A esperança do continuísmo

A esperança do continuísmo

A frente popular eleitoreira ascendeu ao centro do aparelho de Estado envolta em um misto de medo, por parte das classes dominantes, e de esperança dos mais de 45 milhões que a elegeram. Concluídos 25% de seu mandato, inegavelmente devido ao esforço do governo em mostrar-se confiável aos potentados, o medo passou. Quanto às esperanças, essas restam apenas para aqueles que, de tão oportunistas, fingem estar querendo atrair ou forçar uma guinada do governo para a esquerda. A gerência petista é um embuste. Não restam dúvidas sobre quem venceu as eleições: foi o FMI. O governo Luiz Inácio é a continuação e o aprofundamento do governo Cardoso. 

Culpa do passado

Ensinam as velhas raposas, a tradição da política eleitoreira aprecia acusar as administrações anteriores — recurso que lhes concede um precioso tempo, até tornar claro para todos que nada mudou na nova gerência. Luiz Inácio demonstrou que sabe de cor a lição. Ao longo de 2003, muito se falou que a “herança maldita” impedia o avanço do governo na resolução dos “graves problemas sociais que assolam o país há décadas. Seriam necessários “ajustes”, “arrumar a casa”, e tantas outras metáforas usuais possíveis de serem empregadas.

Deve-se admitir, a situação do país no final de 2002 era caótica: concentração de terra — uma das maiores do mundo —, índices estratosféricos de desemprego e a economia estagnada. O governo seguia à risca os ditames do FMI e se esforçava em usurpar os direitos conquistados à custa de muita luta pelos trabalhadores. A carga tributária já demonstrava ser insuportável, e havia ainda o descalabro de um presidente do Banco Central que fora funcionário de um mega especulador do mercado financeiro internacional.

Não se pretende apontar o que o governo deveria ter feito para mudar a situação do país, muito menos supor que pudesse adotar um programa democrático destruindo o latifúndio, pondo um fim ao pagamento da dívida, ou promover a nacionalização dos bancos. Simplesmente trata-se de demonstrar que a única herança recebida foi a tarefa de aprofundar a dominação imperialista, a sangria do país e o sofrimento do povo — o que cumpriu a contento, sendo elogiado internacionalmente. Todo o palavrório sobre a “herança maldita” era puro diversionismo.

Hoje fazem propaganda de que a política de ajuste do imperialismo é necessária como premissa para a retomada do crescimento. Primeiro, deve o país permitir e facilitar que o parasita sugue até a última gota do seu sangue. Depois, o parasita permitirá que a vítima cresça saudável e radiante. Profundo sofisma!

Continuando Cardoso

O sistema de metas do superávit primário foi criado em 1998, no governo Cardoso, sob as ordens do FMI. Ao elevar sua meta de 3,75% para 4,25% do PIB (Produto Interno Bruto), a equipe econômica quis mostrar que do príncipe dos sociólogos ao operário padrão nada mudou. O novo governo continuará o trabalho de seu antecessor.

Para garantir a “saúde fiscal do país” nos próximos anos, tomaram-se medidas contundentes, como a Reforma Tributária, que “tende a garantir o lado das receitas para o governo”. A CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) tornou-se permanente. Receitas para o governo, metas atingidas, aumento de carga tributária, pura e simples.

Cardoso bem que tentou, mas, dificultado pelo próprio PT, não conseguiu implementar a Reforma da Previdência. Assumida a nova gerência, tudo muda: prevalecem os interesses dos fundos de pensão ianques para assumir parte do negócio da Previdência no Brasil. Os aposentados, que por hobby fazem fila na porta da Previdência, recebem denominação desrespeitosa de privilegiados — deles se diz receber aposentadorias milionárias — e sai a reforma da Previdência.

É verdade que o Banco Central não é mais presidido por um funcionário de uma corretora internacional, mas pelo ex-presidente do Bank of Boston. Vale lembrar, este membro do PSDB teve seu nome anunciado diretamente da sala do patrão, no USA, naquela tomada de benção a que todos os governantes subalternos se prestam antes de assumir a presidência.

Exportar é o que importa

O governo chamou ao palácio a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para conversar sobre sua reforma agrária. O MST desta vez não fez estardalhaço. O governo encomendou estudos para uma política de reforma agrária e o clero lhe apresentou a proposta destinada ao “assentamento” de um milhão de famílias até 2007. O governo respondeu com a proposta de 440 mil, num show de hipocrisia, onde não se sabe quem engana quem. Quase nada foi feito em 2003. Luiz Inácio cinicamente argumenta que não vai “levar a pobreza da cidade para botar no campo” — pretexto para não fazer absolutamente nada.

O problema agrário, principal contradição do país, vai se agravando e a resposta do governo é a conciliação com o latifúndio, a defesa radical da grande propriedade privada e monopolista da terra combinada com a criminalização das lutas camponesas. Em meados do ano, quando o movimento camponês radicalizou e ocorreram dezenas de invasões de fazendas por todo o país, a imprensa reacionária pôsse a gritar que a “desgraça” estava no fato do governo contemporizar com o MST. O governo respondeu que o problema tinha sido provocado por uma declaração infeliz do superintendente nacional do Incra, ao afirmar que seriam “assentados” apenas aqueles que estivessem acampados. O funcionário foi exonerado e tudo o mais resolvido.

Os oportunistas, espremidos, procuravam convencer suas bases de que a radicalização era produto da esperança depositada no governo pelos camponeses. Cada uma dessas forças tem sua razão para ocultar a verdade. Qualquer análise profunda da questão agrária pode ser dispensada para entender que o agravamento dos conflitos no campo tem por causa o empobrecimento brutal e rápido das massas populares, particularmente as camponesas.

O governo tenta encobrir a crise no campo, anunciando super safras de grãos, enaltecendo ao máximo o “agronegócio” — para quem todas as promessas do governo são cumpridas, inclusive a liberação da safra de transgênicos. Para os pobres do campo, a mesma conversa fiada de sempre: os contos do “crédito barato” e política de “preços mínimos”. Os oportunistas da direção do MST — desmascarados nas suas próprias bases que não aceitam a enrolação do governo — terão que montar muitas farsas para continuar apoiando a gerência petista.

João Pedro Stédile, principal dirigente do MST, abre a luta contra as lideranças combativas desse movimento. Ele as acusa de idealismo, quando as mesmas propõem passar à defesa ativa na luta contra os bandos armados dos latifundiários e a revidar a repressão do Estado. No episódio das prisões e soltura das lideranças do Pontal, ficaram claras as manobras do governo, e do aparato judicial, para quebrantar a vontade de luta do movimento camponês.

Preposto de Washington

Não bastasse a nova gerência atender internamente aos desígnios ianques (ver em AND 15: “O que seu mestre mandar…”), na política exterior ela tem prestado grandes serviços ao imperialismo. Luiz Inácio assumiu papel de co-presidente da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), papel que vem desempenhando junto às demais gerências latino-americanas e também as de “além-mar”. Sua viagem à África, sob o discurso de que os países pobres devem se unir para negociar melhor, na verdade cumpriu o propósito de atrair os países africanos de maior potencial econômico a se integrarem na área de “livre” comércio.

Além de intervir como preposto ianque nas crises dos países latino-americanos, o governo iniciou um procedimento que demonstra toda a gravidade da ofensiva contra-revolucionária. O fato de a Força Aérea Brasileira ter sido levada a interferir em assuntos internos do Peru, colaborando com operações militares na ação contra a guerrilha daquele país, representa um passo concreto extremamente grave. Revela que o oportunismo não tem qualquer hesitação em servir à contra-revolução e ao imperialismo, particularmente nos marcos da guerra ao “terrorismo”. Significa também que os eventos nos quais o governo brasileiro tem se destacado como protagonista, a exemplo do Consenso de Cuzco e Consenso de Buenos Aires, têm o mesmo objetivo no acerto nos temas econômicos. Daí vir a público a defesa explícita, por parte do gerenciamento do oportunismo, da criação de uma “união” militar da América Latina. Exceto na época do gerenciamento militar, nunca ocorreu ação tão descarada por parte de um governo no país.

Um governo em disputa

Muitos, como os trotskistas, os revisionistas, a social-democracia e outras viúvas da frente popular eleitoreira, mantêm ilusões de que o governo está em disputa e que é necessário pressioná-lo a fim de que “tenda para a esquerda”. A que disputa se referem estes senhores? Ela existe de fato?

É inegável que existe uma disputa pelo centro do aparelho de Estado, bem mais antiga que estes senhores apregoam, iniciada praticamente com o próprio capitalismo no Brasil, caracterizada pela luta entre as frações da grande burguesia: a burocrática, ligada ao capital industrial, e a compradora, ao comércio internacional e ao capital financeiro.

AND tem demonstrado que, historicamente, no país, o oportunismo serve à fração burocrática da burguesia em sua pugna com a fração compradora pelo controle do aparelho de Estado. Assim, setores da burguesia burocrática buscaram acoplar-se ao PT e a frente “popular” eleitoreira oportunista, atraindo o conjunto da fração, numa tentativa de retorno ao mando do Estado, do qual foram desalojados no início dos anos 90.

Ocorre que, dado o grau de degeneração do sistema capitalista mundial, o enfrentamento de sua crise exige uma inflexível política de ajustes monetários, fiscais e cambiais incompatíveis com as concessões que a burguesia burocrática necessita para seu projeto de retomar sua dominação. Sendo assim, sua conquista eleitoral, através da composição com a frente “popular” eleitoreira oportunista, não lhe conferiu correlação de forças suficientes para reverter a situação, pois é a fração compradora que mais se adequa às atuais necessidades do capitalismo em crise.

Tal situação conduzirá a uma pugna constante no interior do aparelho de Estado. Todas as tentativas de implementação de programas de crescimento nada mais representarão do que tentativas da fração burocrática de assumir a hegemonia no aparelho de Estado. Em última instância, o que defendiam os chamados “radicais” do PT nada mais era que a imediata implementação de um programa de tipo “desenvolvimentista”. Foram defenestrados furiosamente pelo Planalto, para demonstrar ao imperialismo que a direção petista detém o controle e que nada ameaçará a política econômica em curso.

Mas, o PT e sua frente “popular” eleitoreira oportunista sonham em conciliar contradições e servir a dois amos: ao imperialismo e à burguesia burocrática, que por vezes se faz passar por nacionalista na busca de arregimentar forças para seu projeto de dominação. Sonham com um projeto de “desenvolvimento com distribuição de renda” — que volta e meia deixam escapar da língua — enquanto realizam, em função do capital financeiro mundial, todas as políticas de ajuste que este exige.

Como não é possível qualquer processo de crescimento que atenda minimamente aos interesses das massas mantendo-se a política de ajustes voltada a assegurar pagamentos das dívidas e atrair a especulação financeira, a tentativa de implementar qualquer projeto, por mais tímido em suas pretensões, esbarrará nas necessidades do império em crise. Esta situação se desenvolve e, cedo ou tarde, desembocará em conflitos, onde amplos setores, que apoiaram e seguem apoiando o governo e já se vêem pressionados pelas bases, forçarão a lhes ouvir. Isto conduzirá a uma rinha que se abrirá em grave crise de governabilidade. Sucessivas rupturas forçarão o governo ou para um lado ou para outro. Evidentemente nenhum desses lados é o do povo.

Assim tem sido historicamente no país com os diferentes governos de turno, um reflexo direto das contradições no seio das classes dominantes e em meio à crise estrutural que se arrasta há décadas.

A política na qual se empenha o Estado-maior do governo em lançar Luiz Inácio ao exterior, com a frequência que faz, além de cumprir os desígnios imediatos da política imperialista, trata-se, também de uma estratégia de fortalecimento público de sua imagem na arena internacional, com perspectivas para se implementar projetos que afetem minimamente, os interesses imperialistas no país e no continente. Exemplo: algo como as velharias cepalinas de substituição de importações, programas sociais, etc., numa tentativa de saída populista.

Qualquer desses caminhos, por não ser o do povo, inevitavelmente se abrirá em crise sem contornos.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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