A próxima adoção do sistema pré-pago para o fornecimento de água nos estados de Goiás e Tocantins, e a privatização da Cedae, no Rio de Janeiro, são consideradas uma nova etapa de um processo de eliminação dos monopólios governamentais do “ouro líquido” e de transformação de bens naturais em commodities*, atendendo grupos econômicos transnacionais que disputam os mercados de saneamento e de água engarrafada no mundo inteiro, de valor estimado em US$ 800 bilhões.
No sentido horário: o cartão pré-pago, o medidor digital de consumo e a turbina que substituirá o hidrômetro no novo
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A ofensiva das empresas transnacionais no mercado da água nos últimos 10 anos é indício de que a humanidade perde para os monopólios corporativos o controle de seu recurso mais vital. Analistas americanos e europeus apostam que esses grupos, num prazo máximo de 15 anos, estarão controlando de 65 a 75% dos serviços de água atualmente públicos.
A notícia de que a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos), última remanescente das empresas estatais do Rio, completou 29 anos no mês de maio amargando um prejuízo acumulado de R$ 1,8 bilhão, estrutura inchada e, ainda assim, pagando média salarial de R$ 3.600, coincidiu com a decisão da Saneago (Empresa de Saneamento de Goiás S/A) de cobrar uma taxa mínima até dos consumidores que dispõem de poços artesianos, e a revelação, pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de que a população brasileira tem intensificado o consumo de água engarrafada, por suspeitar cada vez mais da qualidade do produto fornecido pelas estatais. As maiores empresas que disputam este mercado — as francesas Vivendi Génerale dês Eaux , Suez-Lyonnaise dês Eaux e Sauer-Bouy-gues; a RWE-Thames Water, da Alemanha; a Enron, dos Estados Unidos, e as inglesas United Utilities, Severn Trent, Anglian Water, e Kelda Group — apontam a mercantilização e a privatização como soluções ideais para anunciada crise global de falta d’água.
A agricultura e a pecuária são responsáveis por 80% do consumo de água do mundo: é a chamada “água virtual”, restando apenas 10% para consumo humano. Governos e instituições internacionais, armados de dados e documentação, apregoam que, ante a escassez, o melhor é dar preço à água, colocá-la à venda e deixar que o mercado se encarregue do futuro (!?).
Água no pré-pago
O chamado sistema pré-pago de fornecimento de água também é considerado uma das etapas que precedem a quebra do monopólio dito estatal. Ele funciona do seguinte modo: instala-se no imóvel, em lugar do hidrômetro, um aparelho acoplado a uma central eletrônica, que fica ligada a um gerenciador de consumo. Conectado via telefone ao computador central da companhia de saneamento, o gerenciador é recarregado a partir da senha do cartão pré-pago. Estes cartões são como os de recarga de aparelhos celulares, e a quantidade da água a ser consumida varia conforme os créditos adquiridos. Esgotados os créditos, tem-se de recarregar novamente o gerenciador. Se o consumidor não tiver como comprar novo cartão, ele contrairá um empréstimo (uma das funções do gerenciador) a ser descontado no próximo cartão de recarga. Terminados novamente os créditos, se não houver recarga, a água será cortada.
E vão fazendo
No Brasil, há pelo menos três empresas testando o sistema pré-pago: a Companhia de Saneamento de Tocantins (Saneatins), a Saneago de Goiás e a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp). A experiência da Saneago envolve 800 domicílios de Abadia de Goiás, enquanto a Sabesp faz testes em laboratório e protela a utilização do sistema por considerar demasiadamente elevados os custos de instalação.
Primeira a testar o sistema no Brasil, a Saneatins aguarda apenas autorização do Procon (Superintendência de Proteção e Defesa do Consumidor) e do Ministério Público para implantá-lo comercialmente. A empresa tem a coragem de declarar que esse instrumento é a melhor solução para a inadimplência. Ressalta que possibilita ao consumidor o contro-le dos gastos, a detecção imediata de vazamentos e aquisição de água de acordo com a disponibilidade financeira, de um lado e, de outro, antevê a redução das reclamações, fraudes do processamento de dados e do volume de água produzido, devido à melhor utilização e controle do consumo.
Além do Brasil, países como África do Sul, USA, Curaçao, Nigéria, Tanzânia, Suazilân dia, Sudão, Malawi, e Namíbia já estão se submetendo ao sistema pré-pago, sobre o qual o Banco Mundial afirma ser “uma forma eficiente de reduzir a falta de pagamento pelos serviços, o aumento da dívida das áreas pobres, bem como de acelerar a participação do setor privado na prestação de serviços de abastecimento.”
O impacto de sua implementação, todavia, como era de se esperar, é desastroso. O Reino Unido começou a privatizar o fornecimento dos serviços de água na década de 90, e em 1992 os problemas começaram a surgir com o aumento dos casos de desinteria em diversas cidades, devido ao corte da água para consumidores inadimplentes. O governo entendeu que a suspensão do abastecimento de água é uma ameaça à saúde e decretou sua ilegalidade.
As empresas então resolveram implantar outro artifício: o sistema de medidores pré-pagos, transferindo para os consumidores a responsabilidade do corte, dando a impressão de que eles próprios iriam se desconectar caso não tivessem como comprar cartões. Em Birmingham, 2.400 residências ficaram sem abastecimento e o problema foi parar na Justiça. Em 1998 foi promulgada a Lei da Água, que proibiu de uma vez por todas a introdução do sistema pré-pago.
Uma falha no sistema de medidores pré-pagos instalado na comunidade rural de Madlebe, em KwaZulu Natal, África, provocou um corte de três semanas no abastecimento de 20 mil famílias, que passaram a usar água de fontes contaminadas, o que resultou numa epidemia de cólera. Os equipamentos voltaram a trabalhar, mas enguiçaram de novo e a epidemia se alastrou, chegando a infectar 113.966 pessoas, com 259 mortes, entre agosto de 2000 e fevereiro de 2002. O sistema pré-pago foi abandonado e o governo restabeleceu as torneiras públicas. No Brasil, numerosos advogados afirmam que a possibilidade de interrupção do fornecimento de água trazida pelo novo sistema fere o princípio segundo o qual os órgãos públicos têm de fornecer de forma contínua os serviços considerados essenciais.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) ainda reputa como essencial o abastecimento de água e, por este motivo, deve ser oferecido de forma gratuita para aqueles que não podem pagar. De acordo com o Comitê da ONU para os Direitos Econômicos Sociais e Culturais, o direito humano à água é um pré-requisito para a realização dos outros direitos. O Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça do Brasil considera preocupante a possibilidade de corte automático do fornecimento de água por causa da relação direta do recurso com a saúde pública.
Povo X Nestlé
Porém, longe de frear a ganância dos trustes, eles já controlam o abastecimento de cerca de 60 municípios brasileiros, destacando Manaus, Campo Grande e Limeira (SP). Mas um conflito entre a Nestlé e a população de São Lourenço, estância hidromineral mineira onde há nove fontes de águas minerais mundialmente conhecidas, deixa entrever a dimensão dos problemas que surgirão no futuro.
Ao adquirir o controle acionário do Grupo Perrier Vittel, no meio da década de 90, a Nestlé ficou também com o Parque de Águas de São Lourenço, que a Perrier comprara para explorar a conhecida “Água Mineral São Lourenço”. Seu objetivo, porém, era outro: instalar ali a primeira fábrica de “Pure Life”, água purificada e adicionada de sais, desenvolvida especialmente para os chamados países do “Terceiro Mundo”. Por se tratar de um “conceito” internacional, a “Pure Life” deve ter sempre a mesma fórmula e o mesmo padrão, seja ela produzida no Brasil, na Índia ou no Paquistão. Para isto, pouco importa se vai se utilizar água mineral — uma água rara, nobre — para a fabricação de uma água de mesa desmineralizada e artificialmente enriquecida de sais.
Tendo lançado uma fábrica no Paquistão, em 1998, dois anos depois a Nestlé obteve licença para construir uma “Pure Life” em São Lourenço, a despeito da alta vulnerabilidade da área, devido à proximidade dos aquíferos da superfície e do risco deles serem contaminados. Logo os efeitos se fizeram sentir: secou uma das fontes do parque, a magnesiana…
Um grupo de cidadãos, inconformado com o desaparecimento da fonte magnesiana e com o dano causado ao Parque, fundou o Movimento de Cidadania pelas Águas de São Lourenço, que obteve do Ministério Público o ajuizamento de ação civil pública contra a empresa. Perdendo a causa, a corporação estrangeira fechou a fábrica por dois dias apenas, mas recorreu da decisão. Surpreendentemente ganhou o recurso e aguarda um novo julgamento.
As iniciativas da Nestlé de privatizar as águas minerais também estavam acontecendo na Suíça, país sede da transnacional, na cidade de Bevaix. A mobilização dos cidadãos de Bevaix conseguiu bloquear o processo de privatização de suas fontes minerais e deu início a um movimento de solidariedade internacional que conseguiu resultados satisfatórios. No Fórum Mundial de Davos, essa desmoralizada instância colaboracionista, Peter Brabeck, presidente mundial da Nestlé, declarou que a fábrica de São Lourenço seria fechada e que a desmineralização das águas minerais acabaria.
No mesmo dia que a imprensa suíça denominava celebração da vitória da sociedade civil, autoridades brasileiras se apressaram a socorrer a Nestlé. Em poucas semanas — contra uma recomendação do Ministério Público Federal — o Conselho de Política Ambiental (Copam) de Minas Gerais concede uma “licença corretiva” para o funcionamento da fábrica “Pure Life” em São Lourenço e o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) anunciou a publicação de uma nova portaria permitindo a desmineralização parcial das águas minerais, adequando claramente a legislação brasileira aos criminosos interesses de uma transnacional. Ninguém foi preso.
*comercialização pelos maiores centros financeiros (onde são ditadas as cotações) de um produto de grande importância econômica, em estado bruto. A maioria dos negócios é realizada a termo, ou seja, pagamento e entrega da mercadoria a futuro.