A exclusão pela língua, ou fragmentar para dominar

A exclusão pela língua, ou fragmentar para dominar

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As oligarquias, principalmente, criam uma espécie de dialeto e jargões que não possuem fundo léxico essencial nem sistema gramatical próprio. Fazem se passar por manifestações eruditas, mas na realidade são incultas e espúrias: sua origem é o arsenal da charlatanice que apodrece tanto mais se aprofunda o sistema semicolonial

Diante da ofensiva geral do atual modo de produção, seus ideólogos aparentam grande entusiasmo, embora saibam tratar-se da fase mais caduca e putrefata do sistema.

As relações que os homens contraem entre si no atual processo social de produção e as forças produtivas revelam terríveis embates, uma encarniçada e mortal luta entre esses dois aspectos que agravam todas as demais manifestações na sociedade. A vida demonstra que o atual modo de produção precisa ser suplantado por um novo modo de obtenção de bens materiais verdadeiramente necessários aos homens.

Entre as demais forças produtivas, o homem é a principal delas, com seus hábitos de trabalho, conhecimentos científicos e técnica, instrumentos de trabalho etc. Como as forças produtivas são as que desenvolvem e aperfeiçoam os instrumentos de trabalho, criam materiais novos e exercem um poder crescente sobre a natureza, o progresso social passa a depender sempre mais do grau de desenvolvimento dessas forças.

Se neste momento da história é mais aguda a luta de vida ou morte entre o caráter social da produção e a forma privada e monopolista de apropriação — preferindo a oligarquia do capital financeiro elevar o lucro máximo e o complexo industrial-militar para lhe socorrer — está claro que os interesses econômicos e políticos dessa oligarquia destroem implacavelmente o patrimônio material e espiritual que a humanidade ergueu ao longo de milhares de anos.

Ocorre que uma das características do conhecimento humano — que o faz sobressair entre os demais animais superiores — é a linguagem. Com a sua ajuda foi possível criar noções, categorias, estabelecer leis científicas e penetrar na essência dos problemas. Sem a linguagem o pensamento humano sequer existiria.

A linguagem verdadeira não tem caráter de classe, exatamente porque precisa servir ao conjunto da sociedade como meio de comunicação até mesmo entre trabalhadores e exploradores. Mas as classes lutam para criar termos particulares e expressões próprias às suas necessidades distintas, maneira de pensar e agir.

O falar e o poder

Cada língua nacional tem um fundo léxico essencial, que é a parte principal do vocabulário, constituída pelas palavras radicais. A gramática é um conjunto de regras que permite a variação e a combinação das palavras entre si. O fundo léxico essencial e a gramática formam a base de uma linguagem nacional.

É bem verdade que a divisão social do trabalho — e as terríveis condições que ainda a mantém no mundo — se reflete diretamente no falar “especializado”.

Certas profissões desfrutam de regalias corporativas. Por deter um saber social determinado, historicamente têm um lugar privilegiado entre as classes dominantes.

Na óbvia exclusão da maioria em relação ao poder corporativo — divisão entre “iniciados” e “não iniciados” — esse saber expressado pelo falar serve como arma de dominação, estabelecem “ilhas” de poder. Poder relativo, porque se torna cada vez mais limitado à determinada área, cuja visão diminui no plano geral.

Os jargões que tanto agridem a nossa língua se degeneraram ainda mais nos atuais economês, informatiquês, mediquês, juridiquês e por aí afora. O “saber jurídico” é o que usa mais palavras inacessíveis e desnecessárias.

Em recente entrevista, o jurista Rui Fragoso, da comissão de ensino da Ordem dos Advogados do Brasil, OAB-SP, afirmou que “o advogado deve ser moderno e confiável. O jargão só inspira confiança nos incautos.” O que mais se verifica são expressões em latim e provérbios jurídicos ininteligíveis, oriundos de um Direito (erigido em lei, vontade imposta pelas classes que estão no poder e que pretendem mantê-lo) cujo comportamento Fragoso caracteriza sem piedade: “A pretensa erudição esconde a ausência de conhecimentos da língua e de argumentos. Sentença ou petição boa é aquela que o leigo entende.”

Na “ilha” da medicina a situação não é muito diferente. Pacientes que “não entenderam nada” do que o médico disse representam a principal queixa feita no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, afirmou recentemente a presidente Regina Carvalho. O “mediquês” usado aqui é um efeito da linha ianque, que se impôs sobre o ensino médico no mundo todo a partir dos anos 20. Junto com as normas de comportamento e a roupa branca, introduziu a visão tecnicista e a linguagem de “especialista”.

Autor do livro Traduzindo o economês, Paulo Sandroni, economista e professor da Pontifícia Universidade Católica PUC e da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, denuncia que “há uma forma quase fraudulenta de tratar assuntos públicos. A linguagem vira arma, escolhida com a intenção política de mascarar, e não de esclarecer”.

Já Sírio Possenti, autor de Os humores da língua, diz que é forte o interesse de preservar o poder por meio da linguagem. “A bula de remédio, por exemplo, não é feita para informar, mas para cumprir uma lei que manda informar. (…) Quanto mais dividida é uma sociedade, mais diversidade de ‘línguas’ ela vai apresentar. Por meio do léxico, os grupos criam laços com seus pares e separam os diferentes.”

Língua e imperialismo

Os linguistas afirmam que o português falado no Brasil é um “universo em expansão” capaz de absorver e adaptar termos exógenos, incluindo-os em seu corpo principal sem que isso implique perigo para a coluna dorsal do idioma, que permanece o mesmo. O paranaense Carlos Alberto Faraco, referindo-se às edições mais recentes dos principais dicionários editados no Brasil, Aurélio e Houaiss, explica que nas últimas décadas os registros de vocábulos utilizados no país cresceram de um pouco mais de 100 mil para cerca de 400 mil palavras.

Seguindo esse raciocínio de integridade estrutural, incluindo os regionalismos, o Brasil todo fala a mesma língua. Para o entendimento entre, por exemplo, um gaúcho e um nordestino, em alguns momentos eles precisam “negociar o uso das palavras”, mas o idioma permanece comum em todo o país.

O que não se pode confundir, nesse caso, é a diversidade cultural de um povo, a riqueza do linguajar, as diferenças idiomáticas regionais e as expressões científicas com a lógica dominante que em sua estrutura ideológica aliena, exclui e fragmenta para perseverar. As oligarquias, principalmente, criam uma espécie de dialetos e jargões que não possuem fundo léxico essencial nem sistema gramatical próprio. Fazem se passar por manifestações eruditas, mas na realidade são incultas e espúrias: sua origem é o arsenal da charlatanice que apodrece tanto mais se aprofunda o sistema semicolonial.

O bombardeio, cada vez mais cerrado da Roma contemporânea, ampliado em escala mundial, é parte da estratégia do “imperialismo cultural”, como se dizia na década de 60. Hoje, muito mais aperfeiçoado, ele se manifesta com dois objetivos que se complementam: o econômico, traduzido na voracidade por mercados para seus produtos; o objetivo político, usado também para socorrer o primeiro, sabota as culturas nacionais e a consciência política que se desenvolve entre os povos oprimidos.

Ataque em três flancos

Tentacular, em seu aspecto linguístico, o imperialismo cultural tenta minar o vernáculo nacional pelo menos em três flancos: pelo empobrecimento, pela invasão e pela introdução de termos “modernos”.

O primeiro deles — o empobrecimento — se manifesta pelo encolhimento do universo vocabular utilizado pela população. Ele mesmo resulta, por um lado, da deficiência educacional programada pelo imperialismo ianque e implantada no Brasil a partir dos anos 60, década em que os estudantes saiam às ruas para protestar contra o acordo Mec-Usaid. Através desse acordo ou de procedimentos similares, o gerenciamento militar atrelou a educação brasileira aos interesses ianques e transformou nosso sistema de ensino em simples formador de um exército apto para reproduzir e consumir tecnologias do USA.

O advento das redes nacionais de televisão nos últimos 30 anos trouxe em seu bojo o empenho pela padronização da expressão (é necessário que a mensagem televisiva seja captada e compreendida em todos os rincões do país), à qual não faltam retoques do cosmopolitismo imperialista. Daí a instauração de manuais de redação restritivos a umas poucas centenas de palavras.

A nação é bombardeada com um linguajar padrão de sotaque pasteurizado nos laboratórios de “desinfecção cultural”, onde passou a ser “feio” falar como gaúcho, catarinense, paranaense, nordestino ou nortista. Regionalismos em rede, nem pensar: atenta contra a eficiência e a “qualidade total”.

O moderno colonial

A outra forma de ataque à língua pátria acontece através da invasão de termos avulsos ou a utilização comercial de frases e sentenças inteiras, ambas em “inglês”, às vezes, intercaladas por palavras em português, ou nem isso.

Basta olhar em volta: São Paulo Fashion Week, Discontinued models, Finale sale, Up to 40-80% off, Home delivery, Summer sale, Rent a car, Laundry, Aluga-se bachelor flat, For information please call, e por aí afora. E tome deletar, delivery, fast food, look, fashion e outros.

Aliás, essa invasão dificilmente traz respostas que vão à raiz da questão. Demagogicamente dizem conter a ingerência estrangeira através de um projeto de lei que se arrasta no Congresso desde 1999. Ainda bem, porque é um projeto oportunista e que não se opõe à coisa alguma.

Não nos interessa traduzir delete, fast food, fashion etc. para excluir, refeição rápida e moda a pretexto de defender a língua. O invasor deve ser expulso da nossa maneira de viver e não nacionalizado. Nacionalizar os monopólios imperialistas significa expropriar o expropriador e imediatamente criar formas nacionais de organizar a economia, a política e a cultura, segundo os interesses de nossa pátria.

Uma nação completa, cristalizada como tal, existe na única condição de reunir os elementos de uma nação, numa comunidade estável, historicamente formada, de idioma, de território, de vida econômica e de psicologia (ou o “o caráter nacional”) que se traduzem em uma comunidade de cultura.

O desenvolvimento da nossa língua, mesmo numa sociedade antagônica como a brasileira e que vive sob a opressão nacional, dispensa qualquer lei que a proteja. Antes de tudo, trata-se de erguer uma economia, política e cultura verdadeiramente democráticas e comprovadamente nacionais. Nacional porque livre, porque há de contar com uma poderosa democracia para assegurar nossa independência. O nacional não é xenófobo; é antiimperialista e internacionalista: defende a nossa autodeterminação e a de todas as nações.

Eis que a luta pelo nosso desenvolvimento científico-técnico, a nossa própria maneira de extrair e transformar produtos, de produzir literatura e arte etc. em benefício de uma nação livre e soberana, continuará condicionando o fundo léxico essencial e o sistema gramatical historicamente formado, legítimos e enriquecidos, com todo o vocabulário de que realmente precisamos e, por fim, dominante.

Frágil é o invasor

A terceira forma de ataque e dominação imperialista através da língua impõe um vocabulário pretensamente moderno, disfarçando o processo da conquista. É um “dialeto” inventado e disseminado pelas potências, através de seus ideólogos, pronto para servir à hierarquia da nocividade e correspondente aos seus membros, desde os incautos, passando pelos filisteus, aos tecnocratas e technopols nativos. Termos como “globalização”, “flexibilidade”, “governabilidade”, “empregabilidade”, “exclusão”, “nova economia”, “tolerância zero” estão em todas as bocas.

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, esse “novolinguismo” faz parte de uma “nova Bíblia do Tio Sam”, que cria uma vulgata planetária. Nela se ignoram propositalmente termos científicos como imperialismo, caráter de classe, relações de exploração, opressão nacional, “e tantos vocábulos revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência”.

Dessa forma, a linguagem da dominação está presente quando se dissimula o processo da conquista: “reforma de mercado” significa debilitar as leis trabalhistas e os sindicatos, expandir a apropriação capitalista privada da riqueza pública; “ajuste estrutural” significa ingressos, propriedade e poder de reconcentração às expensas do empobrecimento dos trabalhadores; “mercado livre” é a liberdade dos monopólios gigantes do império em dominar a vida material e espiritual do nosso povo.

Bourdieu alerta sobre os efeitos da “nova linguagem”, porque ela é veiculada não apenas pelos partidários da contra-revolução neoliberal, ocupados em pôr abaixo “as conquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais”. As consequências tornam-se mais nefastas quando esse “dialeto” é utilizado também por renomados pesquisadores, escritores, artistas que se fazem passar por “militantes de esquerda” ou pessoas progressistas.

No mais, como a fusão do oportunismo com as teorias reacionárias já havia ocorrido ao final do século XIX, não surpreende que esse tipo de “esquerda” preste valiosos auxílios ao Império, impondo o vocabulário sancionado pela metrópole. Porque a linguagem dos missionários e seus convertidos nem inglês é, mas gíria, “dialeto” imperialista, sem base no léxico essencial e nos fundamentos da gramática. Ela se resume na expropriação do direito de produzir e pensar; expressa, enfim, a encarnação das doutrinas de subjugação nacional.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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