Ser uma artista do povo significa ser versátil, prezar pela cultura de seu país e, acima de tudo, lutar pela justiça e pela verdadeira expressão popular. Esses atributos estão notabilizados nos 60 anos da formidável carreira de Vanja Orico. A cantora, atriz e diretora de cinema tem um passado vasto em histórias de combatividade e atuações emblemáticas no cinema nacional e internacional. Vanja continua mostrando vitalidade ao lançar seu novo CD e é homenageada num documentário biográfico dirigido por Luis Carlos Prestes Filho.
Vanja, em show de lançamento do seu CD.
Luis Carlos Prestes Filho dirigiu documentário biográfico em sua homenagem
A atriz e cantora, para os que não a conhecem, tem um currículo invejável. A artista volta à cena da música folclórica e regional com um repertório de 15 discos na bagagem e mais de 20 filmes. No fim de maio, o seu novo trabalho musical Mexe com o Corpo foi lançado no SESC Tijuca, na Zona Norte do Rio de Janeiro para uma platéia fiel ao seu trabalho. Também no mesmo dia foi exibido o documentário Vanja vai, Vanja vem, de Luis Carlos Prestes Filho e Adolfo Rosenthal. O filme retrata praticamente toda a carreira artística e militante de Vanja Orico.
Por ser filha do diplomata Oswaldo Orico, Vanja morou em diversos países da Europa. Sua oportunidade como atriz e cantora surgiu pela primeira vez, ainda adolescente, quando estudava música em Roma num colégio de Freiras. O convite veio do célebre cineasta Federico Felini, para ser uma das figurantes do filme Lucci Del varietá (Mulheres e Luzes) de 1950. Mas, no final, Vanja acabou mesmo por atuar como uma jovem cigana ao cantar seu primeiro sucesso: Meu limão, meu limoeiro. De acordo com a atriz, atuar em um filme dirigido por Felinni foi um privilégio, uma vez que ele ainda é um dos mais populares cineastas do mundo.
Mas o reconhecimento do seu trabalho no Brasil se deve ao filme O cangaceiro, de Lima Barreto, em 1953. No papel de Maria Clódia, Vanja fez parte do longa que superou as expectativas ao ser premiado como melhor filme de aventura no Festival de Cannes daquele ano. O Cangaceiro fez Vanja cantar em diversos países da África e da Europa, onde gravou discos. No Brasil, a película chegou a ser assistida por um quarto da população brasileira, que conheceu músicas cantadas por ela, como Sodade Meu bem Sodade, de Zé do Norte e a legendária Mulé Rendeira — música premiada em Cannes — reproduzida por inúmeros intérpretes da música popular brasileira.
Além do convite para fazer a personagem Maria Clódia, a artista ficou muito honrada pelo filme obter tamanho reconhecimento, dentro e fora do país, ao passar a imagem de um Brasil diferente, original e com a seriedade de uma obra-prima. De acordo com Vanja, o filme projetou o Brasil no exterior na época em que a chanchada estava em evidência. Entretanto, os principais responsáveis pelo longa não obtiveram o reconhecimento merecido:
— Infelizmente, a distribuição do filme foi feita pela Columbia Pictures por 20 anos. Enquanto isso, Lima Barreto morria pobre, num asilo para velhos — lamenta a artista.
Depois de tamanha exposição cinematográfica e musical nos anos 50 e 60, Vanja, a partir da década de 70 e 80 começou a perder espaço, quando o monopólio dos meios de comunicação se voltou para a veiculação de músicas e filmes produzidos em terras estrangeiras. Em compensação, ela se tornou uma porta-voz da resistência da cultura nacional, espontânea e perene.
Ao ser indagada sobre a sua contribuição para a cultura brasileira, Vanja é taxativa quando diz que só seremos preponderantes sobre os enlatados ianques se preservarmos nossas raízes:
— Não devemos perder a esperança. Eu tento contribuir criando um tipo bem brasileiro e cantando as músicas de nosso folclore, tão esquecidas apesar de belas. No âmbito político, sempre briguei por um país livre e quando me ajoelhei ante os canhões da ditadura militar interrompi o tiroteio gritando para que não atirassem, pois somos todos brasileiros. Estava defendendo o país com minha própria vida e essa é a lição que eu deixo às gerações sucessoras — afirma Vanja, relatando o espisódio de 7 de novembro de 1968, quando ela se ajoelhou em frente a uma coluna do exército que reprimia uma manifestação estudantil.
Vanja vai, Vanja vem
O documentário é um daqueles filmes indispensáveis a quem deseja identificar a verdadeira característica de um artista brasileiro, cuja luta política ganha abrangência. Com a exibição das imagens e depoimentos percebe-se claramente no documentário a natureza de Vanja: uma mulher de ação, diferente da maioria dos artistas conhecidos pela população.
De acordo com Luis Carlos Prestes Filho, responsável pelo filme, seu passado é emblemático por ilustrar a luta incessante contra as forças da ditadura:
— A imagem dela ajoelhada, frente aos soldados, gritando para não matarem manifestantes desarmados é algo que valoriza a trajetória dos artistas brasileiros do século XX. Sua expressão impediu uma carnificina anunciada. Pelo menos ela teve uma coragem destemida frente ao regime fascista, imposto pelos militares em 1964 — conta Luis Carlos.
A gerência militar fascista, como todos sabem, matou, torturou dezenas de patriotas. Vanja Orico, entretanto, não se deixou esmorecer. Como Luis fez questão de mencionar, em nenhum momento a atriz de O Cangaceiro se escondeu numa Academia Brasileira de Letras, mas se uniu ao povo, justamente onde enfrentavam a morte:
— Ela entrou para a história como uma gigante, não se apequenou. Contudo, Vanja foi apagada da história. Quase não se encontra seus nomes nos livros da história do século XX. Isso é atribuído em grande parte aos poderosos, mas também ao silêncio dos artistas que se sentiram incomodados pela sua coragem — garante Luís.
Portanto, seu exemplo de luta por meio de suas canções e atuações continuam sendo negligenciados pelo monopólio da imprensa.
— Para o poder da grana e da mídia, um artista deve ficar na arte, nunca se envolver com lutas políticas, tampouco emprestar seu nome a uma ideologia — conclui Luís.