A ‘crise’ das hipotecas no USA e a urgência da emancipação dos povos

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A ‘crise’ das hipotecas no USA e a urgência da emancipação dos povos

No USA, cerca de dois milhões de trabalhadores estão prestes a perder as casas onde moram com suas famílias. Após meses, anos ou até mesmo décadas pagando prestações a perder de vista, eles não conseguem mais arcar com as condições draconianas dos contratos ardilosamente preparados por certa estirpe de agiotagem de cara limpa: aquela praticada pelo sistema bancário ianque com a conivência da administração Bush.

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O mercado hipotecário no USA fatura cerca de 11 bilhões de dólares por ano, e 12% desse faturamento vêm de um tipo de crédito que costuma ser oferecido ao proletariado pelas empresas especializadas, e que é caracterizado por duras condições de financiamento a longo prazo, com juros altos, maiores taxas e sujeitos a reajustes. É o crédito conhecido como subprime.

Trata-se de uma burla empurrada goela abaixo de trabalhadores ansiosos por ficarem livres dos altos preços dos aluguéis. Impedidos de obter créditos convencionais — por questões de renda, histórico financeiro ou até mesmo por causa da cor da pele ou da ascendência — durante anos eles foram iludidos com empréstimos contraídos sob a promessa dos banqueiros de que haveria abrandamento futuro das achacantes cláusulas contratuais. Pois, no futuro que se seguiu, aconteceu exatamente o contrário.

Quando os bancos resolveram arrochar ainda mais as condições dos créditos subprime, reajustando os valores das hipotecas, os proprietários de imóveis ainda não quitados pararam de pagar as prestações mensais. Quando pararam de pagá-las, os valores devidos passaram a ser multiplicados por juros abusivos, tornando quase impossível para os trabalhadores impedir que mais cedo ou mais tarde sejam despejados das casas onde moram. Ao mesmo tempo, os preços dos imóveis despencaram, e ainda assim as propriedades continuaram encalhadas, difíceis de serem vendidas.
Este é o cenário do que vem sendo chamado de "crise do crédito imobiliário", "crise do mercado de subprime" ou "crise da contração do crédito". Seja com que nome for, a coisa provocou arranhões nas margens de lucros de prestigiadas instituições bancárias dentro e fora do USA, afetando também quem comprou títulos vinculados aos empréstimos subprime esperando lucrar a custa do endividamento alheio, como bancos japoneses, franceses e alemães.

Foi o suficiente para alarmar os farristas do sistema financeiro internacional, que só funciona na base do pânico de perder fortunas inteiras do dia para a noite na jogatina das bolsas de valores, dependendo do resultado do balanço contábil desta ou daquela empresa, deste ou daquele banco.

Juros, crises e grilhões

Mas pergunte sobre o que está havendo a qualquer economista palpiteiro que seja figurinha fácil na TV e nos jornais, e ele tentará explicar que a culpa não é do capital financeiro internacional, mas sim do povo. Ele dirá que os mal pagadores do USA, com sua vergonhosa e irresponsável inadimplência, colocam em risco o bom funcionamento do capitalismo global. Num passe de mágica e de picaretagem, os banqueiros-agiotas transformam-se em pobres vítimas — vítimas daqueles que vinham achacando e pensaram que podiam impunemente achacar ainda mais os proprietários de casas adquiridas via crédito subprime.

Tanto é assim que os governos dos países ricos não tardaram em socorrer o capital bancário, cujo preço das ações despencou nas bolsas de valores de todo o mundo. O Banco do Japão injetou um bilhão de ienes no sistema financeiro do país, pois é esse o valor somado que os nove maiores grupos japoneses privados têm em investimentos atrelados às hipotecas subprime no USA. Da mesma forma, o governo da Austrália disponibilizou quase cinco bilhões de dólares australianos para "assegurar a estabilidade" das empresas que apreciam os altos rendimentos que abocanham com operações de alto risco, mas que não apreciam os riscos.

Os bancos centrais europeus e norte-americanos fizeram o mesmo, ou seja, entregaram rios de dinheiro público aos banqueiros e lhes concederam regalias fiscais, a fim perpetuar a especulação e os lucros obtidos através dos elevados juros impostos ao povo. Tudo isto no lugar de anunciar medidas de apoio às famílias dos trabalhadores asfixiados pelos abusos sistematicamente praticados pela dobradinha formada pelos bancos e pelas empreiteiras da construção civil.

Todo este dinheiro é destinado a entrar nos balanços contábeis dos bancos e demais empresas metidas com a especulação e a exploração empreendidas no âmbito do setor imobiliário, a fim de mascarar não apenas os ocasionais problemas de "liquidez", mas também escamotear a própria crise na qual o capitalismo mundial ora se afunda.
A crise, no entanto, insiste em mostrar a cara, e a recessão da produção capitalista em escala mundial não é algo impossível em um futuro próximo — ao contrário. Um sintoma é o nível do valor de mercado dos imóveis no USA: o preço das casas vem caindo numa velocidade semelhante ao ritmo de queda observado na proximidade da grande recessão capitalista de 1929.

Hoje, como no final de década de 1920 e início dos anos 1930, uma eventual crise dos aparatos burgueses de exploração tornaria ainda mais dramática a situação da classe trabalhadora, com o agravamento do desemprego e das condições de sobrevivência da população.

Por isso, quando os governos ao redor do mundo mobilizam os fundos públicos para fortalecer o poder do capital, dizem que fazem isso em nome do bem estar de todos. O que fazem, na verdade, é chantagem. E para se livrar tanto da exploração quanto da chantagem que partem da burguesia em crise, os trabalhadores precisam se libertar não apenas dos juros e de abusos semelhantes, mas sim de todos os seus grilhões.

Crédito racista

No USA, as condições do crédito para habitação são especialmente achacantes quando são os latinos e os negros que decidem comprar a casa própria. Segundo um estudo divulgado em outubro do ano passado pelo Centro Furman de Mercado Hipotecário e Política Urbana da Universidade de Nova York, latinos e negros estão mais sujeitos a serem lesados pelo crédito subprime do que os habitantes dos bairros onde predomina a população de cor de pele branca, ainda que todos tenham os mesmos níveis de renda.

Os dados confirmaram velhas denúncias sobre o racismo praticado pelas empresas especializadas em lucrar valores fabulosos com a mercantilização do direito à habitação. Segundo o estudo, os latinos são três vezes mais vulneráveis a este tipo de agiotagem do que a população branca; os negros, quatro vezes mais.

Uma em cada cinco casas vendidas no USA são negócios fechados mediante o crédito subprime. Quando os resultados da pesquisa do Centro Furman vieram a público, uma diretora da instituição apresentou a conclusão óbvia: no USA, os latinos e negros correm um risco muito maior de que suas casas compradas a juros exorbitantes terminem nas mãos de um banqueiro.

Tendo em mãos os dados do Centro Furman, o jornal The New York Times fez suas próprias estimativas, bem direcionadas para seu público-alvo (a classe média): entre os devedores brancos não-latinos que ganham de 125 mil a 150 mil dólares por ano, apenas 24% tinham dívidas nas condições subprime em 2006, enquanto entre os devedores brancos latinos o percentual era de 52%, mais que o dobro.

Em cidades onde milhões de latinos e negros trabalham árduamente sem direitos e em busca de alguma dignidade, o índice do crédito subprime é recorde no país: 25% dos empréstimos para compra da casa própria são feitos nessas condições em Los Angeles, 19,8% em Nova York, 15,9% em Chicago. Em Nova York, apenas 16% dos latinos são proprietários de suas casas. Entre os negros que vivem na cidade, 28% são donos das casas onde moram. Entre a população branca de origem anglo-saxã, o percentual vai a 44%.

A NAACP, uma organização de combate à discriminação racial, está processando num tribunal de Los Angeles 12 empresas de empréstimos hipotecários acusadas de impor crédito subprime aos negros. Entre as firmas-agiotas processadas estão o HSBC Mortgage Services e a CitiFinancial, ramificações dos bancos HSBC e Citibank. Um dos advogados da NAACP disse a um jornal ianque que as instituições de subprime parecem fazer um círculo em torno dos bairros de latinos e negros para irem até lá tentar vender gato por lebre.

Mesmo sendo verdadeiro e aviltante o fato de que no USA a taxa de juros para empréstimos imobiliários é calculada em função das origens étnicas, a questão central é que a agiotagem imobiliária no país ultrapassa a questão racial; na verdade, ela é um drama para os trabalhadores cuja única opção deixada pelo governo Bush e pelo mercado financeiro ianque é se sujeitar a este tipo de extorsão para ter onde morar.

Também no ano passado, o Conselho Nacional da Raça — a maior entidade representativa dos imigrantes no USA — juntou dados, comparou números, fez as contas, e concluiu: a bancarrota da agiotagem imobiliária vai afetar principalmente a parcela da população que trabalha duro e sustenta a economia do país. Ou seja: quem vai pagar — e já está pagando — o pato do fim da farra das hipotecas é o povo trabalhador.

A reprodução no Brasil da lógica da crise

Em dezembro, no Brasil, o Conselho Monetário Nacional proibiu as instituições financeiras de cobrarem no país uma tarifa chamada TLA — Taxa para Liquidação Antecipada, que precisava ser paga quando alguém decidia quitar um empréstimo antes do final do prazo de pagamento. Mas a proibição da cobrança desta tarifa — cujo valor pode chegar a 10 mil reais — não está valendo para as operações de crédito realizadas no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação.

A exceção deixa claro duas coisas: o entusiasmo dos bancos com as novas regras para financiamento da casa própria no Brasil e a subserviência da gerência FMI-PT aos interesses dos bancos.

Luiz Inácio e seus asseclas ouviram os apelos do capital financeiro que opera no mercado habitacional, tratando de criar as condições para mais um longo período de "espetáculo do crescimento" de lucros bancários, esforçando-se para fazer valer em nosso país a mesma lógica, muito simples, que levou à crise do subprime no USA: quem deve ficar com os prejuízos da fanfarronice são as massas trabalhadoras.

A Administração Lula decidiu disponibilizar 8,4 bilhões de reais do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em 2008 para que os bancos lucrem com juros de até 8,16% ao mês sobre esta nada modesta quantia, mais a Taxa Referencial de atualização. Além disso, para que o contrato de financiamento seja assinado, extinguiu-se o limite de renda e de valor do imóvel. A nova farra começou no dia 2 de janeiro. Não faltaram executivos do setor imobiliário dizendo — com a polidez que lhes é peculiar — que as novas regras vão provocar o "aquecimento" e a "diversificação" do mercado.

Noves fora o esvaziamento ainda maior em 2008 do caixa do FGTS, o presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança, Luiz Antonio de França — que é também diretor do banco Itaú — já tratou de fazer ecoar a previsão de crescimento do crédito habitacional contratado somente com recursos da poupança: 25% ao ano até 2010.

Segundo estimativas de banqueiros, o crédito imobiliário deve alcançar 2,3% do PIB em 2008, 3,6% em 2009, e pode chegar a 10% do Produto Interno Bruto brasileiro em 2010. É um suculento e nunca antes visto filé mignon sendo preparado e servido aos bancos a custa da pauperização e do endividamento dos trabalhadores brasileiros, inclusive com o seu Fundo de Garantia garantindo apenas um imóvel que, quando for quitado daqui a 25 ou 30 anos, estará velho e desvalorizado.

Caso não consiga pagar juros ao longo de décadas, o trabalhador perde o imóvel, caso deseje saldar a dívida antes do prazo final, paga a multa da Taxa para Liquidação Antecipada. Sim, porque no Brasil do grande capital e das administrações coniventes com a exploração, quem opta por parar de pagar juros parece estar sujeito a isso mesmo: ser multado.

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