Em AND 27, a reportagem A orla vendida descortinou a perseguição da prefeitura do Rio de Janeiro contra pequenos comerciantes das praias, mostrando que os reflexos desta disputa projetam-se além do interesse econômico imediato das partes envolvidas. O Rio vive, hoje, uma disputa territorial aberta entre diferentes setores sociais — disputa na qual os interesses mais poderosos servem-se de todas as armas. As praias são o território onde se trava uma das mais encarniçadas batalhas desta guerra. A outra é travada nas favelas. O processo em curso reflete um fenômeno presente em todas as grandes cidades brasileiras e bastante agravado nos últimos anos: a degradação da vida urbana pela privatização do espaço público e esvaziamento dos âmbitos de convívio comunitário.
Entre os traços que sempre fizeram do Rio o que ele é, está a convivência geograficamente muito próxima entre camadas sociais diversas. Durante décadas, denunciou-se o contraste entre a pujança de bairros como Ipanema e São Conrado e a pobreza dos habitantes das favelas neles incrustadas. A percepção deste contraste deu origem a diversas formulações equivocadas — por exemplo aquela que falava no “problema das favelas” quando, como dizia o professor Darcy Ribeiro, favela não é problema, mas solução; problema é a falta de moradia. Da mesma forma, o problema do Rio de Janeiro — e do Brasil em geral — não era e não é o contraste entre extremos de luxo e de miséria numa mesma paisagem, mas do modo de existência destes extremos no seio da sociedade.
Resistência X jogo sujo
Que no Rio eles (explorados e exploradores) tenham podido conviver fisicamente próximos por tanto tempo, é uma conquista dos pobres da cidade, que conseguiram preservar suas moradias contra diversas tentativas de expulsão. O contraste era a expressão mais visível do problema — nunca, porém, o problema em si — a não ser, naturalmente, para os que vêem a miséria simplesmente como um estorvo para os ricos obrigados a conviver com ela.
Mas é justamente esta a visão predominante, hoje, entre as classes dominantes, os meios de comunicação e a pequena burguesia da zona sul, que voltam a empunhar a bandeira da remoção das favelas, programa de décadas dos setores mais truculentos da direita carioca. Deve-se a Carlos Lacerda (no governo do estado) a transmutação do ódio de classe em política habitacional e urbana no começo da década de 60, quando iniciamse as remoções, todas elas realizadas com extrema violência, e a transferência compulsória dos moradores para bairros distantes do centro e da orla, como Jacarepaguá. A política de erradicação — que se valeu até mesmo de incêndios criminosos — teve seguimento com Negrão de Lima e sucessores, agora em virtude, antes de tudo, da rendosa promiscuidade estabelecida com a rapina imobiliária.
Diversas razões impediram que esta política fosse levada às últimas consequências. Além da resistência tenaz dos habitantes dos morros, concorreu para o fracasso dela a condição do Rio de cidade-síntese de um Brasil que então vivia um impasse e onde nenhum setor social podia impor-se de forma avassaladora aos demais.
A eleição de Leonel Brizola para o governo do estado, em 1982, também representou uma vitória importante da perspectiva de democratização do espaço urbano. As duas medidas mais importantes de Brizola neste sentido deram-se nos terrenos privilegiados da luta pelo espaço geográfico da cidade: a favela e a praia. Quanto à primeira, foram proibidas as remoções e promovidas diversas melhorias, com o fornecimento de infraestrutura, saneamento e material de construção. Quanto à segunda, facilitou-se o acesso dos moradores dos subúrbios pela imposição às empresas de ônibus da obrigação de realizar aos domingos os mesmos trajetos que levavam estas pessoas ao trabalho nos demais dias da semana.
Estas medidas valeram a ele o ódio da burguesia ociosa carioca. Não foi por acaso que a destruição do governo Brizola/Nilo Batista em 1993/94 por uma coalizão de interesses capitaneada pelas Organizações Globo — as mesmas que lideram agora a campanha pela remoção — tem início com o “arrastão” na praia de Copacabana, quando jovens favelados — supostamente “do Comando Vermelho”, entidade fantasmagórica que presta-se à explicação de tudo que acontece na cidade do Rio — descem do morro e promovem uma onda de assaltos e violência no preciso momento em que as câmeras da Globo achavam-se — claro que por “mero acaso” — instaladas nas areias de Copacabana.
Urbanismo positivista
Outro fator importante é que o Rio — assim como Belo Horizonte e Porto Alegre — é, pelo menos desde a reestruturação conduzida por Pereira Passos no começo do século XX —, uma cidade profundamente influcenciada pelo conceito urbanístico positivista. Este conceito, assim como a referida reforma, tem aspectos profundamente reacionários, como a idéia de que se pode controlar o desenvolvimento de uma cidade. É ridículo pensar que Belo Horizonte foi projetada para ter 10 mil habitantes no ano 2000, a maioria deles funcionários públicos. A própria fundação da capital mineira (como posteriormente a de Brasília) foi guiada pelo temor que inspirava na “elite” política mineira a tradição libertária de Ouro Preto (como, na nacional, a do Rio) e pelo desejo de uma capital sem povo.
Mas ele traz em si também diversas possibilidades de democratização da vida urbana, todas elas presentes em Belo Horizonte, Rio e Porto Alegre. Por exemplo, a transformação da área central da cidade em ponto de confluência entre pessoas de diversas origens e classes sociais pela concentração de funções públicas e instituições culturais; a ênfase em opções de lazer gratuito e espaços de convívio, largos e praças ajardinados, parques públicos localizados estrategicamente, ruas e calçadas feitas para pedestres, um traçado urbano que facilita o encontro, e não a dispersão de pessoas ; a preocupação com a construção de redes de serviços públicos; a busca da harmonia com a compleição natural da cidade.
Foi por conta deste potencial democratizante que, no período de gerenciamento militar, a organização das grandes cidades brasileiras foi significativamente alterada. As toneladas de concreto que o Estado despejou nelas desfigurou-as completamente, fez com que alguns lucrassem muito e serviu para direcionar os pobres às zonas limítrofes das cidades. Datam desta época crimes urbanísticos como o viaduto conhecido como Minhocão, em São Paulo, que destruiu a Avenida São João, e o muro da avenida Mauá, em Porto Alegre, que, ao risível pretexto de evitar enchentes, privou a população da brisa e da esplendorosa vista do rio (o Guaíba), em torno do qual a cidade cresceu. As universidades públicas, focos de efervescência política, foram retiradas das áreas centrais, onde o povo transita, e enviadas para campi cercados, em bairros distantes (UFMG para a Pampulha em Belo Horizonte, USP para o Butantã em São Paulo, UFRGS para a Agronomia em Porto Alegre), com o correspondente surto de especulação imobiliária.
Desde os primórdios das respectivas formações, São Paulo e Rio de Janeiro representam modelos antitéticos de vida urbana. A diferença essencial entre os dois municípios está em que o Rio é uma cidade no clássico conceito ocidental do termo, que tem muito a ver com o exposto acima —, e São Paulo, não.
São Paulo anti modelo
Tendo passado diretamente da condição de quase aldeia à de megalópole, a capital paulista apresenta-se como uma colcha de retalhos mal tecidos onde mesclam-se o provincianismo mais tacanho e as pretensões mais absurdas de cosmopolitismo sem, em nenhum momento, estar presente a dimensão nacional que o Rio de Janeiro sempre teve. São Paulo tem mais vínculos e uma identificação maior com as metrópoles do USA e com os municípios do interior paulista do que com qualquer outra cidade brasileira.
É uma cidade que praticamente desconhece o que sejam cultura, lazer, convivência comunitária e serviço público. O Estado é historicamente fraco como elemento de mediação, exceto para exercer a função repressiva — se bem que mesmo quanto a isto, as classes dominantes, no momento, recorrem frequentemente a serviços privados. Esta fraqueza e a forte presença da grande empresa (principalmente transnacional) acarreta a valorização do estilo de vida das classes endinheiradas e do próprio dinheiro em estado puro. De entreposto cafeeiro, tornou-se entreposto de transnacionais.
Isto ajuda a entender, por exemplo, por que São Paulo não tem um centro, isto é, no dizer de Beatriz Sarlo, “um lugar geográfico preciso, caracterizado por monumentos, cruzamentos de certas ruas e avenidas, teatros, cinemas, restaurantes, confeitarias, áreas de passeio” ao qual seus habitantes se dirigem “numa atividade especial, de feriado, como saída noturna, para fazer compras ou simplesmente para ver e estar no centro”.
As classes dominantes da capital paulista praticam o isolamento geográfico como princípio de vida: optaram por nascer e morrer sem nunca sair de meia dúzia de bairros (Jardins, Vila Olímpia, Morumbi, Higienópolis…). A tão propalada deterioração da área central da cidade — pretexto para mais um surto de especulação imobiliária — é consequência, e não causa, deste fato. Isto continuará a ser assim ainda que se venha a implantar os programas de “revitalização” da área central defendidos pelos setores dominantes e pelos tucanos enquistados na prefeitura — programas que consistem em iluminar prédios, proibir camelôs de trabalhar, desalojar mendigos que moram embaixo de viadutos.
Quanto a este último item, é digna de destaque a iniciativa do prefeito José Serra de instalar rampas cravejadas de objetos pontiagudos na região da Avenida Paulista com a finalidade de impedir mendigos de dormir em via pública. Em São Paulo, onde tudo já foi privatizado, nem a rua é espaço público mais.
Tal iniciativa, em si revoltante, torna-se ainda mais inspiradora de asco face à tragédia habitacional vivida por São Paulo. Toda capital brasileira tem suas favelas, mas nenhuma tem — ao menos não tão arraigado em sua cultura habitacional e em pleno centro — este acinte ainda maior à dignidade humana que são os cortiços da Bela Vista e adjacências (aí incluídos edifícios como 14 Bis e São Vito). No Rio de Janeiro, os cortiços foram demolidos pela reforma de Pereira Passos e seus habitantes acabaram expulsos para as favelas. Em São Paulo, porém, o avanço civilizatório representado pela favela em relação ao cortiço ainda não se impôs. Em contrapartida as favelas não precisarão ser removidas quando isso ocorrer: as que existem já estão todas na periferia, em lugares distantes mais de uma hora e meia dos bairros ricos.
Reacionarismo exportável
A remoção das favelas e a elitização da praia são aspectos da adesão descarada dos setores dirigentes do Rio a um modelo de organização urbana excludente, reacionário e policialesco que encontra em São Paulo seu paradigma e polo de irradiação. Este projeto já avança sobre as funções públicas: recentemente, o prefeito César Maia propôs a transferência da Câmara Municipal para a Barra da Tijuca. Responsáveis pela decadência econômica do Rio de Janeiro, os setores dirigentes da economia da cidade pretendem responder à crescente perda de peso político do estado com a negação de suas melhores características.
Mas não é só no Rio que os modismos experimentados em São Paulo parecem atrair adeptos: em Belo Horizonte, cidade que tem como principal atrativo sua tradição de vida boêmia, a prefeitura e o governo estadual cogitam imitar o exemplo paulistano e determinar o fechamento de bares à meia noite ou uma da manhã. Em Porto Alegre, fazem-se propostas de cercamento de parques. Em Florianópolis, o principal atrativo da cidade, o mar — e que o senso comum diria essencialmente gratuito, é transformado em objeto de especulação de interesses privados que expulsam comunidades de pescadores das áreas litorâneas para construir condomínios de luxo.
“O esforço de todos os poderes estabelecidos, desde a Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua” — disse Guy Debord, em A sociedade do espetáculo — culmina afinal com a “supressão da rua”. Acreditem, há quem ache isso bom.