em nossas letras. Educado no positivismo da Escola Militar, o escritor, sem abandonar essa ideologia formadora, evoluiu até se declarar um adepto do socialismo marxista no artigo Um velho problema, publicado n’O Estado de São Paulo em 1º de maio de 1904.

Sua obra prima, Os Sertões, provocou, desde sua publicação, grande impacto, e teve defensores e críticos ferozes. Entregue às livrarias em 2 de dezembro de 1902, foi objeto, já no dia seguinte, de célebre artigo de José Veríssimo publicado no Correio da Manhã. Nele, Veríssimo faz o elogio do conteúdo do livro, mas critica o rebuscamento da linguagem. Em sua resposta ao articulista, Euclides defende sua opção estética de usar um vocabulário científico, em uma aliança entre ciência e literatura. Nos dias 1º e 2 de janeiro de 1903, O Estado de São Paulo publicou a entusiástica apreciação crítica de Coelho Neto. Essas foram as primeiras de um grande número de publicações sobre a obra, que não cessaram até nossos dias.

Como já foi dito, é interessante acentuar que o autor de Os Sertões foi para a Bahia com uma impressão sobre Canudos e voltou com outra inteiramente diferente. Para a região do conflito foi o jornalista republicano, preocupado com a ameaça ao regime representada pelos revoltosos, tidos como monarquistas. Voltou de lá o escritor maduro, impressionado com a disparidade de meios entre as forças oficiais e as do arraial e com a bárbara e desnecessária matança, que culminou com a cruel degola dos prisioneiros. Essa mudança indica a sensibilidade social do escritor e sua sincera preocupação com os destinos do povo brasileiro. Não podemos deixar de assinalar, porém, que Euclides foi um homem de seu tempo, com vários dos preconceitos de sua época, inclusive os de raça, e adepto de uma supervalorização da ciência. Esses preconceitos estão presentes em toda a sua obra e não a desvalorizam absolutamente, apenas a inserem em seu devido contexto histórico-cultural.

Tão importante quanto sua contribuição de “revelador da realidade brasileira” é a inovação estilística do escritor. Também segundo Gilberto Freyre, o estilo euclidiano é:

… difícil, ouriçado de adjetivos que antes o afastam que o aproximam do leitor moderno. (…)

A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente, transpôs para a arte de escrever o viver perigosamente de que falava Nietzsche. Escreveu num estilo não só barroco – esplendidamente barroco – como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos mortais de extremos de má eloquência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico.

Tal análise, com pequenas modificações, principalmente no que diz respeito à eloquência, se ajustaria perfeitamente ao estilo de outro gênio de nossas letras, Guimarães Rosa. Este, por sua vez lembra, no texto Pé-duro, chapéu-de-couro, do livro póstumo Ave, Palavra, o papel de Euclides no reconhecimento do sertanejo como tipo fundamental brasileiro:

Todavia, foi Euclides quem tirou à luz o vaqueiro, em primeiro plano e como o essencial do quadro – não mais mero paisagístico, mas ecológico – onde ele exerce a sua existência e pelas próprias dimensões funcionais sobressai. Em Os Sertões, o mestiço limpo adestrado na guarda dos bovinos assomou, inteiro, e ocupou em relevo o centro do livro, como se de sua superfície, já estatuado, dissesse de se desprender. E as páginas, essas, rodaram voz, ensinando-nos o vaqueiro, sua estampa intensa, seu código e currículo, sua história rude.
Daí, porém, se encerrava o círculo.
Não tinha de ser como se os últimos vaqueiros reais houvessem morrido no assalto final a Canudos. Sabiam-se, mas distanciados, no espaço menos que no tempo, que nem mitificados, diluídos.
O que ressurtira, flôo de repuxo, propondo-se voto pragmático, revirou no liso de lago literário.
Densas, contudo, respiravam no sertão as suas pessoas dramáticas, dominando e sofrendo as paragens em que sua estirpe se diferenciou.
E tinha encerro e rumo o que Euclides comunicava em seus superlativos sinceros, na qualidade que melhor lhe cabia dar, nesta nossa descentrada largueza, de extremas misturas humanas, numa incomedida terra de sol e cipós.

Ao tratar do tema sertão de maneira única e extremamente pessoal, Euclides da Cunha nos deixou um valioso e perene retrato do Brasil profundo, da terra e do povo esquecido pelas grandes metrópoles, que vive entregue aos desmandos dos tiranetes locais. Para quem quiser melhor conhecer nosso país com suas contradições e qualidades, podemos afirmar que Os Sertões continua, 110 anos após sua publicação, a ser uma leitura fundamental. Um marco zero dos estudos brasileiros.

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