A absolvição de Calheiros no plenário do Senado, após ter sido condenado na Comissão de Ética da mesma casa, escarnece a nação com seu jogo de cinismo e velhacaria, confirmando-o como regra do modo de agir de um parlamento de pacotilha. O grosseiro desfecho manobrado pelo Palácio da Alvorada contou com o concurso da oposição. Não se trata, portanto, de fato isolado ou apenas de parte da instituição.
Por mais indignação e perplexidade que cause, não passa de mais um capítulo da crise de decomposição, em lenta agonia, de uma ordem injusta e putrefata. Ordem esta que as classes dominantes, seu sistema de governo, meios de comunicação e, de resto, todo leque oportunista insistem em fazer passar por democracia.
O caso Calheiros é muito revelador desta falência e contêm os mesmos elementos dos diferentes e frequentes episódios da crise política brasileira.
Dentre os fatores que pesaram para a absolvição estava aquele de farto conhecimento público: no embate surdo, Calheiros, impávido e obstinado, deixou claro que não cairia sozinho, mostrando que em seu saco de maldades a lista de criminosos nas esferas do poder não era pequena e, pelo visto, convenceu de sua disposição em utilizá-lo.
Já o Palácio e o PT tiveram que empregar todo seu conhecido "poder de convencimento", uma vez que são reféns de Calheiros e seu esquema no Legislativo, do qual dependem para aprovações de medidas e projetos cruciais e urgentes, como a prorrogação da CPMF, representando R$ 38 bilhões.
Pela cassação, dentro do Congresso jogaram os reformistas de sempre, entre bem intencionados e hipócritas, que se propõem limpar as "estrebarias de Áugias" do sistema para humanizá-lo e embelezá-lo. Obra que só Hércules, segundo a mitologia, pôde realizar tendo que para isto desviar o curso de um grande rio para lográ-lo ou o que fizeram as revoluções populares que varreram toda podridão junto com o sistema de exploração.
De fora, e com o poder de pressão que sempre exercem, retumbantes campanhas pela ética e em nome de uma "restauração" da moralidade atuaram através da "grande imprensa". Verdade seja dita, motivada, entre outras razões, por interesses contrariados com a instalação da CPI articulada por Calheiros, que investiga a compra da TVA do grupo Abril pela Telefônica. E só. Porque quanto à expectativa e respeito da imensa maioria da nação, que tanto se diz estar representada nos votos, de nada contou, para variar.
Ou seja, no imediato, a crise que há mais de três meses se arrasta no Senado em torno da cassação ou não de Calheiros foi arena da pugna de grupos de poder dos quais fazem parte, além dos políticos, corporações econômico-financeiras e das comunicações (imprensa). Seriam outros episódios de essência diferente? Não.
O desfecho descarado e asqueroso de mais um episódio das instituições do poder dominante, longe do que vitupera a chamada "grande imprensa", não são punhaladas na "democracia" e na "ética", mas sim golpes contundentes desferidos nas ilusões dos que, induzidos por esta mesma imprensa e partidos oficiais, crêem ou acreditavam piamente ser a ordem vigente, uma democracia ou sua consolidação.
Como temos insistido, este como outros episódios da crise política que inevitavelmente reaparecem no cenário nacional, seja no legislativo, no executivo ou judiciário, não são crises políticas isoladas num ou noutro partido, numa ou noutra parte das instituições do Estado, como comumente se faz crer.
É, sim, uma crise de todo o sistema de governo de uma velha ordem cujo Estado, com mais ou menos reformas, afunda-se na decomposição econômico-social, política e moral. Com a chegada do PT ao topo do gerenciamento deste Estado, entrou na ordem do dia o desmoronamento de uma legitimidade montada e arquitetada num processo eleitoral viciado e corrupto, cujos resultados são dados e definidos pelo poder econômico.
Não fora assim, a cantilena por uma "reforma política" como panacéia para os males do País não seria o tema que une o mundo oficial na intenção reparar sua indisfarçável crise de legitimidade.
A crise persiste e persistirá por tempo indefinido. É manifestação aberta da divisão das classes dominantes em suas contendas internas para decidir quem manda mais e exerce o controle do aparelho de Estado. Ao contrário de uma unidade que sempre buscam aparentar, a exemplo do "governo de coalizão" de Luiz Inácio, as classes dominantes se enfrentam e, regra geral, os governos são palco de continuada rinha intercalada por acordos temporários entre seus grupos de poder em prol da governabilidade de quem exerce o gerenciamento de turno.
Como todo fenômeno social, as crises políticas têm uma base material que as projetam e explicam. A base econômica de crise crônica, dada a condição semicolonial do País, subjugado, dependente e a serviço do grande capital imperialista, principalmente ianque, tem seu desenvolvimento condicionado pela luta, principalmente, entre as duas frações da grande burguesia, a burocrática e a compradora, ademais das contradições com a classe latifundiária e a feroz luta contra a resistência da classe operária e massas populares.
Por esta razão, as crises políticas não podem ser debeladas e superadas em definitivo nos marcos dessa velha ordem que oprime e impede a nação brasileira de se afirmar e completar-se. Sistema que se assenta no desenvolvimento de um capitalismo burocrático que explora e condena as massas trabalhadoras à miséria, que se apóia no monopólio da terra e no atraso da indústria. As economias das semicolônias têm a função de complementar as economias dos países imperialistas e estão cada vez mais entravadas e desnacionalizadas, portanto, dominadas.
Raízes históricas
Nesse capitalismo burocrático, há mais de um século as classes dominantes retrógradas e colonizadas — compostas por frações que se unem para oprimir o povo e que se confrontam pelo controle do aparelho do Estado — realizam, segundo seus imediatos e particulares interesses, a exploração do povo a serviço do imperialismo. A história da política dominante no Brasil, particularmente desde a Proclamação da República, é a história das crises políticas surgidas pelas pugnas entre as diferentes frações das classes dominantes.
O velho Estado brasileiro, inicialmente instrumento de uma classe de senhores de terras e burgueses compradores, continuou o mesmo com a "proclamação" da república, alterando apenas o sistema de governo, reestruturando-se quando da agudização das crises, segundo a fração que vencia no controle de seu aparato.
Com o Movimento de 30, uma nova fração emergente — a da burguesia burocrática — empalmou o centro do poder de Estado. De forma geral, e em meio às crises dos anos de 1940 a 1980, foi esta fração burocrática que manteve as rédeas do poder. De Vargas a Sarney — inclusive com o regime militar — invariavelmente prevaleceu o mando da burguesia burocrática.
Collor, mais como um acidente de rota, dada a própria divisão das classes dominantes, representa o retorno da burguesia compradora na hegemonia do Estado. Não sem razão FHC, em sua posse, afirmou ser sua eleição o fim da "era Vargas". Não que a fração burguesa burocrática signifique exclusivamente o peso da intervenção estatal na economia. Essa intervenção foi expressão da necessidade do próprio capitalismo enfrentar sua crise geral e mundial — que se desenvolveu em todo este período das décadas de 1930 a 1980 — e de combater a revolução proletária e os movimentos de libertação nacional.
A chegada do oportunismo (frente popular eleitoreira) ao gerenciamento do velho Estado, com Luiz Inácio à cabeça, revelou rapidamente a agudização dos conflitos entre grupos de poder. Dentre outros fatores determinantes, seu triunfo eleitoral só foi possível devido ao aprofundamento da divisão nas classes dominantes e em função dos interesses contrariados da fração burocrática, destronada desde Collor, que fez convergir poderosos contingentes econômicos e seus esquemas políticos eleitorais para a candidatura do PT.
Porém, a instalação do PT no gerenciamento do velho Estado não representa uma mera continuidade das crises, e sim seu agravamento, na medida em que novos grupos de poder se conformam, aumentando as pugnas.
O destino do oportunismo
As contradições entre as frações da grande burguesia e latifundiários não se dão por contradições programáticas. Todas servem ao imperialismo. A disputa é pelo mando e linha de aplicação. Daí que suas representações políticas estão unidas para aplicar as reformas antioperárias, antipovo e antinacionais que Luiz Inácio anunciou e busca desde já aplicar aos retalhos através da legislação extraordinária das medidas provisórias. E mesmo a união de situação e oposição para praticar os atos mais indecentes, como a absolvição de Calheiros e os acordos que conduzem a nada a maioria das CPIs.
Grosso modo, e em termos políticos, pode-se afirmar que hoje a diferença entre oposição e situação é que a fração compradora defende que a política ditada pelas agências do imperialismo deve ser aplicada sem a necessidade de se gastar tanto com a "bolsa-esmola", mesmo porque sua ampliação representou o fortalecimento eleitoral de Luiz Inácio, ao comprar o silêncio, a imobilidade e consciência de milhões, alienando-os e escravizando-os numa espécie de cativeiro da miséria assistida.
Este gerenciamento serve muito bem ao imperialismo e às classes dominantes locais, porque faz o papel de amortecedor das contradições de classes antagônicas. Porém, essa presteza demonstrada pelo PT e todo o oportunismo que o segue e apóia é mais lenha na fogueira das rinhas nas esferas de poder. Antes vestais da ética, o PT e seus áulicos em seu triunfo eleitoral se acham na vala comum da politicalha que alimenta e mantêm o sistema semicolonial de exploração e opressão de nosso povo e nossa nação. Experiência que serviu para bem mostrar que a causa das injustiças não estão determinadas em se os homens são maus ou bons. Mas sim, que depende de ser o sistema social de exploração ou não o que faz ter homens maus ou bons. E lutar por destruir a velha ordem de injustiça é caminho para construir a ordem justa.
Em todas essas crises cria-se a possibilidade de seu aprofundamento para a superação da ordem que as gera, a velha ordem semicolonial anacrônica e seu sistema de poder e de governo. Para que isso ocorra, é necessária exclusivamente a intervenção independente e organizada das massas populares na crise política. Quando isto não ocorre sempre é possível às classes dominantes, através de seus grupos de poder — mesmo em meio de suas contendas — pactuar tréguas para evitar perigar o sistema.
Só a intervenção das massas organizadas e independentes dos partidos eleitoreiros oportunistas poderá dar uma solução cabal à crise crônica no País. Até que isto ocorra, sofreremos todas as vexações desta politicalha porca que encobre e mantêm exploração, sofrimento, miséria, doenças, marginalização, alienação, corporativismo, etc.
Apesar de tudo, de todo este longo período de ofensiva da contra-revolução em todo mundo, que se assenta em destruir tudo e todas as conquistas das massas trabalhadoras, elas nunca deixaram de lutar. As massas trabalhadoras brasileiras, debaixo de toda traição de que têm sido vítimas, acossadas pelo aumento da exploração e ameaçadas de perder seu último direito, já se levantam em lutas que levam toda a reação à histeria, como ora o berreiro contra o direito de greve.
Além de ser causa de disputas no Congresso, não é à toa que, ante a desmoralização e descrédito das instituições do velho Estado, as campanhas pela ética na política — empreendidas de forma tão sistemática por esse monopólio da imprensa — procuram fazer algo antes que a soçobra do sistema se instale.
Não sem razão, alertam a canalha reacionária para o perigo. O povo, as massas, tudo vêem, pensam e sacam conclusões. Como afirmou famosa atriz, ao comentar para o Estado de São Paulo (14/09/2007) o triste espetáculo do caso Calheiros, com lucidez política clarividente: "Se eles podem tudo, nós também podemos. Temos que resolver na porrada".