A burocracia freática no oeste catarinense

A burocracia freática no oeste catarinense

Por detrás da disputa em Abelardo Luz existe o interesse no Aquífero Guarani, o maior reservatório de água doce do mundo

O conflito iminente entre fazendeiros e índios Kaingang pela demarcação de cerca de 2 mil hectares da cidade de Abelardo Luz, a oeste de Santa Catarina, teve sua primeira vítima fatal. O presidente do Sindicato de Empregadores Rurais da cidade, Olices Stefani, 51 anos, foi morto na madrugada entre os dias 15 e 16 de fevereiro, com um tiro na testa, e encontrado pela polícia dentro de sua caminhonete, capotada, alvejada por balas de armas diversas. Stefani portava um revólver calibre 38.

As informações são lacônicas. Porém, o único suspeito do assassinato (a exemplo do mordomo nas histórias do personagem-detetive Sherlock Holmes) é sempre o índio. Nesse caso um grupo do povo Kain-gang que, próximo ao local do crime, já há três dias montava uma barreira humana bloqueando a estrada, exigindo a demarcação das terras indígenas. Stefani, que se dirigia para ali a fim de verificar se seus 50 alqueires1 de soja seriam prejudicados pelo protesto, teria discutido com os índios e tentado furar o bloqueio quando foi alvejado. O tiro que o acertou veio de um revólver semelhante ao que a vítima portava.

Em seguida, os índios detiveram seis pessoas (um vereador, um advogado e os demais, proprietários rurais), buscando evitar retaliações pela morte de Stefani. Exigiram, para a soltura dos reféns, a assinatura de uma Portaria Declaratória do Ministério da Justiça garantindo como seus os 2 mil hectares em disputa. No dia seguinte, às 9h30m, dois foram libertados, enquanto os outros quatro reféns o foram apenas 10 horas depois.

Os fazendeiros pressionam as autoridades para remover da região os índios, que atualmente encontram-se confinados num terreno de meros 9 hectares, cedido pela prefeitura,— uma verdadeira provocação que se junta ao descaso e a morosidade com que o Estado trata as questões indígenas. A área da Aldeia Toldo Imbu2 desde 1987 é oficialmente reconhecida como pertencente àquele povo, apesar da sua não homologação, enquanto pressões políticas e econômicas impediram os índios de terem acesso à sua propriedade, até hoje disputada.

Mas quem de fato tem poder sobre as terras dos índios? Os fazendeiros, extremamente frágeis pelo embevecimento pequeno-burguês, caem na lábia de um poder bem mais forte e, tolos, acreditam ser os donos da situação enquanto servem de valas por onde escorrem os interesses dos brasileiros.

Em 1998, novas pesquisas foram realizadas e confirmaram ser aquelas terras pertencentes, por ancestralidade, aos Kaingang. Só que, a essa altura, muitos colonos já haviam adquirido essa mesma terra, considerada devoluta, da União.

Mania de índios…

Em 2002, após duas publicações no Diário Oficial da União e do Estado de Santa Catarina, e transcorrido o prazo para contestações, o processo foi enviado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) ao Ministério da Justiça, onde perece até a atualidade. No inverno de 2003, após duas retomadas e retiradas dessas terras, os índios chegaram a acampar por algumas semanas defronte ao prédio ministerial.

Até mesmo o Conselho Indigenista Missionário publicou artigo na Internet, 17 de fevereiro, afirmando que “o MJ era sabedor das dificuldades enfrentadas pela comunidade indígena do Toldo Imbu, mas cedendo às pressões de fazendeiros e políticos da região, preferiu omitir-se durante todo este tempo. Entendemos, por isso, que a responsabilidade pelo presente conflito e suas trágicas consequências recaem inteiramente sobre o Governo Federal.”

Desde o dia 14, índios de aldeias próximas, do estado e também do Paraná, chegavam de ônibus a Abelardo Luz para apoiar os Kaingang em mais uma manifestação pela homologação da área. Quatro dias à frente, dois depois da morte do empresário, havia mais de 200 no local. A polícia encontrou revólveres e espingardas na casa de um índio, que foi detido, mas não há ainda nenhuma prova concreta de sua participação no crime.

O prefeito João Marques da Rosa (PFL) declarou três dias de luto oficial pela morte do empresário. O comércio e mais quatro escolas da cidade, de 20 mil habitantes, passaram o dia seguinte fechados. Enquanto isso, do MJ chega a informação de que não haverá qualquer decisão por nenhuma forma de pressão.

Artur Nobre Mendes, diretor de assuntos fundiários da Funai, relatou à imprensa que não crê que o ministro da justiça, Márcio Thomaz Bastos, responsável único pela assinatura da Portaria, tome qualquer decisão: “a negociação tem poucas chances de evoluir.” Cabendo ao Estado a indenização dos agricultores a serem removidos da área em litígio — foi o Estado que vendeu os terrenos a eles —, pode-se dizer que o caso não terá solução em curto prazo.

No bairro São João Maria, próximo à Aldeia, algumas famílias estão abandonando suas casas, acreditando ser inevitável o confronto armado entre índios e fazendeiros.

Coincidentemente, o Aquífero Guarani (que se estende da região de Ribeirão Preto até a Argentina), a maior reserva subterrânea de água doce potável do mundo, aflora justamente naquela região. Ou seja, naquela região é possível extrair grande parte da reserva de água pelo mais baixo custo. O aquífero é objeto de flagrante ambição manifestada por cinco corporações transnacionais3 que estão transformando água, um bem fundamental da vida, em mercadoria.


Notas da redação:
1 Alqueire paulista: 44 mil m2. O presidente do sindicato dos empregadores possuía naquela área, portanto, 220 hectares.
2 Após afugentar centenas de vezes os jagunços, um território indígena é delimitado. Décadas depois, demonstrada a capacidade dos índios de revidarem às investidas de mais jagunços, ONGs e às trapalhadas dos órgãos públicos, a área é demarcada. Finalmente, é assegurado que o território será invadido sempre que assim desejarem a oligarquia latifundiária ou as corporações do imperialismo.
3 Segundo o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, os conglomerados que negociam a partilha dos direitos sobre o Aquífero Guarani são: Suez Lyonnaise des Eaux (francesa); Vivendi Enviromennement (proprietária da Nestlé); Thamer Water (inglesa) Sauer (francesa) e a Coca-Cola Company (ianque).
Outra demarcação realizada na mesma região, José Boiteux, no Alto Vale, a oeste de Blumenau, reserva Duque de Caxias, vive as mesmas condições. Técnicos da Funai, desde o dia 2 de fevereiro, encontram-se instalando marcos e placas indicativas para os novos limites da reserva indígena.
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