A dupla fraude da inflação e do salário mínimo (parte 2)

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A dupla fraude da inflação e do salário mínimo (parte 2)

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Há anos, ou décadas, os trabalhadores escutam que seus salários — especialmente o mínimo — sobem acima da inflação. Escutam isso da imprensa mercantil monopolista, das facções parlamentares, de economistas das duas correntes do sistema (“monetaristas” e “desenvolvimentistas”) e, desde que o PT chegou a gerência de turno federal, de seus sindicatos.

É difícil entender como os brasileiros não estão todos riquíssimos. Afinal, se o menor salário que pode ser pago no país sobe mais que o custo de vida desde 1995 e em ritmo intensificado desde 2003, a remuneração do trabalho já deveria ter atingido a estratosfera.

No entanto, o poder de compra dos salários cai a olhos vistos ante a disparada dos preços e o salário mínimo compra um quarto do que deveria (na melhor das hipóteses, metade, considerando um domicílio com dois adultos assalariados e duas crianças).

Para entender esse abismo entre as estatísticas oficiais e a realidade, AND pesquisou os critérios de cálculo da inflação oficial. Para isso, foram consultadas duas publicações do IBGE sobre o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), fator legal de reajuste do salário mínimo: Métodos de cálculo (2012) e Estruturas de ponderação a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 (2014).

Essas publicações revelam diversos aspectos que tornam o INPC imprestável como medida da evolução do custo de vida, principalmente para quem ganha o salário mínimo.

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Teoricamente, o INPC mede a variação do poder de compra da população com renda disponível (isto é, após descontos) entre 1 e 5 salários mínimos por mês. Só isto já torna pouco recomendável seu uso como indexador do salário mínimo: afinal, como admite o próprio IBGE, quanto menor a renda de alguém, maior sua parcela comprometida quando os preços aumentam.

Se um quilo de arroz sobe, por exemplo, de R$ 2 para R$ 3, esse comprometimento adicional de R$ 1 na compra de alimentos terá, para quem ganha um salário mínimo (R$ 880), peso cinco vezes maior que para quem recebe cinco (R$ 4.400). Assim, se o INPC retrata a média da variação do poder de compra da população cuja renda disponível começa no salário mínimo e vai até o quíntuplo dele, ele será sempre muito menor que a efetiva desvalorização do piso remuneratório legal.

Curiosamente, o IBGE desconsidera, no cálculo do INPC, famílias com renda disponível menor que o salário mínimo (o mesmo R$ 1 de aumento no arroz do exemplo citado teria, para quem ganha R$ 440, o dobro do impacto que para quem recebe R$ 880). Se essa faixa da população fosse considerada, a média final representada pelo INPC estaria um pouco menos distante da variação de poder aquisitivo do menor salário legal.

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Outra consequência do foco do INPC em domicílios com renda disponível até 5 salários mínimos é que entram em seu cálculo itens fora da realidade de quem recebe o piso legal ou algo próximo a ele. Famílias com renda igual ao salário mínimo não têm empregadas domésticas, cujo salário é um dos “preços” considerados no INPC. Tampouco frequentam escolas particulares (a não ser com bolsa integral), nem contratam seguros. É quase impossível que tenham carro e, se o tiverem, será isento de imposto pela idade. Mas mensalidades escolares, seguros privados e IPVA também entram na composição do INPC.

Como o aumento desses itens é menor que o dos ônibus ou dos alimentos, eles puxam para baixo a inflação oficial medida pelo índice em questão.

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A inclusão do IPVA no cálculo da inflação é questionável também sob outro prisma. Automóveis, como se sabe, perdem valor ano após ano — em muitos casos, acentuadamente.

Assim, o IPVA pago pelo proprietário de um carro sempre cai de um ano a outro (exceções por decisão política de aumento de tributos são isto: exceções). O que o INPC não capta é que o IPVA cai porque cai o valor do patrimônio.

Um quilo de feijão comprado em 2016 é a igual a um quilo de feijão comprado em 2015. Por isso, faz sentido comparar seu preço de um ano a outro. Mas um carro fabricado em 2005 não é a mesma coisa em 2015 ou em 2016: no ano passado, se tratava de um automóvel com 10 anos; hoje, se trata de um com 11. Não faz sentido contabilizar como deflação a variação de um imposto que só cai porque incide agora sobre um bem de menor valor.

Curiosamente, o IPTU, imposto conceitualmente igual ao IPVA, não entra na aferição do INPC. Afinal, diferentemente do que ocorre com carros e motos, imóveis e os tributos sobre eles podem aumentar — e aumentaram — muito de preço entre um ano e outro.

O pretexto do IBGE é que o carro seria um item de consumo, ao passo que imóveis são considerados aplicação financeira. Isso é verdade para um ínfimo grupo de brasileiros em condições de se dedicar à especulação imobiliária, mas não para uma família que ganha um salário mínimo — ou mesmo cinco.

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Ainda pior é o modo como a compra e venda de veículos usados entra no cômputo do INPC. Segundo o IBGE, “do valor total das despesas na compra de automóveis usados deduz-se o valor total da venda de automóveis usados efetuados pelas famílias”.

Uma família em dificuldades financeiras que tenha um automóvel pode optar por trocá-lo por outro mais barato, ou simplesmente vendê-lo e ficar sem nenhum. Se muitas famílias se veem levadas a fazer isso de um ano a outro, a diferença entre os preços de compra e de venda de carros usados diminuirá e, a depender da situação, o valor total das vendas de carros e motos usados poderá superar o das compras. O empobrecimento pela perda de patrimônio, assim como no caso do IPVA, será contabilizado como deflação, puxando o INPC para baixo.

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O mesmo problema se dá na medição de despesas com aluguéis. Contabilizam-se o valor gasto pelas famílias trabalhadoras a esse título e sua variação de um ano a outro, sem levar em conta a eventual piora dos locais de moradia.

A ampliação do crédito imobiliário a partir do início do 2º mandato de Lula, por um lado; e, nas capitais (sobretudo no Rio de Janeiro), a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, por outro, levaram a uma disparada no preço dos imóveis, para compra ou locação. Com isso, uma enorme quantidade de pessoas e famílias precisou sair das casas ou apartamentos onde moravam para outros de pior localização e/ou qualidade construtiva.

Porém, ao acompanhar a evolução dos gastos de um assalariado, o INPC não mede o aumento do valor de um apartamento em Copacabana onde antes vivia um casal com renda de cinco salários mínimos — o que era possível uns dez anos atrás. Mede, em lugar disso, a diferença entre o que o casal em questão gastava para viver em Copacabana e o que hoje gasta para morar num imóvel pior em bairro idem. Salvo uma eventual transformação em cortiço, o apartamento antes habitado sai do espaço amostral do INPC porque quem nele vive agora tem renda mensal superior a cinco salários mínimos.

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A explosão do preço de compra dos imóveis tampouco é medida pelo INPC. Como no caso do IPTU, a compra de uma moradia é considerada aplicação financeira, e não consumo. Além disso, despesas relacionadas a pagamento de dívidas — quer se trate de empréstimo consignado, financiamento habitacional ou juros de cheque especial — também não são consideradas consumo, mas “diminuição de passivo”, como se o assalariado fosse empresa.

Num país onde, segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC), 62% dos consumidores têm alguma dívida e 30% da renda das famílias se destina ao pagamento delas (dados de julho de 2015), essa distorção joga por terra qualquer resto de credibilidade que um índice inflacionário que não leva esses gastos em consideração ainda pudesse ter.

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