A dignidade de quem não se entregou

A dignidade de quem não se entregou

Entrevista: José Maria Galhassi de Oliveira

A dignidade de quem não se entregou

Entrevista a Fausto Arruda e Patrick Granja


Durante evento de inauguração da nova sede de A Nova Democracia

“Como preso e torturado pelo regime militar e como alguém que viu desaparecer os melhores filhos do povo brasileiro sob o suplício covarde dos que se achavam no poder à época, e ainda se acham hoje, infensos a qualquer tipo de punição, não admito esta conciliação abjeta que Luiz Inácio trança com os torturadores”.

Foi assim que José Maria Oliveira, velho comunista, proclamou a sua indignação frente ao gerenciamento de Luiz Inácio e sua conciliação com os militares no acobertamento da selvageria praticada durante o gerenciamento militar do Estado brasileiro.

Nascido no Meier, zona norte do Rio de Janeiro — há 84 anos, José Maria   é uma figura simbólica do que deve ser um verdadeiro revolucionário e, mais do que isso, um verdadeiro comunista. Mesmo com a idade avançada e com alguns problemas de saúde, mantém uma militância diária, hoje, usando como trincheira o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos — Cebraspo . Incansável, participa de atos públicos, manifestações de rua, panfletagens e debates com a juventude. Esta juventude que – ele tem certeza — empunhará a sua bandeira vermelha quando der seu último suspiro.

AND – Quando, como e onde você entrou em contato com as idéias revolucionárias?

José Maria — Tudo começou quando eu entrei no Colégio Pedro II e liderei uma campanha contra o trote que era aplicado aos calouros e, na época, era dirigido pelo filho de um general do Estado Novo getulista. Depois do movimento, fui procurado por um jovem que me trouxe um livro e pediu que eu o lesse e, depois, discutisse com ele. O livro era o Manifesto do Partido Comunista e eu, filho de uma família de classe média e extremamente religiosa, fui modificando minhas idéias e descortinando em minha cabeça uma nova consciência. O jovem que me apresentou o Manifesto, posteriormente foi preso e torturado até perder a saúde e morrer tuberculoso. Otávio Baltazar, este era o nome dele, foi colocado num buraco de areia fechado por uma grade e, para que não dormisse, de hora em hora era jogado sobre ele água fria. A sua morte me trouxe uma indignação muito grande e aquela bandeira vermelha que ele empunhava não ficou no chão, tomei-a e mantenho-a erguida até hoje e a manterei até meu último suspiro quando, tenho certeza, haverá um jovem que a tomará e a manterá altaneira. Assim é a luta dos comunistas.

AND — Como se deu o seu ingresso no partido?

José Maria — Bem, aconteceram as discussões com o Otávio, mas foi a prática que me impulsionou a uma militância no Partido Comunista. Eu havia participado da campanha para o Brasil entrar na guerra contra a Alemanha, que havia invadido a União Soviética. A campanha foi vitoriosa, com a formação da Força Expedicionária Brasileira e o seu envio aos campos de batalha na Itália. Antes disso, o PCB já havia mandado vários voluntários para lutar contra os fascistas na Espanha, na França e na Itália. Toda esta movimentação enchia os jovens de entusiasmo e eu pedi meu ingresso no Partido. Transcorria o ano de 1944 e a União Soviética, com o glorioso Exército Vermelho, nos fazia vibrar com seus contundentes golpes contra a besta nazista. Foi assim até a vitória final, quando o soldado do Exército Vermelho colocou a Bandeira dos Comunistas no alto do Reichstag .

AND — E como foi a sua militância?

José Maria — Olhando de hoje, eu vejo que de 45 até 64 tive uma militância meio morna, condicionada pela direção oportunista que brecava nosso ímpeto revolucionário e que veio a piorar depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, onde Kruschov jogou toda a sua peçonha contra o grande Stalin e a ditadura do proletariado. O revisionismo de Kruschov   foi totalmente respaldado por Prestes no Brasil, que continuou com ilusões constitucionais em relação aos governos de Juscelino e Jango, o que redundou em sua total imobilidade diante do golpe militar de 64.


Junto aos camponeses no 1º de Maio Classista de 2007 em Belo Horizonte

AND — O clima de insatisfação no Partido depois do XX Congresso do PCUS, realmente, era muito grande, tanto assim que em 1962 vários comunistas tomaram a iniciativa de reconstruir o Partido que segundo eles havia sido destruído pelo grupo revisionista de prestes. Como você acompanhou estes debates?

José Maria — Eu vivia em Vassouras, lá foi meu laboratório para entender a luta de classes a partir da exploração, da corrupção e do apodrecimento das classes dominantes locais. O debate ideológico, entretanto, não chegou até nós com a radicalidade que aconteceu nas capitais, como Rio e São Paulo.   O que veio a nos indignar mesmo foi o imobilismo do PCB em relação ao Golpe. Aí começamos a estudar e nos organizar como dissidência até que em 1966 encontrei o Getúlio de Oliveira Cabral, que também estava ligado a outro grupo dissidente e juntos   participamos da fundação do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). Getúlio também foi preso e assassinado pelos militares, que fizeram uma encenação para passar para a população que ele havia sido morto numa troca de tiros com a polícia. Naquela época, todos os grupos dissidentes discutiam como fazer a resistência armada e aí havia a influência da Revolução Cubana e da Revolução Chinesa e foram criadas várias organizações que em sua maioria ficou sob a influência cubana.

O PCBR, sob a direção de Mário Alves, cujo assassinato sob violenta tortura completou 40 anos, se diferenciava das demais organizações de resistência armada pelo fato de colocar a importância do Partido como uma necessidade para a condução da luta contra o regime e pela realização da revolução. Por este motivo nos recusamos a participar da frente ampla que, na época, foi articulada por Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Jango, Juscelino, Brizola, Arraes, o PCB e outros. Eles queriam a volta das liberdades democráticas, isto já lhes contentava. Nós queríamos levar a luta até o socialismo. Mas, o PCBR terminou caindo também no militarismo e, depois da morte de Mário Alves, foram caindo um a um os militantes que estavam à frente das ações armadas e, como não desenvolvemos uma sólida relação com as massas, os militares nos isolaram e partiram para o massacre, com prisões e assassinatos que hoje nós temos conhecimento através das várias denúncias que foram feitas pelos que passaram pelos cárceres e conseguiram contar a história.

AND — Foi dentro deste quadro que aconteceu sua prisão?

José Maria — Nós estávamos numa determinada região fazendo um reconhecimento e fui chamado pelo nosso comandante, que me propôs uma missão que tinha a possibilidade muito grande de uma prisão: havia a suspeita de que um elemento que saíra do presídio de Linhares teria tido um péssimo comportamento e, inclusive, teria passado para o lado do inimigo, este elemento estaria morando em Goiânia e eu teria que tirar a história a limpo. Fui cobrir um ponto que havia sido marcado com ele, mas cheguei muito cedo. À distância, fiquei observando a chegada da polícia se colocando em posições estratégicas e depois a chegada dele no horário previsto. Mantive a observação até a hora que eles se desmobilizaram e depois segui o traidor e descobri onde era a sua casa, a qual passei a observar até o dia que coincidiu de eu estar observando e ele saiu. Então, encostei nele e, após o susto, ele passou a me responder às indagações sobre seu comportamento. Tudo indica que a repressão também o estava observando, pois eu notei que nós havíamos sido fotografados. Eu precisava encontrar meu irmão, no dia seguinte, para receber um dinheiro e uma hora antes eu fui agarrado em pleno centro da cidade.

AND — E daí para frente como as coisas transcorreram?

José Maria — Fui levado para o Rio de Janeiro e de lá direto para as instalações do Doi-Codi , o centro de tortura do regime militar. Lá fiquei por cento e vinte dias, sofrendo as mais variadas formas de suplício: espancamento, choque elétrico, pau-de-arara, telefone. Os interrogatórios se alternavam de forma irregular em seus intervalos e quando saía de uma sessão de tortura eu chegava na cela, quase sem força nenhuma, tomava um banho e fazia exercícios para manter o corpo rígido, pois sabia que viria nova pancadaria. Neste intervalo minha esposa e minha filha, com doze anos, foram presas e minha esposa foi torturada para dar informações que ela não tinha a menor idéia. É preciso que eu diga que quando tomei a decisão de aderir à luta armada eu tinha quatro filhos pequenos, aos quais deixei as condições para sua sobrevivência e mantidos afastados de minha atividade. Minha companheira e minha filha, portanto, nada sabiam de minha vida. Foi aí, dentro da prisão, que eu passei a ter consciência do que é a covardia: os oficiais do exército e seus comandados a torturarem as pessoas muitas vezes debaixo da maior gozação, com gargalhadas e xingamentos sem ter nenhuma condescendência com o ser humano que ali estava, impotente e sem a mínima   condição de esboçar a menor reação. Já havia lido sobre as atrocidades do exército brasileiro em relação aos paraguaios, ao povo de Canudos e aos povos indígenas, mas ao sofrer na própria pele a covardia dos militares nas dependências do Doi-Codi é que eu vim, realmente, a tomar consciência do grau de perversão e covardia extremos de que eles são capazes.

Depois dos cento e vinte dias do chamado inquérito policial, me tiraram para um quartel que não consegui identificar e onde aconteceu algo interessante: ao chegar escoltado à entrada do quartel o oficial de dia barrou os homens do Doi-Codi e mandou chamar o seu comandante, que depois de ouvir as colocações da minha escolta retrucou que iria receber o prisioneiro por um dia, por razões humanitárias, mas ele era um general do exército brasileiro e não um carcereiro. No dia seguinte, sob forte escolta, fui levado para o Regimento Sampaio, onde fiquei mais um ano e seis meses.

AND — Muita gente após sair da prisão resolveu “cuidar da vida”, se afastar de qualquer atividade revolucionária e, até mesmo, renegá-la. Outros mantiveram-se na luta. No seu caso qual o rumo você tomou?

José Maria — Eu já falei aqui que empunharei a bandeira vermelha até meu último suspiro. Depois da prisão veio a avaliação sobre os rumos tomados, a constatação de que são as massas que fazem a história e não pequenos grupos vanguardistas. Uma vanguarda sem massas é vanguarda de si mesma. Assim passei a buscar trabalhar com quem tinha o mesmo projeto. Foi numa perspectiva de transformar o projeto de criação do PT num partido de feição marxista-leninista que fiquei 11 anos travando luta dentro daquela organização e apesar de ter sido advertido, desde o primeiro momento, de que este projeto era do interesse dos setores mais reacionários como a igreja, os militares e o imperialismo, eu tive a ilusão de achar que se travássemos a luta dentro do PT poderíamos levá-lo a um bom caminho. Não deu, o tempo que lá estive, porém, foi suficiente para ter clareza de que a prática do PT no gerenciamento do Estado brasileiro não representa nenhuma traição. Ele sempre foi isso mesmo: criado para a conciliação com o imperialismo, o latifúndio e a grande burguesia. Só que, para enganar os incautos, teve que num certo momento desenvolver um discurso e uma prática radicalóide . Nós é que nos iludimos de que Lula, Dirceu, Genoíno, etc., tinham um mínimo de intenção revolucionária. Aliás, olhando de hoje, vemos que essa turma toda que hoje gerencia o Estado brasileiro em aliança com os latifundiários, a grande burguesia e o imperialismo é a mesma turma que fez o acordo da anistia em 1979 e que já aos sete anos no gerenciamento do Estado nada fez em buscar estabelecer a responsabilidade dos militares e da instituição como um todo nas barbaridades cometidas durante o regime militar. Esse episódio do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos revela mais uma vez a pusilanimidade deste oportunista chamado Luiz Inácio. Não que eu esperasse que alguma coisa do plano original fosse implementada, porque como qualquer política de Estado foi elaborado para preservá-lo, mas o que toca à “comissão da verdade e conciliação”, que já era mais conciliação que verdade, selou apenas a conciliação de Luiz Inácio com os militares.

Como preso e torturado pelo regime militar e como alguém que viu desaparecer os melhores filhos do povo brasileiro sob o suplício covarde dos que se achavam no poder à época, e ainda se acham hoje, infensos a qualquer tipo de punição, não admito esta conciliação abjeta que Luiz Inácio trança com os torturadores. Várias vezes tive oportunidade de estar frente a frente com Luiz Inácio da Silva. Hoje, se tivesse essa oportunidade, eu colocaria a mão sobre o seu ombro, olharia nos seus olhos e diria: Luiz Inácio você é um fraco, um farsante. Quanto a mim, não aceito nem me conformo, seguirei com minha militância revolucionária e exijo a apuração completa e punição exemplar para todos os torturadores e criminosos de guerra do regime militar.

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