A chacina do Complexo do Alemão

A chacina do Complexo do Alemão

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Os números oficiais falam em 42 mortos e 80 feridos desde que a polícia ocupou o Complexo do Alemão, no dia 2 de maio. Entretanto, levantamento feito por AND revela que número de vítimas pode chegar a 160, entre mortos, feridos e desaparecidos. Reportagem realizada nas favelas da Grota e Morro do Alemão constata o repúdio do povo à ação policial, enquanto estudiosos afirmam que a gerência estadual de Sérgio Cabral adquire contornos fascistas e atende aos interesses do USA.

Foto: Latuff/2007

Complexo do Alemão, Rio de Janeiro

Dedo no gatilho, um soldado da Força Nacional de Segurança, fortemente armado e equipado, está a postos junto ao muro da entrada principal da Favela da Grota, no Complexo do Alemão. De vez em quando ele estica a cabeça e olha lá para dentro. Sua farda é camuflada em tons de cinza e cobre o corpo inteiro. Daquele ser humano só se vê parte do rosto. Suas armas são uma pistola .40 e um fuzil 5,56, um modelo desenvolvido pela Indústria de Material Bélico do Brasil INBEL. Ele tem cerca de 3 kg a menos que o AR-15, permite regime de tiro automático e tem carregador para 30 cartuchos. O 5,56 é o mesmo calibre utilizado pelas tropas da OTAN, que geralmente operam com o fuzil FN Herstal F2000, que pode ser combinado com lança-granadas de 40mm.

É quase meio-dia de um sábado ensolarado no Rio de Janeiro, dia 7 de julho de 2007. Até o anoitecer, a reportagem do AND percorreu a Grota e o Morro do Alemão, duas das treze favelas do Complexo do Alemão, que se estende por cinco bairros da Zona Norte da cidade: Ramos, Penha, Inhaúma, Olaria e Bonsucesso. No dia 27 de junho, a região foi palco de uma matança que teve repercussão nacional e internacional. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, 19 pessoas foram mortas pela polícia nesse dia e, desde o início da ocupação, em 2 de maio, foram 42 vítimas fatais e cerca de 80 feridos. Entretanto, um levantamento realizado pela reportagem indica cerca de 50 mortos, 10 desaparecidos e aproximadamente 100 feridos. Uma média de quase 3 vítimas por dia.

Não cabe ao jornalista, ou à polícia, dizer quantos desses eram inocentes e quantos eram culpados. Num Estado de velha democracia, com conotações democrático-liberais, formalmente inocentes e culpados são definidos pelo Poder Judiciário, após formulada uma acusação e garantido amplo direito de defesa. E o jornalista, conforme seu juramento, deve “combater todas as formas de preconceito e discriminação e valorizar os seres humanos em sua singularidade e na luta por sua dignidade”.

A socióloga e diretora do Instituto Carioca de Criminologia, Vera Malaguti, criticou duramente a tentativa de separar os mortos com antecedentes criminais dos sem passagem pela polícia:

— Considero essa separação perversa — disse, para depois completar: — Isso não é uma operação policial, isso é uma chacina. É chocante que a medida de sucesso seja o número de vítimas, que a truculência seja o sucesso. Essa idéia de limpar para depois vir a pureza lembra a Alemanha de Hitler, o Chile de Pinochet. Esse é o fascismo brasileiro.

Beira a insanidade uma ação policial dessas proporções num lugar densamente povoado como o Complexo do Alemão. Antes mesmo de entrar na Grota, ao descer do ônibus, isso já fica nítido. Desse lado da rua, há uma barraquinha de água de coco quase grudada numa oficina de automóveis que, por sua vez, está colada numa casinha de portão baixo. Três crianças estão sentadas ali, conversando. Ainda no ponto de ônibus, há uma movimentação frenética de vans e kombis que ligam as comunidades da região ao centro da cidade e a outros bairros da Zona Norte. O barulho incessante dos autos-falantes desses veículos, que anunciam seus destinos, já faz parte do cenário local.

Atravesso a rua estreita, porém bastante movimentada, e finalmente entro na Grota, para onde o jornalista Tim Lopes foi levado em 2002, após ser enviado para cumprir uma pauta sensacionalista da Rede Globo, extremamente arriscada, sobretudo depois de ter seu rosto exibido em rede nacional durante o Prêmio Esso de Reportagem. Aqui, o que chama a atenção em primeiro lugar é a grande quantidade de pessoas circulando pela rua principal. Há um intenso comércio local que, junto à feira de frutas, legumes e verduras, forma um corredor por onde os transeuntes se espremem entre bicicletas e motos. Há um intenso contato entre as pessoas, muito maior do que na Avenida Rio Branco em hora de almoço.

Foto: Sadraque Santos

Uma interação constante que vai desde um simples “Valeu, irmão” até uma breve conversa que pode ser sobre um amigo em comum ou sobre o dia-a-dia, o clima, o cachorro do vizinho e essas coisas que parecem poucas, mas que no fundo são o que nos fazem levar a vida. Aqui no Complexo do Alemão vivem cerca de 200 mil pessoas e, de acordo com a polícia, 450 são traficantes varejistas — o que significa 0,2% do total.

Lá pela metade da Grota, entro numa viela em direção ao Morro do Alemão. As ruas são irregulares, às vezes só dá para passar uma pessoa de cada vez. Chego à sede do Raízes em Movimento. Trata-se de um grupo que promove cursos de arte, de tear e de comunicação crítica com o objetivo de identificar as potencialidades dos jovens e desenvolvê-las. Lá eles me mostram uma das atividades do projeto Circulando — Diálogo e Comunicação na Favela. É uma galeria de graffiti a céu aberto, que tem 53 painéis pintados a partir de 2001. Num dos desenhos o artista aproveitou as características do muro: um cano virou a boca de um personagem e o portão virou um cartaz. Criatividade, por aqui, não falta.

Continuo subindo. As ruas vão perdendo a pavimentação, a lama vai atrapalhando a caminhada. São cerca de 40 minutos, em passo apertado, até o topo. Mas a vista compensa. Lá de cima dá para ver praticamente toda a Zona Norte. A Igreja da Penha, o Maracanã, o Engenhão e a vista da Baía de Guanabara, bem ao fundo. A Ponte Rio-Niterói parece um pequeno viaduto, dada a distância. Vou conversando com um e outro, e observo que as pessoas procuram tocar suas vidas, mas a violência é um tema recorrente. Uma das rodas de conversa mostra isso com clareza. Quatro meninos empinam suas pipas, um fala:

— Às vezes tenho vontade de meter o pé desse morro, mas eu adoro essa favela.

O outro rebate:

— Tem muito tiro…

E vem a tréplica:

— Onde não tem tiro?

Debaixo do tiroteio

Já na descida, visito a casa de Maria Aparecida. Ela é nascida e criada na Grota, tem 42 anos e está desempregada. Seu último emprego foi de doméstica na Tijuca, numa “casa de família”, diz. Ela mora ao lado da casa que foi explodida pela polícia e me contou o que sentiu quando a polícia invadiu a favela:

— Eu moro embaixo, aqui é da minha mãe. Na hora dos tiros eu não sabia onde ficar. Na hora do perigo, quando a rua estava perigosa, eu ia lá para cima. Quando aqui ficava feio eu corria lá para baixo. Aí quando começou tiro daqui, tiro dali pipocando, tudo ali onde pegou fogo, aí quando a gente olhou que era fogo começou todo mundo a correr. Mesmo com tiro juntou muita gente para ajudar a jogar água e graças a Deus conseguimos apagar o fogo.

Maria Aparecida continua seu relato:

— As crianças aqui e eles no portão. A gente pedindo pelo amor de Deus para eles saírem porque aqui tem criança. É perigoso com a polícia aqui. E se derem tiro para cá? Já tenho dois tiros na cozinha, também tem dois tiros no meu banheiro. Aí eles queriam ficar aqui na varanda. Pelo menos os que vieram aqui não foram abusados. Só entraram e falaram ‘fica tranquila, se esconde aí’. A gente disse ‘não, por favor, vai embora daqui’. Finalmente eles pegaram e foram embora.

Dona Maria, pergunto, eles pediram licença para entrar?

— Pediram nada. Bateram na porta. Minha irmã estava abaixada com medo dos tiros. Falou ‘gente, vou abrir, mas aqui é morador, só. Pelo amor de Deus!’. Aí eles entraram, ficaram ali na janela e mandaram a gente ir pra sala. ‘Não, a gente não vai sair daqui. Vocês vão embora porque aqui tem criança.

Eles mostraram algum documento autorizando a entrada em sua casa?

— É ruim, hein? Mostrar documento… É ruim, hein? Se pedir documento acho que a gente ganha tapa na cara. É ruim de pedir. Quer entrar, entra, vê que não tem nada, ninguém aqui é bandido. Aqui é família. Aí eles entram, vê que não tem nada e vão embora. Agora, toda vez que a polícia vem aqui eles querem ficar aqui. Acho que é um pedaço bom, gostaram daqui. Aí fica até a hora que eles cismam, todo mundo chorando. E a gente vira alvo junto. Não é mole não. Quem tem problema do coração, morre. Minha filha passou mal de pressão alta e foi para o posto de saúde. A pressão dela subiu para 18. Não é mole… Isso não é vida, não, gente.

Outro que viveu de perto essa experiência foi Sebastião Vieira da Costa, um vigia aposentado de 78 anos. Ele mora no Morro do Alemão desde 1968 e construiu a casa com o ordenado que recebia num emprego de vigia, onde tinha que bater o ponto de 15 em 15 minutos para garantir ao patrão que não estava dormindo. E só trabalhava em “lugar perigoso”, diz:

— Trabalhei em Manguinhos, Caju, Ilha do Governador e Jardim Gramacho. Pegava das 10 da noite até as 5 e meia da manhã. E só tinha um dia de folga. Todo dia subia e descia esse morro todo, pegava dois ônibus, levava mais de uma hora de condução e mais meia até chegar daqui ao pé da Grota.

Ele disse que nunca viu uma operação policial como essa. Sua casa ficou cravejada de tiros, incluindo a parede lateral, a geladeira, a máquina de lavar e a caixa d’água. Sebastião conta ainda que arrombaram as duas portas da casa de sua filha. E quem vai pagar esse prejuízo todo, pergunto. Ele apenas responde num lamento:

— É, doutor, aí já viu, né? Só Deus, porque a gente já é pobre, já luta com dificuldade. Se não tiver umas pessoas que tenham intimidade com essas pessoas assim maior, não tem quem dá uma força.

A chacina

Sob alegação de combate ao tráfico, os governos do estado e federal desencadearam uma operação sem precedentes. 1.350 homens, três caveirões (veículos blindados), um helicóptero e nove franco-atiradores foram mobilizados nessa ação que começou às 9h da manhã, horário de intensa movimentação de pessoas nas ruas. Quem estava dentro de casa, não saiu. Quem estava fora, tentou voltar. Foi o caso de David de Souza Lima, um menino de 14 anos que tinha ido visitar a tia e foi pego por policiais. Seu laudo cadavérico apresenta sinais de tortura, assim como o de outros nove: Rafael Bernardino da Silva (20 anos), Geraldo Batista Ribeiro (41), Jairo César da Silva Caetano (28), Bruno Vianna Alcântara (22), Cléber Mendes (36), Bruno Rodrigues Alves (21), Emerson Goulart (26), Uanderson Gandra Ferreira (27) e Marcelo Luiz Madeira (27). Dos 78 tiros encontrados pela perícia nos 19 corpos, a esmagadora maioria foi no tórax e na cabeça e 32 foram disparados pelas costas, dois indícios evidentes de execução. Do lado da polícia, ninguém foi morto ou ficou gravemente ferido.

Como disse um policial:

— Foi como atirar em patos.

Os outros corpos identificados foram de Paulo Eduardo dos Santos (18), Maxwell Vieira da Silva (17), Rafael Marques Serqueira (26), Luiz Eduardo Severo Madeira (28), Bruno Paula Gonçalves da Rocha (20), Alexsandro José de Almeida (34) e Claudomiro Santos Silva (29).

No mesmo dia, à noite, os oito postos vagos no tráfico varejista já haviam sido repostos. A venda de drogas estava de pé. A Polícia Militar não está dentro das favelas. Apenas a Força Nacional de Segurança cerca algumas entradas. O que houve? A alegação de “combate ao tráfico” era falsa? Ou a missão falhou? O AND tentou ouvir o Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame. Foram três telefonemas e dois correios eletrônicos, mas não houve resposta.

Os laudos batem com os primeiros relatos dos moradores. Muitos falaram em saques a residências e estabelecimentos comerciais. Alguns disseram, inclusive, que não houve troca de tiros.

— Eu vi quando os policiais entraram na minha casa. Estava na vizinha com meus cinco filhos. Lá dentro eles torturaram duas crianças e mataram um homem. Quando pude retornar, minha casa estava toda revirada. Meu guarda-roupa destruído, minha geladeira com um tiro. Os policiais levaram também meu aparelho celular. Meus filhos estão traumatizados, não querem ficar mais aqui. Eu vou colocar o barraco à venda — disse um morador que não quis se identificar.

Outro depoimento denuncia um assassinato a facadas:

— A polícia invadiu a casa, estavam os quatro lá dentro. Colocaram todo mundo no chão, separaram dois em cada quarto e eu vi quando esfaquearam ele, limparam a faca toda suja de sangue na calça e puxaram o corpo lá pra fora. Aí ouvi um tiro.

O então presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, João Tancredo, se posicionou com firmeza.

— Não tenho a menor dúvida de que o Estado está agindo fora da lei. Quando alguém comete uma barbaridade, você fala com o Estado para tomar providências. Mas quando é o Estado que comete o delito, você faz o quê? — pergunta o advogado.

O historiador e deputado estadual Marcelo Freixo foi pela mesma linha:

— O que a gente tem no Rio são práticas de execução e não de confronto.

Por outro lado, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do RJ, deputado Alessandro Molon, não se manifestou quando a Secretaria de Segurança proibiu que a OAB indicasse um perito para acompanhar os laudos cadavéricos. Enquanto não respondia aos pedidos de entrevista do AND, o deputado manteve contato praticamente diário com “O Globo”, onde ganhou amplo espaço e teve suas declarações usadas para sustentar a versão de que “ainda não havia provas de que houve execuções”. Nos bastidores da política carioca, comenta-se que Molon será o candidato do PT à prefeitura do Rio de Janeiro. Moradores do Complexo do Alemão reclamaram que as ONGs AfroReggae e Cufa evitaram se posicionar contra a ação policial em troca de promessas dos governantes.

No dia seguinte à matança da polícia, João Tancredo foi ao Complexo do Alemão ouvir os relatos dos moradores. Recebeu inúmeras denúncias de pessoas que sofreram ferimentos, escoriações, lesões corporais, ameaças, subtrações e danos diversos causados pela polícia. O AND teve acesso à perícia independente encomendada pela Comissão de Direitos Humanos da OAB — presidida por João Tancredo. No relatório, o médico legista Odoroilton Larocca Quinto constatou fortes indícios de que vítimas foram atingidas em ângulos de 45º, podendo ocorrer a hipótese de a vítima estar sentada ou ajoelhada. Também foram verificadas marcas causadas por armas brancas (facas, por exemplo) em algumas vítimas e “elevado número de corpos atingidos pelas costas”. O legista afirma ainda que “a não preservação do local e a não realização dos exames no local prejudicam sobremaneira a conclusão pericial”, se referindo ao fato de as vítimas terem sido examinadas sem as roupas e o local do crime ter sido desmontado.

A partir daí, João Tancredo passou a receber ameaças de morte por telefone. Ele não se deixou abater e levou as denúncias à imprensa e ao Ministério Público. No dia 18 de julho, o presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, exonerou João Tancredo da presidência da Comissão de Direitos Humanos. Em protesto, a grande maioria dos integrantes da comissão renunciou coletivamente e denunciou a postura de Wadih Damous à ONU e à Organização dos Estados Americanos.

A presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, fez o seguinte comentário sobre o afastamento de João Tancredo: “Foi um ato arbitrário, autoritário, tendo em vista certas alianças e compromissos políticos assumidos. Fica, com isso, intocada a política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, que vem sendo implementada: militarizada e de extermínio”. O AND foi até a sede da OAB e solicitou entrevista com o presidente da entidade, Wadih Damous, mas não houve resposta até o fechamento desta edição.

O monopólio da imprensa

Foto: Latuff/2007

Comunidade da Fazendinha, Rio de Janeiro

Nos dias seguintes à matança da polícia, “O Globo” publicou reportagens absolutamente favoráveis ao extermínio. Nos dias 28 e 29 de junho, foram nove páginas sobre o assunto, sendo que aproximadamente 95% do espaço foi usado para apoiar a polícia. Mesmo quando os sinais de execução já eram evidentes, o jornal assumiu o discurso fascista do governador Sérgio Cabral para justificar as mortes: “eram todos bandidos”. Este argumento, muito utilizado na Alemanha Nazista, contraria a própria lista divulgada pela Polícia Civil, que aponta antecedentes criminais para apenas 11 entre os 19 mortos dos números oficiais.

Toda a imprensa carioca apoiou, incondicionalmente, a chacina de 27 de junho. A imprensa paulista, por outro lado, ofereceu uma cobertura mais equilibrada. Nada demais, mas pelo menos abriu espaço para os moradores e manteve um viés crítico a essa política de segurança. A socióloga Vera Malaguti vaticina:

— A cobertura da imprensa carioca foi vergonhosa. Vai ficar para a história. E a história é cruel, porque a verdade sempre aparece.

Registre-se, entretanto, que todo o monopólio da imprensa utilizou — e utiliza — o termo “guerra” para designar os confrontos entre polícia e traficantes varejistas, pretexto formal para agressão e declaração de verdadeira guerra que oculta os motivos reais que a suscita. Mas o termo pressupõe haver luta ideológica pelo poder, componente fundamental numa guerra. O conceito de guerra prende-se à luta armada entre Estados ou entre classes sociais pela realização do poder político. Disputas entre traficantes e polícias não significa exatamente uma guerra, porque elas não ocorrem em função de mudança na estrutura do poder político.

O termo “guerra contra o tráfico” — tal como utilizado pelas autoridades e o monopólio dos meios de comunicação — além de ocultar as verdadeiras contradições na sociedade brasileira, servem para “legalizar” a repressão sangrenta contra o povo desarmado, justificar as “baixas” (mortes, em lugar de prisões dos verdadeiros bandidos, principalmente os grandes), como também os tais “danos colaterais” —, matança de quem não tem nada a ver com a história. Serve para legalizar crimes contra a paz e a humanidade: violências e pilhagens, assassinatos de gente do povo — de guerra contra o povo. Por fim, violam as leis e as convenções reconhecidas sobre a guerra — se dela tanto insistem em falar.

E sentem-se tão confiantes no que dizem e no que fazem que, do alto de sua insânia, certas autoridades proclamam a guerra sem o menor cuidado pelas suas consequências, inclusive aquelas que revelam produzir criminosos de guerra.

Há que se ressaltar, o equilíbrio de forças entre a polícia e os traficantes varejistas pende favoravelmente para os primeiros. De acordo com as próprias informações da polícia os varejistas estão em menor número, possuem armas e equipamentos inferiores. Além disso, enquanto um policial traja botas, calça e farda apropriadas, com tecido especial, o traficante varejista anda de chinelo, bermuda e sem camisa. Enquanto o policial possui cantil, binóculos, capacete, óculos para proteção contra fragmentos de tiros, farta munição, granadas profissionais, gás lacrimogêneo, pistolas, facas, fuzis e lança-granadas, além de terem treinamento especializado, apoio logístico de veículos blindados, de helicópteros e do monopólio da imprensa, o bandido da favela tem apenas pistolas e fuzis usados, muitos dos quais desviados pelas próprias forças de segurança, confessa a imprensa deles.

Confessa e contraria informações anteriores, sem o menor pudor. Antes, diziam que os traficantes tinham mais armas que a polícia. Hoje, o que mais se vê é PM com fuzil metralhadora pendurada no peito. Já o serviço público de saúde, educação…

Porém, o principal não reside na constatação de superioridade dos pequenos bandidos ou de policiais, mas em deixar claro que é o povo que vem sendo agredido — justamente ele que não tem arma alguma nem declarou guerra a ninguém.

Um dos resultados dessa duplamente criminosa distorção da realidade (criminosa inclusive por fazer a apologia de uma guerra de agressão ao povo) pode ser notado pelas reações de pessoas das classes remediadas, que apóiam (e, casos recentes, até partem para) o assassinato de bandidos, de mendigos, espancamento de prostitutas — ou o que a imaginação do incauto, alienada pelo monopólio da imprensa, assegurou tratar-se.

Cecília Coimbra, professora da UFF e vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, ressalta o poder dos meios de comunicação em moldar percepções e forjar consensos:

— Setores da “classe média”, com sua subjetividade envenenada pelos meios de comunicação de massa, acreditam que essa política de extermínio é necessária para resguardar sua segurança.

O que os traficantes varejistas fazem é disputar o controle de um determinado território para comercializar produtos altamente lucrativos, como cocaína e a maconha, cujo grande beneficiário é o trafico atacadista. O mesmo poder público — que não impede a entrada dessas substâncias de venda ilícita no país — utiliza a polícia para reprimir a comercialização quando julgar conveniente. Ou seja, o tráfico atacadista e internacional segue intocado.

Essa política, a pretexto de reprimir os traficantes varejistas, está promovendo um verdadeiro extermínio num determinado segmento da população carioca: moradores de favelas, entre 15 e 24 anos, principalmente. Há vítimas também entre os trabalhadores de segurança, sobretudo os policiais, na política geral da segurança.

A verdadeira intenção

Mas então, qual seria o objetivo de uma ação como essa? E o que pretende o governador do Estado ao prometer repetí-la em outras favelas? Por que o presidente da República veio a público apoiar uma política ineficiente e genocida, falando de “pétalas de rosa” e “pó de arroz”?

Novamente Vera Malaguti comenta:

— Fiquei perplexa com a declaração do Lula. Sempre soube que ele costuma fazer certas concessões para governar, mas há coisas com as quais não se pode transigir, ao menos tão abertamente. E não dá para transigir com a matança de pobres. O objetivo dessa política de segurança é a ‘limpeza’ das áreas pobres. É a política criminal de contenção social da pobreza e seus difíceis ganhos, como camelôs e flanelinhas, criados pelo próprio sistema e depois eliminados — afirma.

Maurício Campos, integrante da Rede Contra a Violência (entrevista às páginas 6 e 7, nesta edição), ressalta alguns aspectos importantes dessa política de segurança pública, termo que ele faz questão de criticar.

Maurício relembra a visita recente de Anne Peterson, assessora de Condoleezza Rice, ao Rio de Janeiro, onde se encontrou com o governador Sérgio Cabral. Na ocasião (17 de maio) foram fechados acordos de colaboração direta do governo ianque com o governo do Estado do Rio de Janeiro.

Outros aspectos destacados pelo representante da Rede Contra a Violência foram a proximidade com os Jogos Pan-Americanos e a invasão ao Haiti, onde o Brasil segue ordens do imperialismo. Esses dois pontos foram adiantados por AND nas edições 34 e 35, respectivamente.

— O interesse do USA é colocar em prática uma política mundial de militarização de todos os conflitos. A única vantagem que o USA têm hoje é a força militar. Não tem mais vantagem tecnológica, não tem mais vantagem econômica. Mas a vantagem militar, ele tem. Isso é inegável. Então, quanto mais houver situações de guerra, de conflito no mundo, os setores do USA que giram em torno do aparato militar acumulam mais condições de obter lucros com vendas de armas, munições, equipamento, consultoria em segurança, etc — afirma Maurício.

Um dos resultados mais visíveis da opressão nos bairros proletários foi descrito pela socióloga Vera Malaguti, em seu livro O medo no Rio de Janeiro: “A hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. No Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas”.

Mas a história mostra que não se pode oprimir um povo durante muito tempo. Onde há dominação, há resistência. Manifestações estão sendo organizadas para estourar durante os Jogos Pan-Americanos; faixas foram levantadas, no Complexo do Alemão, contra Sérgio Cabral; as redes de movimentos sociais estão se fortalecendo; a vida que pulsa dentro de cada indivíduo nunca poderá ser absolutamente controlada. Embora muitos subestimem os moradores de favelas, é bom deixar registrado que a grande maioria sabe perfeitamente o que está acontecendo.

Como disse alguém do Alemão: “A Globo está batendo muita palma para polícia”. Os inimigos já foram identificados pelo povo.

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