O multi-artista Sérgio Ricardo completou 80 anos em junho último. Ele recebeu AND em sua casa, na favela do Vidigal, para uma conversa sobre sua carreira, sua vida política e seus projetos. O artista, que é músico, cineasta, pintor, ator, diretor e roteirista, fez da arte uma maneira de conversar com o povo e expressar seus anseios por transformações sociais.
Sergio, à esquerda, com Guti Fraga, diretor de Bandeira de Retalhos
AND: Como estão as comemorações dos seus 80 anos?
Sérgio: Está sendo fantástico, não esperava que fossem dar tanta bola para isso. O espetáculo Bandeira de Retalhos está em cartaz e há possibilidade de fazer um filme a partir dele. Outro projeto é continuar, no cinema, o espetáculo da História de João Joana, uma parceria minha com o Drummond, mas que também é complicado porque precisamos de uma Orquestra Sinfônica. Já houve homenagens na Academia Brasileira de Letras, do Ricardo Cravo Albim, em mostras de cinema e vários shows pelo país.
AND: São 63 anos de carreira, na qual você transitou por várias expressões artísticas, o que ainda te falta fazer?
Sérgio: A única coisa que eu não fiz foi dançar balé. Eu não vejo vantagem em fixar-se em uma coisa só. Não estou preocupado com resultados, me preocupo em fazer e por isso estou sempre em ebulição. Gosto de criar e isso acaba gerando uma dispersão artística, mas também é preciso manter um trabalho objetivo e estável.
AND: E em qual das artes você acha que conseguiu manter essa estabilidade?
Sérgio: Foi na música, porque qualquer problema, eu colocava o violão nas costas e fazia meus shows. Na ditadura, minhas músicas foram proibidas, mas isso me deu liberdade para buscar os caminhos cavados pelas minhas mãos. Um deles foi o circuito universitário, que eu inaugurei nos anos 60, e que me deu a possibilidade de viajar fazendo shows com os estudantes. Este talvez tenha sido o momento no qual mais me realizei porque em qualquer lugar os estudantes cantavam as músicas de protesto comigo. No cinema, apesar de gostar muito, fiz poucos filmes porque é uma dedicação que eu não tenho condição de sustentar, é um sofrimento para conseguir financiamento. E são os “patrocinadores” que escolhem os filmes. No meu caso, como eu proponho algo reflexivo, crítico, contra o sistema, é difícil que alguém do sistema patrocine um filme contra ele mesmo.
AND: Pensando nos seus mais de 60 anos de carreira, você poderia escolher uma de suas artes e um momento da sua vida?
Sérgio: O que mais me completa é o cinema, mas é o palco, fazendo música ou teatro, que te dá uma plenitude. Estar no palco junto com seu semelhante na plateia não tem preço.
AND: A política tem sido algo muito presente na sua arte, como você vê ligação entre arte e política, arte e vida?
Sérgio: A arte tem dois segmentos, ou você está nela pra dizer alguma coisa ou para enriquecer. Eu preferi o primeiro caminho. A arte pode ser usada como instrumento superficial para angariar resultados ou para se manifestar a respeito das transformações atuais e daquelas que são necessárias. Fazer arte descartável é um desserviço à sociedade e eu respeito muito meu semelhante para tentar emburrecê-lo com delírios estéticos. Eu não quero convencer ninguém de que a minha arte é bonita ou é feia, eu quero é conversar com meu semelhante.
Bandeira de Retalhos: a arte co(a)ntando a vida
Ana Lúcia Nunes
Nada melhor do que completar 80 anos com um musical emocionante. O grupo teatral Nós do Morro — projeto que existe no Morro do Vidigal há quase 26 anos — presenteou Sérgio Ricardo com a montagem do musical Bandeira de Retalhos. O espetáculo, escrito pelo artista, conta a história da resistência popular à remoção da favela, na década de 70. Sérgio, assim como muitos dos atuais moradores do Vidigal, estiveram à frente dessa luta.
A casa está cheia para receber Bandeira de Retalhos. O público, tomado por um turbilhão de emoções, canta junto aos atores “cala boca, moço”, dança afoxé, sorri das piadas de João da Lua e chora diante da vitória do povo. Participa, como se fosse mais um morador do Morro do Vidigal defendendo sua morada.
Talvez este seja o ponto forte do musical. E não podia ser diferente, já que Sérgio viveu os momentos encenados de perto:
— Eu morei ali, o meu barraco foi marcado para ser derrubado junto com os outros. Então, a partir daí nasceu uma vivência da luta. Eu vivi de perto todo o processo que me levou a concluir nessa obra, e uma coisa que eu descobri foi que sem a união de todos não teria sido possível.
Mas não só Sérgio viveu essa história. Muitos dos atores nasceram e cresceram nas ladeiras do Morro e hoje se sentem orgulhosos em colocá-la em cena:
— O Vidigal está transformado, tem gente que mora aqui e não tem noção dessa história. Nós podermos resgatá-la e mostrar que há pessoas que lutaram e estão aqui até hoje, sem elas o Vidigal não existiria, seria um condomínio de luxo – conta Edson Oliveira, que representa o sargento no musical.
O espetáculo se reveste de uma atualidade pungente, com o retorno das tentativas de remoções das favelas, no Rio de Janeiro, e com a supervalorização de áreas como o próprio Vidigal. Edson relata que o Vidigal vive uma tentativa lenta de remoção, já que os ricos ainda desejam apossar-se de uma das mais belas vistas da cidade. Por isso, para o ator, o assunto da peça é atualíssimo, já que eles continuam vivendo essa história, principalmente com a proximidade dos grandes eventos como a Copa e com a presença das UPPs.
O espetáculo
A obra foi escrita por Sérgio Ricardo em 1979, remontando ao episódio de 1977, quando o então governador do estado do Rio de Janeiro tentou remover a favela para entregar a área à especulação imobiliária. Escrita como roteiro cinematográfico, a obra vem a público em 2012, comemorando os 80 anos de Sérgio, encenada como musical pelo Grupo Nós do Morro e dirigida por Guti Fraga e Fátima Domingues.
Sérgio Ricardo e João Gurgel assinam a direção musical. Para o autor, o bonito da obra é que todos os atores se transformaram em músicos, cantando e tocando percussão.
O musical é uma mostra viva das expressões artísticas populares, com emboladas, afoxé, samba, etc. A obra consegue mostrar como a arte pulsa na favela, seja através do canto e da dança ou dos cenários maravilhosamente trabalhados por Rui Cortez. O figurino, de Pedro Sayad e Tita Nunes, retrata com bastante fidelidade os anos 70 e também chama a atenção. Bandeira de Retalhos é um mergulho na vida, na arte e na luta e do povo brasileiro. E segundo Sérgio, isso foi intencional:
— A história propõe uma reflexão da plateia, cada um recebe uma porrada de “vamos abrir o olho e conversar, ou a gente se junta para resolver os problemas ou o mundo vai nos engolir”, essa é a base filosófica da obra.
Para João Gurgel, ator e músico, que representa o papel do próprio pai, Sérgio Ricardo, a obra é fortemente marcada pela luta entre opressor e oprimido. E enquanto os embates vão avançando, uma bandeira de retalhos vai sendo tecida pelas mãos dos moradores. A canção Calabouço é a síntese desse enfrentamento. Mas, nesta obra, o oprimido é o vencedor.
Seja pela beleza dos movimentos e da música ou pela lição de luta da resistência do Vidigal, Bandeira de Retalhos merece o sucesso de público que vem recebendo. Agora, basta torcer para que o espetáculo chegue a todos os rincões do país.
Agenda
Rio de Janeiro
Teatro Municipal Maria Clara Machado
Até 5 de agosto
Sextas e sábados às 21h e domingo, às 20h
Inteira: R$30 e meia: R$15
Centro Cultural Wally Salomão
10 e 11 de agosto, 21h
entrada franca
São Paulo
Sala Itaú Cultural
de 23 a 26 de agosto, às 20h.
entrada franca