A burguesia se veste de branco e pede Pax*

A burguesia se veste de branco e pede Pax*

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Quase diariamente, os jornais trazem manchetes sobre a violência que tira o sossego dos “cidadãos de bem” impossibilitados de circular nas ruas das grandes cidades, entre as quais a do Rio de Janeiro se tornou um dos casos mais críticos, palco de uma alardeada guerra civil.

Os periódicos cariocas recheiam suas páginas com notícias do medo e retratos do crime, os editoriais cobram uma atuação mais repressiva por parte das autoridades e, com isso, multiplicam-se as vozes uníssonas contra a impunidade. No entanto, a criminalidade propalada como o principal aspecto da violência, se não o único, mascara as contradições sociais que se agudizam nos centros urbanos e em todo o país.

 Nilo Batista, advogado criminalista, ex-vice-governador do Estado do Rio de Janeiro e fundador do Instituto Carioca de Criminologia, considera que o fortalecimento do que ele chama de “dogma da criminalização provedora” constitui-se, muitas vezes, na única maneira do Estado mínimo “administrar, da maneira mais drástica, os próprios conflitos que criou”.

A quase inexistência, nas páginas dos jornais, de análises contrárias às lógicas punitivas do Estado Penal, e a favor de um Estado democrático, se explicaria pela vinculação da imprensa monopolista à fase final e agonizante do sistema capitalista. Em Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio, Nilo Batista afirma que a imprensa atua como um mecanismo de punição onipresente e de controle penal dos contingentes humanos que o sistema, a que ele chama de modelo neoliberal, marginaliza: “No reino do individualismo, só o indivíduo pode ser responsável por estar na penitenciária”.

As periferias e favelas apresentam-se como o nascedouro da violência a ser abortada, lugares do crime. Nesse cenário, as drogas atuam como inimigo (invisível) comum a combater-se. Em seu artigo O Tribunal de Drogas e o Tigre de Papel, a socióloga, historiadora e pesquisadora do Instituto Carioca de Criminologia, Vera Malaguti Batista critica o discurso da punição e defende que as soluções dos conflitos somente surgirão a partir de uma análise crítica da realidade social, política e econômica. Simples e direta, assevera: “O desafio do criminólogo contemporâneo é compreender as funções atuais do sistema penal com a globalização, o enfraquecimento do Estado, o poder infinito do mercado e o papel que a política criminal de drogas, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no processo de criminalização global dos pobres”.

Drogas entorpecem crítica

Para exemplificar o estratégico papel das drogas, Nilo Batista relembra a reportagem exibida na TV Globo “Feira de Drogas”, de agosto de 2001, que rendeu o Prêmio Esso de jornalismo a Tim Lopes. Para o criminalista, os jornalistas que lançaram mão de uma câmera oculta destinada a flagrar um “pregão” de mercadorias ilícitas não mostraram nada de novo. Em seu artigo, ele analisa: “Em todos os locais visitados, duas dezenas de jovens vendedores foram fotografados com clareza suficiente para resultar em algumas indicações, com três prisões. Nada, absolutamente nada que não fosse conhecido, salvo a fisionomia de alguns dos milhares de jovens negros e favelados que têm nesse comércio ilegal sua perigosíssima estratégia de sobrevivência. Nada de novo: ganharam o prêmio Esso (…) O merecimento nem sempre provém do que se informa, mas também daquilo que se omite: a improvável reportagem sobre o desemprego e as misérias nas favelas”.

Sylvia Moretzsohn, professora de Ética e Comunicação da Universidade Federal Fluminense, lembra o quanto se explorou a imagem do traficante Fernandinho Beira-Mar, retratado como o grande mal que corrompia a sociedade brasileira.

— É interessante como, hoje em dia, ninguém mais fala nesse nome, mas continuamos a ter os mesmo problemas antes atribuídos a ele.

Comentando o objetivo da reportagem sobre os bailes funk, que resultou na morte de Tim Lopes, Sylvia Moretzsohn condena a absoluta ausência de crítica em torno do caso. Para ela, com a elevação do jornalista à condição de mártir, tornaram-se inviáveis as necessárias discussões acerca do objetivo das empresas de comunicação em veicular esse tipo de matéria.

— A questão fundamental no caso do Tim Lopes é a ênfase e enfoque que se pretende dar à uma parcela da população marginalizada. A ordem parece ser a de criminalizar até mesmo o lazer das classes empobrecidas.

A exclusão “natural”

A forma de noticiar os crimes reafirma cotidianamente estereótipos e, a partir daí, surgem as equações: favela = drogas, negro = traficante, pobre = bandido. Logo, a solução para o problema é o xadrez. Xeque-mate nos miseráveis, pois as “igualdades matemáticas” jamais induzem à conclusão de que o X da questão é o antagonismo de classes. Com o clima de caça aos delinqüentes e criminosos que ameaçam as ilhas de felicidade da burguesia, permanece fora da pauta a violência que persegue as classes e que as torna oprimidas.

Para Sylvia Moretzsohn, a lógica reinante nas empresas de comunicação é de trabalhar com a manutenção do senso comum, para evitar que haja qualquer tipo de questionamento contra os interesses capitalistas e que exponham as fragilidades e contradições do sistema: — Há um interesse do capital nessa maneira consensual e acrítica de se abordar o cotidiano. Isso é puramente ideológico, mas a desculpa é que o público não quer saber de determinados assuntos. Será que a classe média não quer refletir? Precisa refletir! Existe uma massa de marginalizados cercando as “ilhas de fantasia” e essa situação não vai ser alterada por medidas pontuais e imediatas, que só resultam numa radicalização dos conflitos.

Um dos pontos defendidos pela professora em sua tese de doutoramento sobre Jornalismo e Cotidiano diz respeito à forma com que tornam “naturais” os fatos noticiados, destacados do contexto em que necessariamente se inserem, o que inclui o maniqueísmo:

— Com o imediato “naturalizado”, a tendência é aceitar o mundo como ele é. Daí advêm as respostas, também imediatas, que se enquadram em dois tipos de discursos, paralelos e concomitantes: o de combater o mal e o de promover o bem. O primeiro se traduz no incremento da repressão, da radicalização, da exclusão dos indesejáveis. O “fazer o bem” é sempre pontual, são medidas que jamais tocarão na estrutura, na sua essência. Para os problemas da superfície há as soluções paliativas como a do voluntariado e de políticas assistenciais como a do Fome Zero. Aliás, as empresas em geral, e a TV Globo em particular, fazem isso muito bem. Vide os exemplos do Criança Esperança, apresentado como uma forma de redenção.

Rocinha: viver e morrer

A Rocinha, maior favela da América Latina, com seus 200 mil habitantes, configura-se num “enclave” entre os bairros nobres da Gávea e São Conrado, no Rio de Janeiro. Seja por seu tamanho e localização geográfica, por seu “exotismo” que desperta a curiosidade de turistas diariamente, pelos projetos sociais de artistas populares em exibição ou, ainda, por conta das disputas pelo controle do varejo da droga, a Rocinha recebe destaque. Esses três modos exemplares de “aparecer”, enquanto lugar da beleza turística, solo fértil de soluções mágicas e como gestante do crime, ocultam as contradições ali vividas.

Barbara Olivi, uma italiana que optou por morar na comunidade há seis anos, mantém ali, com apoio de algumas instituições, uma creche e uma escola primária. Atualmente, ela lida com 150 crianças e, por meio delas, acaba por estabelecer vínculos com muitas famílias. Com relação à juventude da favela, ela comenta:

— O pouco que se oferece a esses jovens dificulta o crescimento, em todos os sentidos. Os parcos salários dos pais, a educação pública ruim, a má alimentação, tudo isso os coloca em grande desvantagem. Nossas crianças aparentam uma idade muito inferior ao que poderia se considerar normal.

Além da carência material, Barbara Olivi acrescenta outros agravantes, como a falta de orientação, nas escolas ou em casa:

— Eles vão para a escola pública e, mesmo que haja bons professores, as turmas lotadas inviabilizam o contato mais próximo de que os meninos necessitam. Ao voltar para a casa, muitos não encontram comida. Não raro, os pais são desconhecidos e as mães trabalham muitas horas fora, responsáveis que são pelo sustento da família desfalcada da figura masculina. Não há alguém para ajudar a fazer os deveres. Então, largam a mochila e voltam para a rua, onde, pelo menos, contam com a cumplicidade de um grupo na mesma situação. Juntos, partem para as “aventuras”, como o malabarismo no sinal em troca de dinheiro.

Barbara acredita que uma comunidade fechada como a Rocinha acaba por se configurar num local seguro onde seus moradores podem construir uma identidade negada fora de seus limites. No entanto, há um aspecto negativo, principalmente para os jovens, que seria o de tornar natural o cotidiano violento a que estão submetidos.

— Eles freqüentemente se esbarram com homens armados nas ruas. Não são apenas os traficantes, mas também os policiais. Assim, adquirir uma arma futuramente vira um processo natural. No artigo Imprensa e Criminologia: O papel do jornalismo nas políticas de exclusão social, Sylvia Moretzsohn destaca a maneira como as privações das classes empobrecidas são minimizadas na imprensa. Citando uma série de reportagens sobre a situação do transporte urbano no Brasil, exibida na TV Globo uma semana depois que a emissora noticiou o “Basta, eu quero paz!” da classe “média” assaltada pelo episódio do ônibus 174, a professora descreve o conteúdo veiculado: “Pessoas que acordam de madrugada e caminham até o local de trabalho por não terem o dinheiro da passagem, enlatadas nos trens suburbanos e ônibus, exaustas após um dia de trabalho, dormindo jogadas nos bancos ou mesmo em pé, amparando-se umas nas outras. ‘Sina de trabalhador’, disse o repórter. Ninguém falou de violência”.

Cor não passa em branco

A forma banal de se retratar a vida nas periferias e favelas extrapola os limites da TV e se reproduz no cotidiano de indiferença. Quanto a isso, Barbara Olivi dá um exemplo muito próximo: — Recentemente, um ex-aluno meu sofreu uma parada cardíaca, aos 16 anos. Dizem que foi de tanto cheirar cola. Aconteceu no sinal em São Conrado, durante o dia, no meio da rua, na frente de todo mundo. Ninguém parou para ajudar. Dois amiguinhos dele estavam lá e presenciaram tudo. Partiu dos próprios meninos a iniciativa de chamar a ambulância. Quando foi dada a entrada no Hospital Miguel Couto ele já estava morto.

Barbara Olivi conta que passou por muitas situações que a deixaram perplexa. Uma delas foi quando levou para passear um grupo de adolescentes entre 12 e 13 anos. Resolveu entrar no Shopping Rio Sul, em Botafogo, e diversas vezes foi indagada por transeuntes, curiosos por saber o que ela fazia em companhia de “favelados”.

— Eu perguntava para essas pessoas como é que elas adivinhavam que os meninos moravam na favela. Eu, que venho de um outro contexto, não entendia como e por que faziam essa distinção. As respostas, que pouco variaram, apontavam para a cor da pele, as unhas sujas e as sandálias de plástico. Um outro exemplo se deu com um grupo de amigos de seu trabalho como guia, no centro da cidade, quando mostrou a foto de um passeio ao Corcovado, também com alguns adolescentes da Rocinha.

— Todos riram ao constatar que não havia, na foto, um branco sequer e começaram a fazer piadas, do tipo ‘olha este aqui, que cara de estuprador!’, lembra Barbara.

O “estuprador” em questão contava 14 anos à época. Um menino ainda, cara de um proletariozinho que os jornais fazem questão de pintar, todos os dias, com a cor da delinqüência.


*Pax Romana – A paz conquistada através das armas, da chantagem bélica etc., à maneira do que acontecia na relação entre os povos e o Império romano.
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