65 após a morte do mais famoso cangaceiro, pergunta-se: Lampião: bandido ou herói?

65 após a morte do mais famoso cangaceiro, pergunta-se: Lampião: bandido ou herói?

Virgolino e seus cangaceiros viveram num tempo de muita violência, num tempo em que se matava por questões de terra, por nada. Viveu num tempo em que se brigava pelo poder político. Isto é: num tempo parecidíssimo como o nosso, em que vive melhor quem pode mais. O detalhe é que ele era nordestino…

Há 65 anos, precisamente no final da madrugada do dia 28 de julho de 1938, a força policial de Sergipe comandada pelo tenente João Bezerra, mata de emboscada o mais famoso cangaceiro do Nordeste: Lampião, nascido Virgolino Ferreira da Silva no dia 4 de junho de 1898 para uns ou, oficialmente, no dia 7 de julho de 1897. Na ocasião deram-se como mortos, além de Lampião e Maria Bonita, mais nove cangaceiros: Quinta-Feira, Luís Pedro, Mergulhão, Manoel Miguel (Elétrico), Caixa de Fósforo, Enedina, Cajarana, Moeda e Mangueira. Todos foram decapitados, suas cabeças exibidas como troféus em praça pública e por longos anos expostas no museu Nina Rodrigues, em Salvador-BA. O massacre ocorreu na localidade denominada Grota de Angico, distante cerca de 200 quilômetros de Aracaju.

No decorrer deste mês, uma ampla programação lembrará, em várias partes do país, a trajetória do cangaço e o fenômeno que ainda hoje representa o seu rei, Lampião.

Em São Paulo, na estação Brás da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) a programação Um mês de Lampião, como já está sendo chamada, será realizada entre 28 de julho e 28 de agosto. Este evento deverá contar com uma exposição fotográfica, tardes de autógrafos de autores de livros e folhetos de cordel temáticos, declamações e apresentações musicais, além do julgamento promovido por estudantes de Direito com a participação da população de São Paulo. No interior dos trens será tocada uma série de músicas sobre o cangaço, como Mulher rendeira, com o grupo paulistano Demônios da Garoa. Essa música integrou a trilha sonora do filme O Cangaceiro, que teve roteiro de Rachel de Queiroz e direção de Lima Barreto, em 1953, teve Adoniram Barbosa, Vanja Orico, Zé do Norte e Milton Ribeiro no elenco. No decorrer deste mês, Lampião será “julgado” pela população paulista.

Entre 28 de julho e 28 de agosto o Centro Acadêmico Onze de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fará o julgamento — com base na realidade histórica e sócio-econômica brasileira e, em particular, nordestina —, do personagem Virgolino Ferreira da Silva e de seu grupo, como parte da programação Um mês de Lampião.

Cerca de 1 milhão de folhetos será distribuído com a pergunta: “Lampião, bandido ou herói?

No último sábado do mês, dia 26, o programa líder de audiência São Paulo Capital Nordeste, produzido e apresentado há cinco anos na Rádio Capital (AM 1,040/SP) pelo jornalista e estudioso da cultura popular Assis Ângelo, será inteiramente dedicado ao rei do cangaço. O programa que também pode ser acessado pela internet (www.radiocapital.am.br) apresentará depoimentos inéditos de Dadá, mulher do Corisco, Sinhô Pereira, primeiro e único cangaceiro chefe de Lampião e do tenente João Bezerra, todos já falecidos. Participarão também Sila (ex-mulher do cangaceiro Zé Sereno, que escapou do cerco policial de Angico); Maria Expedita e Vera Ferreira, respectivamente, filha e neta de Lampião e Maria Bonita (de batismo Maria Gomes de Oliveira); Maria Ferreira (Dona Mocinha), irmã de Lampião, hoje com 93 anos de idade; e o principal biógrafo do rei do cangaço, Antônio Amaury Correa de Araújo.

Amaury Correa promete revelar fatos inéditos e outros muito pouco conhecidos do grande público até agora. Ele diz, por exemplo, que vários cangaceiros conseguiam entrar nas fileiras policiais, “em São Paulo, inclusive — como Peitica, no começo dos anos 40. Mas também aconteceu de policiais trocarem a farda pelo cangaço, como Caixa de Fósforo, em Alagoas, Serra de Fogo, na Paraíba, e Ricardo Pontaria, em Pernambuco.” Detalhe importante e comprovado, segundo o biógrafo, é que “depois do massacre em Angico, os remanescentes do bando de Lampião jamais praticaram um crime de morte” nos lugares que escolheram para viver, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio, Volta Seca gravou um disco cantando músicas do repertório dos cangaceiros e chegou até a se aposentar pela antiga Companhia Estrada de Ferro Leopoldina. Pois é, acrescenta Amaury, “ninguém nasce bandido, por isso não é de surpreender o fato de cangaceiros, ou de ex-cangaceiros, nos darem exemplo de cidadania.” Para ele, a sema na que está programada em São Paulo para falar de Lampião e discutir a violência nos grandes centros urbanos “é de enorme importância, pois boas surpresas poderão sair daí.”

Amaury Correia tem 53 anos dedicados a pesquisas sobre o cangaço. Em 1976 ele participou, por 12 semanas seguidas, do programa 8 ou 800, da TV Globo, apresentado por Paulo Gracindo, respondendo ao vivo perguntas sobre o cangaço e Lampião. Desistiu na última semana, com boa razão, segundo ele: “Vivíamos ainda no período da ditadura militar e certamente eu seria derrubado, por isso desisti do programa uma semana antes.” Isso, porém, não interferiu nos trabalhos do pesquisador, ainda hoje fonte importantíssima para estudiosos brasileiros e estrangeiros interessados na vida cangaceira de Lampião e seu bando. Amaury foi preso duas vezes, uma delas no DOI-Codi, acusado de repassar armas pesadas a grupos de esquerda do Nordeste.

Autor de vários livros, como Lampião: as mulheres e o cangaço (Traço Editora, 1984), Antônio Amaury Correa de Araújo conta que ainda vivem pelo menos entre 10 e 14 integrantes do extinto bando de Lampião, como Alecrim, Candeeiro, Vinte e Cinco, Barreira, Passarinho e Borboleta, e até as mulheres, como Sila, Dulce, Marina, Antônia e Nininha, “uns na Capital paulista, outros em Campinas e Minas Gerais”.

O cangaço data de pouco tempo depois da chegada dos portugueses ao Brasil, segundo o pesquisador. Mas foi por volta da segunda metade do séc. XVIII, com o enforcamento de Teodósio, Joaquim Gomes e José Gomes, o Cabeleira, no largo das Cinco Pontas, em Recife-PE, e o surgimento logo depois do filho de escravos baianos Lucas da Feira, em Salvador, que o início propriamente dito do cangaço pode melhor ser situado. Depois vieram outros nomes marcantes, como Jesuíno Brilhante, Adolfo Meia-Noite, do sertão pernambucano de Pajeú das Flores, Antônio Silvino e Sinhô Pereira, cujo nome verdadeiro era Sebastião Pereira da Silva. A atuação de Pereira terminou por sua livre vontade em 1922, quando Lampião assume o seu bando e passa a reinar de forma absoluta no Nordeste.

As origens do cangaço estão localizadas nas disputas entre famílias rivais e revoltas políticas no Ceará e em Pernambuco, principalmente.

A máscara da grande violência

Serra Talhada, cidade do sertão pernambucano, é hoje um dos maiores centros de exportação de mão-de-obra do Nordeste. De lá partem diariamente dezenas de migrantes para o Sudeste do país a busca de trabalho e fugindo da exploração do latifúndio.

Menos sorte tiveram os sertanejos do início deste século que, sem ter para onde ir, foram forçados a enfrentar a exploração do latifúndio de armas na mão, em episódios tão fartamente lembrados na literatura e no cinema brasileiros, cujos protagonistas receberam os epítetos de cangaceiros e fanáticos ao invés de camponeses sem terra ou de explorados.

Entre estes camponeses estava Virgulino Ferreira da Silva, que viria a ser conhecido nacionalmente pelo apelido de Lampião.

Se em muitas regiões do Brasil a natureza se apresentava dadivosa, a ponto de receber dos europeus aqui chegados a chancela de paraíso terrestre, no nordeste brasileiro ela mostrou a sua outra face, negando ao homem os mínimos recursos necessários à suja sobrevivência. Euclides da Cunha que, com a sua expressão “o sertanejo é antes de tudo um forte”, transmitiu-nos em bom tamanho esta realidade. Convém destacar que onde as relações entre o homem e a natureza não se davam de forma amistosa, também entre os próprios homens não era, como ainda hoje não é, diferente: a exploração do homem pelo homem é a marca desta relação, onde a contradição semifeudal estabelecida entre latifundiários e os camponeses sem terra ou com pouca terra é mascarada, inocentando o sistema de exploração do povo trabalhador nordestino ao se responsabilizar as inclemências da natureza e abastardar a miséria, a ignorância e a criminalidade.

Lampião entrou para o cangaço para vingar a perseguição do latifúndio contra sua família. Fazendo-se justiceiro, ao seu modo, organizou um bando e com ele passou a fazer frente ao que considerava injusto, atraindo para si a ira dos poderosos coronéis do sertão que, influentes na política, punham o Estado em seu encalço.

Nascido na essência dessa contradição, onde a violência do explorador exigia como resposta a violência do explorado, Lampião exerceu-a de forma inteligente e sagaz. Aos que de forma unilateral acusavam-no, ou ainda o acusam de sanguinolento, é válido lembrar a advertência de Bertolt Brecht quanto à obrigação que temos de observar, primeiro, as margens que oprimem o rio antes de reclamar de sua violência.

É bem provável que se Lampião tivesse nascido alguns anos antes, seguisse Antonio Conselheiro pelos caminhos do sertão até Canudos, ou, se tivesse nascido escravo na velha Roma ao tempo de Spartacus, talvez parceiro desse libertador. Nascido na segunda metade do século passado, provavelmente, seria encontrado liderando uma tomada de terra ou dirigindo um dos movimentos de camponeses sem terra.

Tantos condicionantes servem para entendermos que a guerra dos escravos, as guerras camponesas e o cangaço têm a mesma base: a opressão e a exploração da maioria do povo por um punhado de parasitas.

Lampião era um revoltado e não um revolucionário. Como tal, não tinha uma visão mais ampla da sociedade, circunscrevendo-se o seu mundo ao sertão nordestino, por ele mesmo demarcado quando mandou carta ao governador de Pernambuco propondo que o mesmo tivesse sua circunscrição limitada do litoral a Rio Branco, deixando daí para frente por conta de Lampião e, para isto, não faltavam planos, como tão bem foram expostos por Zabelê, o poeta e sanfoneiro do bando, no famoso poema Para haver paz no sertão.

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